Recentemente engajei-me em uma campanha, “Bagé pela literatura”. A ideia, como o nome indica, é o auto-incentivo à leitura de mais livros relacionados a literatura, visto que desde que ingressei na graduação posso contar nos dedos de 1 mão quantos livros de literatura eu li. Então resolvi dar início a esta campanha e fui até a Biblioteca Universitária.
Dirigi-me a estante dos escritores russos, devido a constante citação deles por parte de alguns de meus colegas e também de autores que andei estudando este semestre. Inicialmente queria entrar na empreitada de ler “Os irmãos karamazov” de Dostoievski. Logo percebi que se tratava de uma obra extensa e que na BU existiam disponíveis apenas exemplares do volume II. Olhei pelas estantes procurando uma alternativa e percebi que havia um autor chamado Lev Tolstói acenando para que fosse visto. A escolha foi o livro “A morte de Ivan Ilitch”, aparentemente curto mas sem um grande atrativo para mim. O ditado “não se julga um livro pela sua capa” porém se fez verdadeiro quando finalizei a leitura deste livro...
O livro trata do percurso de vida do personagem principal, Ivan Ilitch. Desde sua juventude e ascenso na vida adulta e profissional até sua decadência social, afetiva e profissional atrelada ao seu adoecimento, finalizando com o prazer da morte. Ivan era um rapaz de destaque em sua faculdade de direito, arranja ótimo emprego, tem ótimas relações sociais e profissionais e é visto como promissor em todas as cidades que passa. À medida que vai crescendo profissionalmente e aumentando sua renda, decide-se casar com uma linda moça e vai viver no interior, onde constrói toda sua sustentação social e familiar. Passados alguns anos porém, no auge de sua casa própria e decorada pela família, felicidade e o advento de 2 filhos em conjunto do reconciliamento sentimental com sua esposa, Ivan passa a sofrer de diversas dores na região abdominal e dos rins. A dor vai piorando, evoluíndo e debilitando-o, fazendo com que tenha que deixar de trabalhar e passe a ficar isolado em um quarto da casa, deitado sob um divã, aos cuidados de um serviçal. Até que falece.
A história, aparentemente simples traz em si basicamente a experiência do indivíduo em relação à chegada da morte, o sentimento ambivalente de esperança e desesperança, negação e aceitação, dúvida sobre se se viveu bem e por fim o descanso e o perdão. A profundidade que o autor dá aos sentimentos de Ivan, que vai progressivamente passando por este estado de saúde-debilidade total nos faz sentir na pele do personagem, vivendo sua angústia em relação a incerteza do fim ou da cura. Mas o mais interessante de todo esse final trágico é o claro processo de luto que Ivan vive e o qual arriscarei, timidamente, analisar baseado no que andei lendo de meu caro amigo Sigmund Freud, seu artigo de 1916 “Luto e Melancolia”. Não vou me estender aqui explicando que é melancolia profundamente.
Para Freud, luto e melancolia dividem as mesmas características: perda de um objeto amado, sentimentos ambivalentes e, obviamente, a tristeza e a negatividade presentes. Há porém apenas um diferencial crucial entre luto e melancolia: o deslocamento da libido ora investido no objeto amado para o próprio eu da pessoa, caracterizando assim a melancolia e o extremo desgosto para com si mesmo. Não é meu foco nesse texto falar sobre melancolia, os interessados podem muito bem buscar na versão standard, volume XIV o artigo de Freud. Meu interesse é justamente no processo de luto. O luto para Freud é um processo normal, o qual vivemos e superamos gradualmente na medida em que vamos levando a vida, e que é caracterizado, como falei acima, pela perda real de um objeto amado (ou de um representante simbólico desse objeto). Essa perda se dá no plano consciente, e sua superação se dá dessa maneira justamente através da negação real de que esse objeto já não está mais materialmente acessível a nós. O que ocorre então é que a energia sexual outrora investida (catexizada) neste objeto não encontra mais sua vazão recorrente e necessita ser deslocada a outro objeto, ou alcançar outras maneiras de ser satisfeita. Importante lembrar que essa catexia não se dá apenas materialmente, no corpo do sujeito, mas está também relacionada a uma série de conexões ideativas e simbólicas entre o objeto e estes componentes, que carregam essa energia sexual.
