Ultimamente
tenho me aproximando de forma mais íntima do universo que
intitulamos “arte”. Vez ou outra decido por abrir um ou outro
livro de poesia e ler uma ou duas das obras ali contidas e elas
suscitam em mim os pensamentos mais diversos. Hoje não foi
diferente, comecei a pensar a respeito da arte urbana.
Antes de
mais nada, é evidente que a arte é o que é pois significa algo
para toda a humanidade. Não se resume apenas a uma atividade. Ela
encerra e articula em si mesma uma série de conteúdos individuais,
coletivos, sociais (e portanto históricos), econômicos, culturais,
etc... Além disso, a arte em sí é prazer em qualquer forma que
adote. Não são poucos os motivos para apelarmos a ela vez ou outra.
É o negócio perfeito para nós mesmos. Isso pra quem a realiza, mas
ela extrapola esses limites e chega também a aquele que de alguma
forma a contempla. Para o contemplador da arte, há também um prazer
envolvido, mesclado com os mais diversos sentimentos. O fato é que
paramos para olhar, pensar e sentir quando é possível. De onde vem
esse “mistério”? Quando um ser humano opta por realizar algum
tipo de arte ele está expressando ali algo além do ato ou de uma
mensagem específica, está também realizando seus próprios desejos
e alcançando a superação de suas próprias frustrações na medida
em que as expressa em uma nova forma que ultrapassa os limites da
racionalidade. No campo artístico podemos expressar as ideias mais
dificultosas e os pensamentos mais íntimos sem todos os bloqueios
racionais de uma linguagem estrutural ou as repressões momentâneas
que a razão implica ao ser evocada. Existe uma permissividade (e
dependendo da situação incentivo) para a expressão artística que
aliada a esse “boicote” à racionalidade possibilita ser uma via
muito útil de escoamento pulsional do sujeito. Não obstante, a
expressão artística não burla a racionalidade exclusivamente
daquele que a produz, mas também daquele que a contempla, de forma
que neste sujeito também há uma economia de esforços racionais e
de superação dos bloqueios que essa implica, poupando ele de ter de
realizar qualquer grande raciocínio para expressar seus sentimentos
a respeito da vida ou de temas/objetos específicos alí tratados,
abrindo vias de expressão e alívio pulsional para esses desejos ou
vontades interiores que de alguma forma são impedidos ou carecem de
material ou possibilidade de se realizarem no cotidiano através, por
exemplo, da fala.
Com isso
em mente podemos adentrar no tema da arte urbana. Não é de hoje que
a realidade é dificultosa de ser percebida em sua forma totalizante.
A enorme e caótica sobreposição das mais diversificadas
especificidades, todas em uma grande trama de relações não é nada
fácil de ser concebida e exige esforços que vão além de um
indivíduo, necessitando de tempo e elaboração contínuas para que
possam ser compreendidas dentro de todo o sistema. Ainda assim, viver
na cidade brasileira dentro do subdesenvolvimento implica nos mais
diversos sentimentos e significações que por mais íntimas e
específicas que sejam carregam sempre vestígios de um todo disposto
a ser descoberto por uma reflexão mais minuciosa e sistemática. O
simples fato de existir nesse contexto já nos deixa impregnados e de
frente com toda série de contradições que ele carrega mas estas
ficam muito mais evidenciadas para aqueles setores da população
brasileira que estão dentro da categoria de “marginalizados” ou
“oprimidos”. Os setores sociais que enfrentam cotidianamente a
grande contradição de existir com tão pouco sabendo que existe
“tão muito”, somada aos fatos práticos que distanciam cada vez
mais o sujeito do sonho de uma vida minimamente digna colocam de uma
forma muito mais crua e direta o que significa viver no
subdesenvolvimento. Por mais que as estatísticas provenientes de
nossos saudosos departamentos de ensino superior e os noticiários da
rede televisiva hegemônica os tratem simplesmente como números o
fato é que são todos seres humanos que tem um sentimento e uma
opinião a respeito de tudo isso que vivem e sentem na pele. A
totalidade do problema porém, como falei anteriormente, não se
mostra facilmente e muitas vezes estas pessoas carecem dos métodos
para seu entendimento organizado, da mesma forma que o intelectual de
classe média carece de uma vivência prática que demonstre as
condições da maioria do povo brasileiro – e estes, ainda assim,
mesmo com força, nem sempre conseguem conceber e expressar sua
indignação e sofrimento com a situação. O fato de estas pessoas
estarem expostas frequentemente ao desconforto e a dor que é existir
dentro da pobreza e do endividamento as deixa muito mais
sensibilizadas com as contradições de nosso país e culmina no belo
movimento da arte urbana.
A arte
urbana proveniente dos setores marginalizados consegue ser a via de
expressão que rompe com os limites não apenas psiquicos mas também
geográficos e socioeconômicos que separam os cidadães das cidades
brasileiras. Por ser advinda quase que puramente do sentimento de um
sujeito que vivencia a opressão e a exclusão ela consegue traduzir
este sentimento e consequentemente levar em seus simbolismos as
contradições vivenciadas por estas pessoas, que com esse
instrumento não apelam para grandes categorias e conceitos mas sim
as emoções e o simbolismo para explicar e extravasar aquilo que
vivem e sentem em seu cotidiano. A grande frequência com que são
expostas as contradições da vida urbana possibilita que estas
estejam muito bem enraizadas na maior parte destas obras, que as
carregam direto do ser para a arte. Da mesma forma que o artista
urbano coloca essas contradições na forma de arte, aquele que
contempla esta arte vê ali de forma mais facilitada uma explicação
ou sentido para aquilo que sente e percebe em seu cotidiano: seja na
forma de concordância ou em uma total forma de desprezo pela
estética o fato é que aquilo ali expressa muito do que se quer
dizer ou do que se pensa a respeito da frustração que é viver na
cidade mas não tem espaço para ser expresso ou explicado. A vida
suburbana sai de seu isolamento e passa a ocupar espaço na cidade e
na mente daqueles que se encontram com ela. Não é a toa que ela é
uma contradição (um incômodo, um dedinho numa ferida): ela carrega
em si toda uma soma do que significa viver na urbanização
brasileira.
Esta
arte portanto é imprescindível (por mais que os higienistas
discordem) para que consigamos superar a atual condição desgraçosa
em que se encontram as pessoas que vivem nas cidades de nosso país.
Elas auxiliam a todos nós a nos esclarecermos a respeito da grande
loucura em que vivemos mas nos recusamos a (ou não conseguimos)
refletir. Ela carrega de uma forma acessível e disparadora muitos
dos problemas que nos deparamos mas não sabemos explicar ou não
temos condições de conceber. Ela abre espaço para enxergarmos de
forma mais ampla aquilo que nos cerca no cotidiano. Não a toa,
aqueles que não visualizam quase nada das dificuldades nacionais
(normalmente os mais abastados que se encontram longe de tudo isso)
se sentem muito pouco ou nada representados pelas transgressões que
a arte urbana implica e expressa, normalmente desprezando-a ou
fazendo o possível para que cesse. Os mais oportunos a transformam
simplesmente em uma mercadoria para ser consumida, afastando-a de
suas origens nas contradições sociais e aproximando-a do mercado
(algo que não estabelece nada senão uma relação utilitária com
as misérias urbanas nacionais). Prestemos atenção nos muros e nos
versos provenientes destes brasileiros e brasileiras. Eles carregam
muito daquilo que os intelectuais almejam ver e sentir e o que o
cidadão comum vive mas não consegue explicar – mas através do
sentimento gerado passa a compreender e sensibilizar-se.