MANICÔMIO: PRIMEIRO COMO TRAGÉDIA, DEPOIS COMO FARSA!


No dia 29 de abril ocorreu, na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, uma audiência pública na qual foi pautada a atual política de saúde mental. Nela foi possível ver claramente dois projetos em disputa: os militantes da reforma psiquiátrica, em sua maioria usuários e profissionais de saúde, e os militantes da contrarreforma, em sua maioria trabalhadores que possuem respaldo da categoria médica e das comunidades terapêuticas. E como estes setores tem argumentado?

Parte da argumentação é a de que atualmente os hospitais psiquiátricos estão modernizados em suas tecnologias tanto de cuidado quanto de estrutura. Sua principal manifestação se dá pela tentativa de diferenciar manicômio de hospital psiquiátrico. O primeiro não seria um espaço multiprofissional e iluminado pela ciência, enquanto o último seria a expressão de um hospital de ponta, mas com o foco em saúde mental. Por exemplo: não temos mais eletrochoque, mas sim Eletroconvulsoterapia (ECT). Joguetes semânticos como esses evidenciam a tentativa de retomada do hospital psiquiátrico através da afirmação de que hoje em dia ele não é mais tão "feio" quanto antes; "está mais bonito", inclusive nas nomenclaturas. Apresentam os manicômios  com uma “roupa nova”, "humanizados", como dizia um cartaz na audiência: "O São Pedro tem tratamento". Sustenta-se também na naturalização do modelo hospitalocêntrico, visto que se argumentou que em todos os lugares do mundo existem hospitais psiquiátricos. Por fim, há a linha argumentativa que alega a existência de uma enorme demanda de internações para os desassistidos, problema supostamente criado pelo fato de que a rede substitutiva não conseguiu se consolidar; que a reforma falhou e liberou loucos sem assistência. Foi enfatizado pelo próprio coordenador estadual de saúde mental de que essa demanda está especialmente em adictos e moradores de rua, vítimas de uma "epidemia de drogas" - citada pelo coordenador -que merece ser combatida. Chegou a invocar a égide da verdade bíblica para sustentar sua cruzada contra a doença mental.

É importante deixar claro que ambas argumentações são falaciosas; é a tragédia que ressurge como farsa. No que se refere à demanda por internações devido a não consolidação da rede, temos aí um problema real, em parte, mas que de forma alguma tem como solução a reativação de manicômios. Sabemos que  a precarização do SUS e seu sucateamento é uma prática comum de governantes que possuem envolvimento com qualquer setor que lucra com a saúde, seja de planos de saúde, de laboratórios ou de comunidades terapêuticas - setores que, vale citar, financiam muitos candidatos. Fazer com que o Estado não cumpra sua função e criar um vácuo para que o privado possa parasitá-lo é algo que não é novidade e têm acontecido já há décadas. Um governo que diante de uma rede desfalcada e da argumentação de corte de gastos estabelece como prioridade fechar residenciais terapêuticos e enfraquecer a rede, enquanto ao mesmo tempo opta por reativar os hospitais psiquiátricos, evidencia que não se trata de um problema meramente de gestão; não é um grupo que pensa a saúde de forma estritamente técnica, como se quis dar a entender nas falas do coordenador e de um dos membros da casa. Não! Trata-se justamente de uma decisão política. Culpar a reforma psiquiatrica por problemas que foram criados por governantes como estes é não só um erro, mas também outra manobra política. Por que a solução é necessariamente mais manicômios ao invés de mais leitos em hospitais gerais para internação, mais CAPS e mais rede? (a qual, vale lembrar, vai para além de dispositivos de saúde).

Quanto à suposta atualização das práticas manicomiais, peguemos como exemplo a própria postura dos partidários do manicômio na audiência. Ela evidencia a prática manicomial: vaiaram e desmereceram o breve teatro que se propos a intervir sobre a temática (houve enorme rebuliço porque os atores subiram na mesa), se recusaram a mudar de lugar para ampliar a participação social na audiência e sugeriram a um usuário que foi falar no microfone que ele se internasse, por mais lúcida que fosse sua fala. Estas posturas demonstram bem as características que historicamente acompanham e sempre vão acompanhar o método asilar de cuidado: repúdio à diferença ou qualquer sinal de rompimento com a ordem, antidemocratismo e rebaixamento constante daquele que é "tratado", sempre reduzido ao transtorno e  suas potencialidades reduzidas a sintomas. Mas a verdadeira função do manicômio, que o acompanhou e acompanha desde seu nascimento, não é a questão da cura. Esta a rede dá conta. Trata-se de sua função como dispositivo de controle moral e social, novamente: uma questão política.

Quando o Coordenador Estadual de Saúde Mental associa e prioriza a necessidade de se construir manicômios como um remédio para as drogas e para atender a população prisional e a de rua, ele demonstra justamente a função do manicômio como a da "limpeza social dos desviantes". Evidencia como o manicômio tem imbricado em si uma questão de classe e de cor: ele precisa existir para internar pobres, que em nosso país são em maioria negros. A redução de um problema socioeconômico muito maior e abrangente à ótica do desvio individual e, pior, à cura dessas pessoas prioritariamente através da internação, é só outra evidência da função política do manicômio em nossa sociedade: limpar as ruas dos "doentes", além de uma função ideológica, pois mascara contradições socioeconômicas na medida em que reduz a vida nas ruas e o uso de drogas apenas à sanidade mental.

É neste terreno que acontece a disputa central: enquanto algumas pessoas pensam o cuidados a partir de práticas fascistas e higienistas, outras acreditam na promoção da diversidade, na aceitação das diferenças e principalmente nas liberdades individuais. Uma ótica de exclusão contra uma ótica de inclusão. O tratamento fechado versus o tratamento em liberdade. Não nos interessa se na Suiça ou em Cuba existem manicômios. Nos interessa valorizar essa rica produção nacional, que é a extinção dos hospícios, a tentativa de desmontar o estigma da loucura e o desafio de cuidar em liberdade e, acima de tudo, em rede. Nenhum passo atrás!

Coletivo de Residentes EducaSaúde/UFRGS