Quando
ouvi pela primeira vez a afirmação de Paulo freire à respeito de que estudar
seria um ato político, não entendi. Estava na segunda fase da graduação e
embora tenha achado a frase muito bonita, não absorvi seu verdadeiro conteúdo.
O que ele queria, no entanto, era dar seguimento à ideia marxista de praxis.
Hoje
resolvi ler de novo trechos do pequeno livro de Freire que se chama "A
importância do ato de ler". Na página 13, deparei-me então com o seguinte:
"A
um ponto, porém, referido várias vezes neste texto, gostaria de voltar, pela
significação que tem para a compreensão critica do ato de ler e,
conseqüentemente, para a proposta de alfabetização a que me consagrei.
Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a
leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me
referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está
sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da
leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e
dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas
por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescreve-lo”, quer dizer, de
transformá -lo através de nossa prática consciente."
No
mesmo ritmo de Paulo freire, Vladimir
Safatle, em "A Esquerda que não teme dizer seu nome" (2012) apresenta
ideia muito semelhante, quando ao resgatar a clássica marxista de que os
filósofos dedicaram tempo demais a interpretar o mundo e não a mudá-lo, faz um
adendo de Heiddegger: o pensamento age quando pensa. Pois
"ele é a única
atividade que tem a força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um
problema (p.17)", o que abriria brechas para a visualização da raiz dos
problemas que nos deparamos, nos permitindo enxergar novas e infinitas possibilidades
de resoluções. [1]
É comum que, pela ânsia revolucionária, muitos
de nós não façamos do estudo um ato político e revolucionário, olhando ele como
uma espécie de etapa do processo da praxis,
onde se seguiria a lógica de estudar para depois fazer. Talvez seja por
esse tipo de leitura e a incompreensão de que o ato de estudar deve e pode ser
em si um pensar-agir que tenhamos tantas leituras manualescas sobre a revolução
comunista, que normalmente culminam em tentativas de reeditar modelos
organizativos ou processos revolucionários de séculos passados em nosso tempo
presente. O não uso da leitura ou da escrita como uma possibilidade de vermos
nossa concepção de mundo e reeditá-la não leva à criação, mas a uma repetição
desta mesma leitura ou à estagnação. Como ele mesmo alerta "estudar não é
fácil porque é criar e recriar, é não repetir o que os outros dizem. Estudar é
um dever revolucionário (p.33)". O estudo, portanto, deve nos servir
justamente como uma oportunidade de olharmos seriamente para o mundo que
carregamos dentro de nós mesmos. Um mundo que, como diz Gramsci, "é
fruto de um processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma
infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário (1978, p.12)", ao
qual então acrescenta que cabe a nós fazermos esse inventário; e que nesse
processo de "conhecer a si mesmo" (como Paulo faz no início do texto
com suas histórias pessoais) mora o início da elaboração crítica - reside o ato
político.
Aos que carregam ainda os sonhos revolucionários
dentro de si, façamos sempre do estudo um ato político!
Referências:
FREIRE, P. A importância do ato de ler em 3
artigos que se completam. Editora Cortez, 1989. [http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/paulofreire/paulo_freire_a_importancia_do_ato_de_ler.pdf]
GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História.
Civilização Brasileira, 1978.
SAFATLE, V. A esquerda que não teme dizer seu
nome. Três estrelas, 2012.
[1]
Arrisco pontuar que essas formulações também nos dizem muito sobre o
processo de elaboração psiquica que pode acontecer dentro da psicoterapia, mas
deixemos isso como uma reflexão em aberto.