Viver
em sociedade hoje custa caro e Freud já discorreu muito bem sobre isso. Juntar
um monte de humanos em um espaço delimitado exige de nós muito esforço psíquico
para que possamos viver de forma organizada e “pacífica”. A política passa a se
tornar inevitável para a vida humana, uma vez que demarca o território “legal”
e mais potencialmente criativo para o conflito dos diferentes modos de viver e
pensar e de se resolver problemas individuais e coletivos.
Não
precisamos voltar para a Grécia antiga
nem para um resgate sobre as origens da palavra democracia. Esse termo vem
sendo usado desde os gregos, passando pelas revoluções e chegando até ao século
XXI como um ideal a ser ainda alcançado, um modelo perfeito de se viver em
comunidade sob “um governo do povo”. Quem atua politicamente ou milita em seu
cotidiano inevitavelmente cai em debates onde o plano de fundo se estrutura
todo em cima de concepções a respeito de uma
democracia, uma abstração que condensa uma série de valores e atitudes a serem
adotadas por quem vive sob este regime como se fosse uma idéia universal e
pronta, fechada e eterna. Porém já nos disse Foucault em seu texto “Nietzche,
Freud e Marx”: "Os símbolos são justificações que
tratam de justificar-se e não o inverso". A palavra democracia não está
isenta disso e para mim inclusive é uma das mais impregnadas pela concepção política
de cada um embora os demagogos insistam em tratá-la como se vestisse um véu de perfeição,
neutralidade e de universalidade, sem se dar conta de que ao fazer isso também
estão tentando impor democraticamente (frase paradoxal não?) sua concepção a
respeito da organização política e relacional humana. Em diferentes épocas e
lugares a democracia foi tratada de forma diferente e adequada a estes
momentos: desde a Grécia nada inclusiva
com escravos e mulheres a até a “ditadura do proletariado” concebida por Lenin.
Qual seja a época a democracia carregou porém sempre algo em comum, a qual
retiro do texto “Socialismo e Democracia” de Ruy Mauro Marini: sempre carregou consigo a idéia do
convencimento, a possibilidade de que eu imponha meu ponto de vista através
da persuasão, da coerência, do diálogo. O ideal democrático portanto sempre se
construiu em cima do espaço do embate de idéias, a colocação sistemática e
convincente de um ponto de vista sob um determinado tema em conflito com outro
(ou outros), o qual é submetido a aprovação da maioria através do voto e da
escolha. Um governo de maiorias, uma escolha de maiorias. Na democracia não há
apenas a convivência mútua, há a necessidade real do posicionamento e da escolha
para que seja efetivada de fato - ainda que as eleições florianopolitanas tenham
colocado em cheque esta concepção. Ou tenham explicitado que de democrático
nada tivemos em nosso regime eleitoral ilhéu.
Dito isso podemos partir para a
atualidade. Percebo hoje principalmente no campo universitário que existe uma
concepção de certa forma generalizada a respeito da democracia enquanto a
convivência de iguais, a aceitação de pontos de vista diferenciados. Fica em voga a democracia como o regime da
simples tolerância onde a diferença
de opinião é tratada no nível da simples aceitação. Na concepção destes
sujeitos “ser” democrático implica em apenas aceitar que existem opiniões
diferentes e que essas opiniões todas devem ter seu espaço – estrutural e
ideológico – dentro do Estado, que seria o lugar onde se organizariam as
políticas nacionais. Não obstante estes sujeitos adeptos da tolerância (e não
da diferença) normalmente consideram ofensivos muitos debates políticos quando
realizados na arena conflituosa da política, por mais polidos e ricos que sejam;
consideram a divergência de suas opiniões como algo inadmissível e pessoalmente
ofensivo dentro da democracia brasileira vindo inclusive a ridicularizar ou dar
as costas completas ao embate político (isto em seus termos porque ninguém na
vida fica isento de posicionar-se e impor aos outros seu ponto de vista sobre
algum tema), entendendo este como um absurdo ou uma afronta ditatorial dentro
de um território democrático. Chamo estes sujeitos como os adeptos da
tolerância, os tolerantes intolerantes.
Os adeptos deste discurso reivindicam a diferença não enquanto exercício mas
enquanto algo a ser simplesmente aceito ou tolerado. Em nome da democracia
instituem para si e tentam colocar aos outros o quanto é errado a discordância
e o quanto é correto aceitarmos pontos de vista diferenciados apenas demarcando
à là Voltaire (“Não concordo com nada
do que dizes mas defenderei até a morte o direito de dize-lo!”) um certo “respeito”
pelo que é dito embora exista clara divergência. Os tolerantes intolerantes
portanto acabam por ser os maiores agentes antidemocráticos da esfera política:
primeiro pois ao instituir o ideal da tolerância em nome da harmonia (utópica)
entre seres humanos negam o exercício da diferença através de sua expressão política,
que é naturalmente embativa, e em segundo negam o exercício efetivamente
democrático que é justamente o da decisão da maioria por alguma coisa, mas que
alguma coisa uma vez que se deve apenas tolerar e evitar embate político? Como escolher,
posicionar-se, demarcar-se como sujeito no mundo se lhe é colocado
exaustivamente por estas pessoas que só lhe resta aceitar opiniões diferentes?
Não satisfeitos com isto, os tolerantes intolerantes são ainda desonestos
consigo e com os outros pois ao se apropriarem da democracia desta forma estão
adotando um ponto de vista e impondo-o as pessoas, ou seja: exercem sua opinião
politicamente mas no seu discurso impedem que os outros dele discordem uma vez
que isso é absurdo. Enganam a si e aos outros com uma idéia de neutralidade e
tolerância dos diferentes. São os sujeitos mais intolerantes da política, os
menos democráticos uma vez que menos dispostos a debaterem e submeterem as
opiniões a escolha mas ao mesmo tempo os mais propensos a militarem ativamente por
esse posicionamento político – tudo isso regado as maiores boas intenções e não
quero soar irônico com isto. Mas não seria isso
uma atitude ditatorial? Há uma
contradição direta entre este discurso completamente liberal e a formação de
sujeitos democráticos. A idéia da escolha e da votação em espaço comum sempre
implicará no convencimento de uma maioria que impõe sob uma minoria
discordante, sendo o real diferencial disto tudo o processo, a possibilidade do
convencimento e da expressão individual no campo coletivo e de se acatar
ativamente as decisões tomadas pelo grupo humano no qual estamos inseridos.
Isto é consciência e atuação política. O posicionamento dos tolerantes
intolerantes nega essa formação do sujeito por completo pois o poda de sua ação
política – impondo-lhe suas idéias de conciliação e aceitação. É um joguete
político interessante, muitas vezes inconsciente pois ao não haver conflito não
há possibilidade de uma reflexão através do outro, mas que não é democrático
uma vez que não proporciona a possibilidade do enfrentamento contrário ao
discurso que se dá.
Penso que a crise política
instaurada hoje em nosso país é gravíssima, é dialeticamente causa e efeito da
nossa condição histórica de subserviência e dependência enquanto nação de
outros lugares. Vejo que a superação de uma posição política como a do
tolerante intolerante seja fundamental e uma das vias de sairmos da situação
política em que nos encontramos. Para isso há de se justamente romper com este
posicionamento, sairmos de nossa zona de conforto e exercermos mais, democraticamente
e respeitosamente, nos espaços legítimos pra isso, nossos posicionamentos e
ideais. Eu acredito na construção de um país mais democrático mas este só
poderá ser efetivado através de sujeitos em exercício.