Comentários sobre o filme "Lixo Extraordiário" - A arte como instrumento de mudança

Agora a pouco assisti o filme/documentário chamado “Lixo Extraordinário” em um cineminha alternativo aqui de Floripa chamado Paradigma. O local é muito bom por sinal, recomendadíssimo para quem já está cansado do exagero e inutilidade hollywoodiano que afeta a maioria das grandes produções de repercursão mundial. O filme é sem sombra de dúvidas também recomendado que todos assistam.

Darei um breve resumo do filme aqui neste parágrafo para que se possa entender melhor o contexto em que estou escrevendo este texto. Aos que decidirem assistir o filme sugiro que pulem este parágrafo para que não percam a emoção que o mesmo passa. O filme trata da intervenção feita em um aterro sanitário do RJ chamado “Jardim Gramacho” pelo renomado artista plástico Vik Muniz. Vik visita este aterro com o objetivo de realizar algumas obras com o material do lixo e ao mesmo tempo fazer uma intervenção na comunidade que vive e depende do Jardim Gramacho para sobreviver, grande maioria pessoas de classe baixa que coletam lixo no próprio aterro nas mais precárias condições de existência. Ao longo do documentário vemos alguns atores principais na intervenção, membros da própria comunidade que catam lixo para sobreviver e também temos contato com a Associação de Catadores fundada recentemente por um dos atores do filme. Ao tirar fotos da vida alí no aterro Vik inicia sua obra, utilizando-se do próprio lixo catado alí pelos moradores para fazer obras de qualidade e originalidade sem igual. Quem faz as obras também são os próprios moradores que vão aos poucos posicionando as peças de lixo de acordo com as imagens projetadas no chão e montando a obra. Ocorre então todo um processo de reflexão com estes moradores e catadores que ao entrarem em contato com a arte adquirem novas perspetivas de enxergarem não só o seu trabalho e objeto de trabalho com outra perspectivas mas tamém uma nova visão acerca de sí mesmos. Ao fim do trabalho o artista transforma toda a comunidade utilizando-se de seu talento artístico para transformar o meio em que viviam os catadores, proporcionando a eles uma nova maneira de enxergar a realidade.



Bom gostaria de analisar e chamar atenção para dois aspectos deste filme: a primeira é a utilização da arte e/ou trabalho artístico para proporcionar condições de uma mudança comportamental e, em segundo, como torna-se muito mais rico o processo de aprendizagem ou conhecimento quando fazemos ou partimos de algo paupável para a pessoa, algo que está dentro dela ou faz parte de sua vida.



Primeiramente então a questão da arte. Sabemos que diferentemente da linguagem racional e metódica que estamos acostumados a utilizar no cotidiano a arte apela para outro tipo de linguagem mais ligada aos sentimentos e as percepções das pessoas. Por muitas vezes esta linguagem racional aliada ao academicismo dificulta muito as intervenções e processos realizados com camadas da população mais leigas ou não acostumadas com termos/expressões/formulações utilizadas pelos profissionais. Esta diferenciação, bem como seu caráter mais recreativo possibilitam que processos como conhecimento ou até mesmo uma emancipação de consciência ocorram com maior facilidade e consegue levar a reflexão para todos, mesmo aqueles que já estão afastados de uma linguagem racionalizada ou não adaptados aos termos excessivos ou linhas de raciocínio complicadas de se compreender. Infelizmente dentro da própria academia (e até mesmo ao longo de nosso histórico escolar) temos uma grande negação à utilização da arte como uma maneira de intervenção profissional e de alterar o comportamento humano, bem como processo de conhecer e refletir acerca do mundo. O filme é um exemplo sem precedentes de como a arte pode ser utilizada de maneira concreta para alterar diretamente o meio em que a pessoa está vivendo, fazendo com que a mesma possa por sí só criar uma autonomia de penar e refletir, compreender a realidade e enxergar novas possibilidades de vida. Em nenhum momento Vik discursa sobre a história da arte, a importância do sombreamento ou pinturas famosas. Apenas dá a proposta, convida os moradores, faz em conjunto com os mesmos o trabalho e pronto. Vemos no final do filme vidas inteiras alteradas de maneira sifnigicativa, com novas perspectivas de vida, trabalho, mundo e inclusive de sí próprias. Devo chamar atenção também para o seguinte fato: se quisermos alterar o comportamento precisamos voltarmo-os ao meio ambiente e não a “mente”ou “consciência” das pessoas. Ao invés de centrarmo-nos no cérebro devemos antes de mais nada concentrarmo-os em criar condições no meio para que existam possibilidades de o organismo, de maneira autônoma passar a adquirir e/ou formular novas e mais eficientes ferramentas para compreender o mundo em que vive e a relação que estabelece com o mesmo.



Por fim, em segundo lugar gostaria de comentar como este processo, o de conhecer e comportar-se/pensar acerca do meio em que se está inserido é extremamente facilitado quando ao realizar este processo partimos diretamente do que faz sentido à quem se quer ensinar ou proporcionar uma mudança de pensar. Pensei muito em Paulo Freire e em Skinner quando assisti Viki utilizar-se de fotos dos próprios moradores como inspiração, do lixo que eles viviam e utilizavam como maneira de sobreviver como o material para efetuar a arte e do próprio trabalho braçal dos moradores para realizar as obras. Ao partir de coisas concretas para aquelas pessoas ele pôde efetuar todo um processo de reflexão acerca do próprio trabalho daquelas pessoas, de seu valor (não eram necessariamente apenas catadores, podiam ser muito mais que isto) e do próprio material com que lidavam (o lixo não era apenas lixo de gente rica mas podia transformar-se também em arte). Não obstante, fez com que eles próprios montassem por sí as obras proporcionando a eles todo um papel de autonomia e protagonismo neste processo. Vemos o resultado desta metodologia ao escutarmos os depoimentos dos moradores mais ao final do filme. Um deles, Tião, é indagado por Viki que o pergunta como ele até então entendia ou via a arte. Tião comenta que para ele arte moderna nem sempre era arte, que não compreendia, não valorizava e não prestava atenção. Mas após toda esta vivência e processo podia já compreender os objetivos e o poder de mexer com as pessoas de trabalhos artísticos. Vik podia simplesmente subir em um palanque e dar aulas. Podia simplesmente pintar quadros e esperar que as pessoas por sí os compreendessem ou mudassem a maneira de enxergar as coisas. Podia discursar de maneira abstrata (como estou fazendo neste texto) a arte para as pessoas. Mas engajou-se em um processo totalmente novo e diferente, de colocar nas mãos destes moradores de Gramacho o trabalho e assim proporcionar condições totalmente novas de se pensar não só a arte mas a própria vida que até entao eles levavam. Ele fez com que pessoas até então leigas ou desencorajadas pudessem compreender o fenômeno artístico e o bem que ele pode levar a todos, independente de classe, credo, cor de cabelo, lingua e raio que o parta.



Este filme possibilita muitas reflexões acerca do mundo e do Brasil de hoje. Estou atentando apenas para estes dois fatos. Assistam, pois este texto não exprime nem 10% do que esta obra cinematográfica pode passar!