É interessante observar em Ivan justamente esse processo gradual. A diferença porém é que o objeto em jogo é o próprio eu de Ivan, uma vez que passa a tomar consciência de que devido a sua doença sendo agravada a cada dia virá a falecer. Ao longo desse processo, vemos que Ivan vive uma série de afetos preparatórios para um luto e característicos deste, como o ódio e descaso do mundo ao seu redor, especialmente de sua esposa e de outros homens mais saudáveis que ele, acusando-os todos de insensíveis, ingratos e péssimos companheiros uma vez que vivem mentindo para si mesmos e para o próprio Ivan sobre o que está colocado: seu definhamento físico. Ivan passa também a isolar-se em um quarto da casa, evitando o contato com sua família, passa a chorar escondido com grande resistência e começa a ter uma série de lembranças sobre sua vida, tentando buscar a resposta: fiz valer minha vida? Dentre todas essas memórias, Ivan resgata momentos de sua infância (a qual, segundo ele, foi a única época em que teve muita alegria), seus bons momentos na faculdade, seu ascenso profissional e a felicidade conjugal inicial na vida do casal. Conclui ora que sua vida foi feliz, e não gostaria de perdê-la e ora questiona se realmente viveu como alguém feliz.
Podemos perceber em todo esse processo a tentativa gradual de preparação para sua própria morte, onde Ivan tenta lentamente como uma forma de defesa (uma de suas últimas demonstrações narcísicas talvez) desvencilhar-se de todos componentes ideativos e objetuais que remetem à sua vida (afasta-se da esposa, passa a odiá-la, afasta-se dos filhos, retoma uma série de ideias a cada noite que vai dormir e tenta analisá-las). Demonstra também grande afeto ambivalente, ora tendo fé que achará a cura e hora tendo plena certeza de que vai embora desta vida, novamente mostrando um pouco deste jogo de amor próprio e depois da conscientização de que este amor é tolo e logo irá morrer, não devendo apegar-se a ele. Em seus últimos instantes, Ivan conclui que de fato não viveu a vida de maneira 100% feliz, e que deve logo ir embora pois sua presença e seu sofrimento tem causado dor a sua esposa e seus filhos. Completando aí o deslocamento de boa parte de seu amor pelo seu eu para outros objetos, e tentando conscientizar-se de que não é merecedor da vida (novamente tirando o investimento sexual erótico sobre si), desvencilhando-se de a ideia de uma vida feliz e realizando o processo de desapego de todas conexões ideativas com seu histórico de vida que, talvez, tenha realmente sido uma vida feliz (pelo menos essa era a avaliação dele enquanto estava vivo e feliz do início ao meio do livro). É muito característico portanto este movimento onde a catexia amorosa de um objeto que está se perdendo ou se perdeu passa a ser deslocada a outros campos. No caso da morte de Ivan, como ele faz um movimento de retirar o amor narcísico de si, outrora alimentado em parte de sua vida, abrindo campo então para finalmente o momento de sua morte, onde tudo cessa e a pulsão de morte, finalmente, atinge sua satisfação com o último suspiro aliviado de Ivan. Outro ponto que vale a pena ser levantado aqui é a posição passiva de Ivan ao aceitar sua destruição e viver esse luto. A morte, que representa uma castração (definitiva pois cessa de fato o prazer da vida), é encarada de maneira passiva por Ivan, que deixa de rebelar-se contra “a injustiça da vida para com ele” e passa a entrar nesse processo de luto, tentando lidar com a iminente perda de sua vida.
Espero que tenha contribuído com algo através deste pequeno escrito. Reconheço que ainda tenho graves limitações em relação a uma análise psicanalítica do fenômeno psicológico. Mas vamos tentando...
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