No
florescer de mais um semestre recheado de novos estudantes dentro da
universidade, um camarão gostoso no RU e muito sol temos o retorno
às aulas na UFSC. Não só isso como também temos início as festas
e as atividades de acolhimento e aí entramos com o Acolhimento
Integrado da Saúde, organizado pelos CA's dos cursos da saúde (no
meu caso o CALPSI). O acolhimento foi um grande sucesso, além de
muito divertido. Mas é sempre necessário pensarmos para além do
imediato...
A
atividade de acolhimento não serve apenas como uma recepção. Não
é apenas um momento de descontração (embora cumpra com isso) e
exclusivamente de integração. Também não é somente uma forma de
apresentar a UFSC e os cursos (embora cumpra com isso). Não é,
também, apenas um espaço de encontro entre os cursos (embora cumpra
com isso). Não se propõe a ser também uma atividade exclusivamente
educativa (embora cumpra com isso). Uma atividade de acolhimento
proposta nos moldes do acolhimento integrado da saúde possibilita
ir além disso: está calcado diretamente em uma concepção política
de universidade e de autonomia estudantil. Mas o que diabos significa
isso?
Nosso
acolhimento propôs (embora não pareça), além do colocado acima um
questionamento direto à estrutura universitária e sua relação com
os estudantes que a compõe. Não apenas a crítica a
departamentalização do conhecimento (que também acontece) mas
essencialmente um questionamento a respeito do papel daqueles que eu
acredito serem o elemento central da universidade: os estudantes. O
acolhimento integrado da saúde é em sí um espaço político que
questiona diretamente uma série de valores e concepções que
permeiam a relação da universidade, dos professores e dos veteranos
com os novos estudantes dos cursos, essencialmente dois deles: a
autonomia e a relação hierárquica. Ambos estão diretamente em
relação mas para fins de explicação torna-se talvez uma boa
estratégia dividi-los.
Quando
cito “relação hierárquica” refiro-me diretamente a questão do
poder e da forma como ele é utilizado. Refiro-me a relação
professor-aluno na sala de aula e a relação veterano-calouro no
cotidiano das primeiras semanas universitárias. Ambas formas de
relação tendem (e sei que existem exceções) a reproduzir uma
coisa em comum: a submissão a alguém supostamente melhor que você
com justificativas diversas (desde um diploma a até mais tempo no
curso). Em uma sociedade que tem no núcleo de seu modo produção a
exploração é desnecessário dizer que o não questionamento e a
aceitação de “superiores” fazem-se essenciais para a manutenção
da ordem, não sendo à toa que a universidade, inserida nesse
contexto, também garante (como boa instituição que é) que isso
seja devidamente ensinado àqueles que adentram seus portões e lá
se estabelecem por alguns anos. Ela o faz de diversas formas (com
mecanismos como as chamadas, notas, representação discente
limitada...) mas estas duas que coloquei, de forma mais micro, ganham
centralidade neste texto pois são justamente as que o acolhimento
trabalha de modo imediato.
Estas
relações quando estabelecidas de forma opressiva e de submissão
criam pela sua própria prática já de início a noção de que o
estudante nada sabe e nada pode opinar, pois ainda é ignorante nos
assuntos universitários e acadêmicos (no vocábulo comum
veteranístico: burros), e convergem com o objetivo geral de colocar
os estudantes até o fim da sua graduação como incapazes de serem
sujeitos políticos dentro da universidade – fique isso explícito
ou não. São relações maléficas, que tiram o sujeito de seu lugar
de autonomia e o colocam num espaço restrito de incapacidade (ainda
que de forma sutil). É bom lembrar que Paulo Freire já nos dizia
que todo oprimido carrega um pouco de opressor e portanto, através
da prática deste tipo de relação, garante-se assim com que ela
mesma se reproduza ao longo do tempo, inclusive externamente à
universidade abrindo mais as portas para a formação de um
profissional que respeitará devidamente as ordens e irá reprimir
aqueles que as critiquem – tal qual como foi feito consigo. Não
obstante, criam uma estrutura divisória desnecessária entre os
próprios colegas de curso, que agora são veteranos ou calouros (em
alguns casos calouro B, C, D, E, etc... até o fim de sua graduação)
e detém mais direitos uns sobre os outros.
Entendendo
que são justamente os estudantes elementos nucleares dentro da
universidade (compondo ela em sua imensa maioria) este tipo de
prática em nada contribui para avanços na própria formação
política destes e portanto devem sempre ser repensados. No
acolhimento da saúde fizemos a tentativa de abolir este tipo de
relação, nos utilizando do “poder” de veteranos a nós
incumbido para propor atividades baseadas no diálogo e na
centralidade do pensamento das pessoas que recém ingressaram no
curso, saindo de uma verticalidade de repasse de conhecimento para
uma horizontalidade, materializada na forma de pequenos grupos de
discussão sobre um tema complexo (conceito ampliado de saúde) que
rapidamente foi tratado e elaborado por sujeitos que nunca sequer
tinham ouvido essa palavra. E isso nos dá sustentação para a
autonomia...
Quando
me refiro a “autonomia” dos estudantes estou me referindo
justamente ao estímulo de que cada indivíduo possa ter a
oportunidade, por si, de analisar, criar e propor transformações na
realidade que o cerca. Tirá-lo do lugar de “calouro burro” ou de
“simples estudante” não só é a quebra de uma relação de
poder extremamente funcional para uma sociedade como a nossa como
também passa a ser um chamado para que ele possa visualizar isso de
forma mais clara. Quando se dá o poder do debate, da escolha (quero
isso, não quero aquilo) e da formulação ao outro chegamos próximos
disso. No acolhimento, muito melhor que um discurso (que é o caso
deste texto) foi na prática, no sentir, que se repassa uma nova
forma de se enxergar seus colegas e abre-se o horizonte para
pensarmos na possibilidade de que a universidade pode de fato ser
diferente e ir muito além do que é. E pelo fato de ser organizado
exclusivamente por estudantes também ajuda a compreender como
podemos fazer intervenções significativas dentro do espaço
universitário de forma independente e talvez até mais atraente que
muitos docentes em seus modelos arcaicos e limitados de dar aulas. O
estímulo a autonomia choca-se diretamente com as relações
hierárquicas e através da contradição entre estas duas
possibilita a síntese de um sujeito que se veja capaz do
questionamento (seja aos professores ou aos veteranos) , da
participação ativa e que visualiza como se torna desnecessário e
essencial que este tipo de relação seja substituído por uma outra,
baseada em formas mais horizontais de construção de um saber ou de
um curso.
De
maneira alguma acredito que a universidade seja a gênese deste tipo
de relação. Por estar atrelada diretamente ao modo de produção
capitalista é evidente que espalha-se aos lugares mais diversos da
sociedade, inclusive dentro da família privada. Mas é justamente
por se propor a ser um espaço de reflexão, crítica e criação, é
nela que podemos dar o ponta pé inicial necessário para
questionarmos o que fazemos, por que fazemos e quais as consequências
do que fazemos.