Da luta antimanicomial à luta antiprisional


No dia 18 de maio comemoramos o dia nacional da luta antimanicomial. Tal data ganha seu sentido no contexto das mobilizações e conquista do SUS e também da reforma psiquiátrica. Esta última tem a pretensão de terminar com a exclusão causada pelos manicômios. Ainda que com suas especificidades, a luta antimanicomial é também a luta contra a exclusão e a opressão advinda da “normatividade” social e suas formas de reprodução, sendo estas diretamente vinculadas ao modo de produção vigente e a luta de classes.

Um resgate sobre a loucura e sua construção...

Dentre tantos trabalhos em cima do tema da loucura talvez um dos mais significativos tenha sido o de Foucault, denominado “A história da loucura”. Neste clássico, vemos como a loucura passa por suas diversas vicissitudes de acordo com a cultura e a forma como a sociedade se organiza. De oráculos e encarnações de deuses para vagabundos improdutivos, a condição de “louco” passa a existir para manter a ordem dos sujeitos. Tal etiqueta, com o tempo, passa a ganhar respaldo pelo saber médico que passa a teorizar sobre a loucura, entendendo os comportamentos “anormais” como um fenômeno em si, desconectados de uma sociedade que em determinado momento tem necessidade de sujeitos com um perfil disciplinado e dócil para que possam exercer seu papel como mão de obra. Assim, determina-se o “normal” e o “desviante”. Esta postura levou (ainda leva) a séculos de reclusão e exclusão daqueles que, por vários motivos, não tem interesse nem disposição a adequarem-se ao modo de vida e aos valores hegemônicos preconizados pela sociedade.

Tal contexto promove a existência dos manicômios, outrora depósito de todo material humano indesejável para esta sociedade e que vira o espaço “privilegiado” para o “tratamento” da loucura. Não nos falta material para vermos a precariedade destes locais e os maus tratos que praticavam. Ao longo da história, sujeitos indignados com estes horrores resolveram levantar bandeiras contra estas instituições, vindo a promover diversos movimentos, sendo um deles especial: o italiano. Este representa 2 grandes avanços: a entrada da cidadania como fundamental em um projeto terapêutico e a radicalidade de erradicar os manicômios, entendendo estes últimos como não sendo espaços que promovem a saúde e que não conseguem dar conta de colocar a sociedade em contato com suas próprias contradições, impedindo que se entenda a loucura dentro de um contexto que extrapola ela própria enquanto um desvio dado, individual e inquestionável. Bebemos direto desta fonte e, no Brasil, lutamos contra os manicômios e pela consolidação de uma rede substitutiva, que coloque a sociedade para refletir e exercer seu papel no lido com as diferentes formas de ser.

Dos manicômios para as prisões

Se concordamos com os marcos acima mencionados, é mister observarmos paralelos fundamentais entre este tema e a prisão, entendendo que esta, enquanto instrumento de opressão e violência, representa hoje grande empecilho tanto para uma prática psicológica que promova saúde e respeite a integridade e singularidade humana quanto a construção de uma sociedade mais solidária. Analisemos o bandido e o louco: em primeiro lugar, ambas etiquetas recebem um corte de classe. Não existe presidiário “colarinho branco”, com cabelos e olhos claros, limpo e com dinheiro. Da mesma forma, o “louco” (e o criminoso) não é o político que determina massacres em favelas, o diretor prisional que tortura pessoas ou o parlamentar que rouba uma população inteira para seu próprio prazer e cheirar cocaína. Doido é quem vai no CAPS, que tem problema com bebidas e uma vida difícil. É o “crackento”. Podemos resgatar Gramsci e afirmar: os “doentes mentais” e os criminosos “de verdade” são aqueles oficialmente rotulados pelos “intelectuais orgânicos” (psiquiatras ou juízes), que possuem uma posição de poder e uma formação alinhada com os grupos que detém a hegemonia política. Desta forma, estas rotulações perdem seu caráter de justiça ou neutralidade e adquirem um papel de exercício de controle fundamental na sociedade, na prática servindo apenas para as camadas mais marginalizadas do povo brasileiro, em especial o trabalhador preto e pobre. Estes, com a força destes rótulos, são mantidos à margem pois são culpabilizados pela sua situação de vida e precarizados enquanto mão de obra, garantindo um excedente de trabalhadores extremamente mal valorizados e miseráveis, normalmente vivendo de bicos, subempregos ou dependentes de políticas assistenciais. Estes rótulos oficializados por autoridades auxiliam na legitimação de internações compulsórias, assassinatos, prisões em massa, redução de maioridade penal ou a tortura. Tais atitudes servem para disciplinar, pela força e pelo exemplo, àqueles que em seus corpos e ações sintetizam sintomas de nossa própria sociedade. Cumprem também um papel ideológico, dificultando a visualização e reflexão sobre problemas coletivos e sociais, reduzindo-os a questões individuais ou até orgânicas e, consequentemente, distanciando a população do controle sobre estes. Em suma, servem para garantir e reproduzir a posição oprimida e passiva dos amplos setores afetados pelas contradições de uma sociedade doentia e excludente. Vale mencionar, por cima, que estas formas de controle apontadas também têm papel mercadológico fundamental, criando todo um contexto onde empresas que lidam com a segurança ou fármacos podem parasitar do sentimento vivenciado pelo grande público diante destes temas.

