Lembrete: A violência prisional não para no final do ano

           Em meu cotidiano percebo muitas pessoas preocupadas com o futuro do país e com a humanidade. Muitas destas pessoas reivindicam a necessidade de mais amor, solidariedade e paz entre os seres humanos. Algumas delas preocupam-se com as crianças, especialmente as africanas, palestinas, americanas... mas e as brasileiras? Não é intenção desmerecermos o sofrimento destes sujeitos, que são problemas reais e também são problemas sociais gravíssimos. Mas queria trazer uma reflexão a respeito deste final de ano que tive com uma ação próxima do presídio de são pedro de alcântara.

         Neste final de ano realizamos nossa última reunião do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade (GAFPPL), grupo o qual participo como membro e militante da Frente Antiprisional das Brigadas Populares. Neste dia tivemos a presença de dois papais noéis distribuindo presentes e falando com as crianças no local onde nos reunimos, nas proximidades do presídio. Esta ação já vêm sendo organizada desde o ano passado e tem a intenção de acolher as crianças que possuem parentes - principalmente pais- em regime de privação de liberdade. Ao final, um dos idealizadores desta ação fez uma fala a respeito do direito destas crianças se desenvolverem e contarem com o carinho e acolhimento dos adultos, principalmente com uma palavra de afeto e um presente de seus pais nestas datas especiais. Analisou também o lado do familiar preso que em datas especiais como estas não pode contar com a presença de sua família, nem com a chance de ser pai/mãe e poder oferecer ao seu filho um presente e um bom e significativo carinho nestas datas especiais, onde a maior parte de nós comemora e conta com o afago e aconchego do lar. Existe possibilidade de qualquer profissional psicólogo ou autoridade não preocupar-se com isto, nem que seja exclusivamente com o lado destas crianças?

          Hoje em nosso país são mais de 470 mil pessoas presas sendo em Santa Catarina um número próximo de 15.000. Quantas famílias e sujeitos sofrem com este tipo de situação? Quantas crianças hoje em nosso país submetem-se a tortura e a violência subjetiva de ver seus pais algemados e maltrapilhos na sua frente, quando não humilhados diretamente diante de seus olhos pelas autoridades (contava o organizador da ação natalina que uma criança questionava a mãe durante uma visita: “Por que estão algemando e removendo o papai?”)? Há quem pense que os presos devem pagar pelos seus erros e isto eles já fazem, inclusive sofrendo além da conta. Mas até que ponto a tortura e a violência do sistema prisional nacional tem o direito de se estender para cima de crianças e parentes de sujeitos em privação de liberdade? Diz-se por aí que as prisões servem para colocar o sujeito “na linha”. Servem para que se pague pelos erros cometidos e se aprenda a viver pacificamente em comunidade. Mentira. Não precisamos mais de alguns minutos de história, memória e um breve olhar para as cadeias para entendermos que estes lugares não são nada mais que fábricas de sofrimento e violência. Matadouros de seres humanos; fisicamente e subjetivamente. O presídio não cumpre mais sua função – e em um país dominado pela pobreza podemos nos questionar que talvez ele cumpra uma outra, que é a de conter a massa marginalizada, pobre e revoltada de nossa nação.

        Fica o convite a todos e todas a neste final de ano e aproximação de datas especiais a pensarem sobre o tema. Nós, seres humanos “normais”, “cultos” e “civilizados” paramos nestes últimos dias. O presídio não para. Não para lá dentro com sua violência e não para aqui fora, quando nas cerimônias e nas casas um filho pergunta sobre o pai e sua família fica constrangida no que responder. Ou quando uma mãe chora só e lamenta-se, colocando em si mesma a culpa de ter criado um criminoso que na verdade a sociedade própria ajudou a gestionar ao jogá-lo à sua própria margem. Aos psicólogos, cabe a convocação: o que faremos diante de todo este sofrimento? Não nos faltaram disciplinas sobre o desenvolvimento humano para entender os desdobramentos deste tipo de situação. É um dever ético e profissional entendermos a realidade prisional de nosso país e o quanto estas instituições ferem todos os dias, dentro dela e fora dela os direitos humanos mais básicos e fazem com que pessoas específicas paguem pelos problemas de toda uma sociedade.


Prólogo do livro "Além do bem e do mal" - Nietzche

Resolvi postar aqui na íntegra o prólogo do livro "Além do bem e do mal" do Nietzche. Pessoalmente, me agrada. Compartilho:

PRÓLOGO

  "    Supondo que a verdade seja uma mulher - não seria bem fundada a suspeita de que todos filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não deixou conquistar - e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas. Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se percebrá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram - alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, demasiado humanos. A filosofia dos dogmáticos foi, temos esperança, apenas uma promessa através dos milênios: assim como em época anterior a astrologia, a cujo serviço talvez se tenha aplicado mais dinheiro, trabalho, paciência perspicácia do que para qualquer ciência verdadeira até agora: a ela e suas pretensões "supraterrenas" deve-se o grande estilo da arquitetura na Ásia e no Egito. Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela Terra como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo na Europa, por exemplo.

     Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. Mas agora que está superado, agora que a Europa respira novamente após o pesadelo e pode ao menos gozar um sono mais sadio, somos nós, cuja tarefa é precisamente a vigília. os herdeiros de toda a força engendrada no combate a esse erro. Certamente significou pôr a verdade de ponta-cabeça e negar a perspectiva, a condição básica de toda vida, falar do espírito e do bem tal como fez Platão; sim, pode-se mesmo perguntar, como médico: "De onde vem essa enfermidade no mais belo rebento da Antiguidade em Platão? O malvado Sócrates o teria mesmo corrompido? Teria sido realmente Sócrates o corruptor da juventude? E teria então merecido a cicuta?" - Mas a luta contra Platão, ou, para dizê-lo de modo mais simples e para o "povo", a luta contra a pressão cristã-eclesiástica de milênios - pois cristianismo é platonismo para o "povo" - produziu na Europa uma magnífica tensão do espírito, como até então não havia na Terra: com um arco assim teso pode-se agora mirar nos alvos mais distantes. Sem dúvida o homem europeu sente essa tensão como uma miséria; e por duas vezes já se tentou em grande estilo distender o arco, a primeira com o jesuitismo, a segunda com a Ilustração democrática - a qual pôde realmente conseguir, com ajuda da liberdade de imprensa e da leitura de jornais, que o espírito não mais sentisse facilmente a si mesmo como "necessidade"! (os alemães inventaram a pólvora - todo o respeito!  - mas ficaram novamente quites: inventaram a imprensa.) Mas nós, que não somos jesuítas nem democratas, nem mesmo alemães o bastante, nós, bons europeus e espíritos livres, muito livres, nós ainda as temos, toda a necessidade do espírito e toda a tensão do seu arco! E talvez também a seta, a tarefa e, quem sabe? a meta...." 

Retirado do livro "Alem do bem e do mal", da editora companhia de bolso e do ano 2005. de F. Nietzche.