COLOCAÇÕES SOBRE MEU PRIMEIRO ANO COMO PSICÓLOGO

Completei o curso de Psicologia em Agosto de 2014. Cerca de 2 meses depois retirei minha carteira de Psicólogo. Neste fim ciclo acredito que seja pertinente um escrito sobre como foi este meu primeiro ano atuando como Psicólogo, para partilhar com meus futuros colegas e já colegas de profissão um pouco do nosso fazer. Saliento também que falarei mais da experiência clínica e da riqueza desta dentro da atenção psicossocial e com as pessoas que dela dependem, mas acredito que a abrangência deste nosso fazer faz com que o que aqui escrevo possa servir para outros campos em que atuamos.

Antes de tudo, uma constatação objetiva a partilhar. Consegui sair da graduação e ingressar direto no trabalho através da aprovação em uma residência multiprofissional em saúde mental. Importante dizer que não acredito que isso represente a maioria de nossa categoria hoje. Não vejo colegas que saem da graduação e logo emendam algum tipo de emprego. Percebo que a concorrência dentro da Psicologia está grande (muitos candidatos por vaga) e que há de fato um número considerável de pessoas já formadas e ainda na labuta por um trabalho – muitas vezes ou quase sempre mal remunerado e sem recursos. Eis questões que propositalmente deixo em aberto e que merecem a atenção dos novos profissionais e de reflexões pertinentes por parte da categoria.

Dadas estas considerações, sigamos! Neste primeiro ano como profissional tive a oportunidade de trabalhar em um CAPS AD III e um CAPS II, dois dispositivos tidos hoje como centrais dentro das políticas públicas de saúde e da consolidação da reforma psiquiátrica. Afirmo-vos: a transição do mundo universitário para o trabalho com a população é problemática. Isso acontece por uma infinidade de motivos, mas quero focar em um que considero mais palpável: a universidade não prepara para a realidade que vive nosso povo. Seu distanciamento das necessidades sociais e do próprio povo leva a um foco em pesquisas sem sentido e de um ensino e extensão importados ou alienígenas, desencadeando em uma formação que não instrumentaliza para os desafios práticos que surgem tanto do contato com o elemento popular e marginalizado quanto o de construir a profissão Psicólogo brasileiro. Longe de mim achar que a formação dá conta de produzir um profissional perfeito, não é disso que se trata minha reflexão. Trata-se de apontar uma formação como um intelectual orgânico, ou seja, alguém que sai com uma bagagem teórica e prática muito alinhada com a ideologia dominante e voltada para um determinado tipo de sujeito, o que tende a produzir um profissional que não dialoga com o elemento popular, mas tenta sempre de alguma forma ou tutelá-lo ou enquadrá-lo em um conhecimento muitas vezes produzido alhures. Por mais crítico e “humanizado” que tenha sido meu percurso teórico e prático, deparei-me comigo mesmo agindo dentro de uma caixinha; aprendi na faculdade a escutar, mas não a me encontrar com pessoas de forma genuína. Penso que isso não é nada mais que um desdobramento da petulância acadêmica que nos envolve e que faz com frequência que nos coloquemos no patamar de alguém que sabe diante de um outro que não sabe. Dentro do curso de psicologia e mesmo em espaços alternativos vi muito sobre escuta e sintomas, mas pouco sobre alteridade e pensamento – e tenho certeza que os poucos bons professores que trabalham isso não se sentiriam ofendidos com isto que digo. Foi amparado em um poema de Bretch (“Nada é impossível de mudar...”) e em reflexões psicanalíticas (não aquelas que discutem se “é ou não é psicanálise”) sobre a centralidade da clínica no (re)fazer profissional que fiz esforço para transitar deste lugar para algum outro.

Esta deformação foi acontecendo na medida em que me vi realizando coisas inusitadas e inesperadas pela clínica convencional, mas tendo melhores resultados que as tentativas clássicas e ambulatoriais. Quando, por exemplo, convidar um usuário “refratário” para me ensinar a receita de um bolo de laranja desencadeou em um acolhimento muito melhor e mais detalhado, com nenhuma resistência para ser atendido e eventual aproximação do CAPS. Ou quando ser convocado a dançar durante a atividade de convivência desconstruiu em ato o estigma de incapaz de uma usuária tida como “inadequada pro CAPS” e causou muito mais aproximação, relatos de vida e emoções através das músicas, entre ela e todos da casa; quando através de uma gaita de boca pude me aproximar profundamente de projetos de vida e de histórias; ou quando fui chamado de amigo por usuários que nunca “atendi” e não achei isso problemático, na medida em que eles próprios indicaram o quanto isso era muito mais eficaz e fazia bem para eles do que outras abordagens – todos eles, ao longo das conversas, falaram dos percursos com o uso abusivo de substâncias, tudo isso sentados em um banco, na sombra, embaixo de uma árvore. A clássica frase de Jung, sujeito que sempre considerei místico demais, se fez finalmente entender para mim de fato. Diz ele: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. É possível ter um entendimento superficial e banal desta grande colocação, mas foi lapidado pela prática, pelos sorrisos, pelas trocas, pelas emoções – pelos encontros - que percebi que, mais do que “interpretaços” ou uma supremacia intelectual-acadêmica, é no campo do encontro e do afeto que se produz saúde mental. Entendi que além da práxis precisamos estar munidos da poiesis, esta arte de fabricar/criar coisas. Nenhum livro ou teoria nos tornará de antemão necessariamente preparados ou aptos para o cuidado com alguém – estão aí para provar isto muitos técnicos “de fora” da saúde e da faculdade, como profissionais da limpeza e da segurança, que “cuidam” e são considerados mais terapeutas que gente bem formada.

Este esforço foi sendo e está sendo feito. Tive a oportunidade de atender os mais diversos segmentos, de famílias de renda mediana a gente sem moradia e sem família. Crianças, adolescentes, adultos e idosos – inclusive todos juntos e misturados. Pude ter o privilégio de discutir casos com as mais variadas formações e visões. Foi o impacto academia x população que possibilitou e ainda possibilita a formação e a fabricação de uma clínica que dialogue com o sofrimento de quem vive no subdesenvolvimento. Precisamos nos aproximar mais deste contato, para além dos questionários e pesquisas formais, mas fazer do cotidiano brasileiro campo primordial do ensino na psicologia e lugar privilegiado da construção de nossa profissão[1]. Eis aí uma preparação digna para nosso trabalho.

Por fim, uma última colocação política: a crise de nosso sistema representativo e a constante liberalização do nosso Estado está cada vez mais evidente. Não é só a reforma psiquiátrica que entra em xeque todos os dias, mas sim direitos que foram conquistados com suor e sangue por brasileiros em luta. É também a abertura para com as pessoas que dependem e se beneficiam até hoje mais diretamente destas garantias que se adquire uma formação ética e comprometida com o fazer político, com a luta. São os vínculos com estas pessoas e suas histórias que contribuem para a “humanização” e criam terreno fértil para a formação de psicólogos e profissionais comprometidos com a cidadania, democracia e direitos humanos. Da minha parte, posso dizer que estes caminhos produzirão os resultados que se fazem urgentes para nosso país.






[1] Do “Consultório na rua” para a “Sala de aula na rua”! Mais atenção aos estudantes secundaristas que ocuparam escolas! Dizem muito sobre ensino.