Por fim, tanto a prisão quanto o manicômio deveriam cumprir a função que historicamente jamais cumpriram: a de “readequar” as pessoas, colocá-las de volta na sociedade devidamente educadas e docilizadas. Ao longo dos anos, vimos que o manicômio apenas reproduz a loucura da mesma forma que a prisão reproduz a violência. Estas instituições sempre foram lugar de tortura e dor, sustentadas pelo ideário legitimador de ciências como a Psiquiatria e a Criminologia, que garantem que estes sujeitos precisam de ajuda ou de punição pois são, oficialmente, desviantes e inadequados para a sociedade e portanto precisam dela ser removidos. Aqui o afastamento da sociedade e de seus problemas é físico, e ela se perde novamente do papel fundamental de reflexão e resolução de suas contradições, ficando a mercê dos “especialistas”, detentores da verdade e da cura destes males. Novamente entra a questão ideológica.

Pelo fim das prisões!

Quando Basaglia escreve “A instituição Negada” apresenta uma tese fundamental: é preciso negar a instituição não só enquanto estrutura material, mas como categoria internalizada no agir e pensar dos sujeitos. Para ele é necessário promover o fim do manicômio não apenas dentro do “doente mental” mas sim, também, nos profissionais e no cidadão que carrega a instituição dentro de si e reproduz, pelas suas atitudes, a lógica da exclusão. O convite agora é o de negar também a prisão dentro de cada um de nós. Isto nos leva a dois desdobramentos iniciais: o primeiro é nos implicarmos em uma formação que absorva a lógica dos direitos humanos e da criticidade, fundamentais para exercermos nossos juízos e pareceres, negando a lógica da exclusão, do preconceito, da violência e do imediatismo presente em todos nós. O segundo é negarmos o papel de sujeitos passivos que estas instituições nos impõem, de forma que consigamos construir cada vez mais formas de empoderar a nós mesmos e a sociedade a lidar com seus problemas, abrindo mão de deixar para o Estado ou terceiros resolvê-los e construir efetivamente a cidadania e a execução dos direitos humanos.

Há aqueles que acreditam que isto seja impossível; os que acreditem que não é incumbência do psicólogo implicar-se na mudança social ou pautar temas como o tratado, devendo evitar adentrar no embate político e dedicar-se exclusivamente ao exercício da profissão, deixando essa tarefa aos “elementos mais engajados” da sociedade. Com os desacreditados, demarco minha discordância: como estudiosos do processo de subjetivação humana nosso lugar profissional, humano e ético é justamente no exercício e promoção deste tipo de problematização, removendo debates como o das prisões/manicômios do campo extremamente reduzido da penalização/medicalização/punição e trazendo-os para os marcos sociais e políticos, contribuíndo diretamente para o fim da exclusão e a promoção da cidadania, auxiliando em um sempre constante processo que podemos tranquilamente denominar como emancipação humana.

Estejamos juntos nessa empreitada! Um grandioso 18 de maio! Pelo fim da opressão e por mais solidariedade!
Luís Giorgis Dias (Bagé) – 8ª fase