Uma experiência de autogestão pedagógica - Coletivo Acadêmico Interdisciplinar da Saúde (CAIS)

Este é um texto que gostaria de dedicar, acima de tudo, aos estudantes e jovens. Eles conseguem, melhor do que qualquer outra categoria, se guiarem conscientemente e inconscientemente pelos preceitos libertários, revolucionários e criativos - são demasiado humanos e saudavelmente desobedientes. Este é um texto sobre um grupo de estudantes que decidiu se reunir pra estudar o que queria, já que a formação medíocre deles não dava conta de uma formação que tivesse um compromisso com as necessidades dos trabalhadores brasileiros.

Entrei para o curso de Psicologia em 2009, na Universidade Federal de Santa Catarina. Naquele momento minha cabeça estava engessada em apenas uma perspectiva de Psicologia: a clínica clássica. Foi ao longo do primeiro semestre que pude ter contato com outras perspectivas, mas uma me chamou atenção: a da psicologia dentro da saúde pública. O que me atraiu para este tipo de trabalho não foi nenhum conhecimento técnico, apenas um desejo genuíno de trabalhar com a população. Foi na medida que desenvolvia meu interesse por estudar Sistema Único de Saúde (SUS) que tive contato com uma veterana que também gostava de SUS. Na época nosso currículo não tinha nenhuma disciplina sobre o mesmo - o que o deixava a mercê do interesse particular de algum professor ensiná-lo. Ela me chamou para uma reunião que acontecia no Centro de Ciências da Saúde, pois queria que eu conhecesse outros alunos que tinham os mesmos interesses intelectuais e políticos que a gente e que se encontravam para conversar sobre isso. Não pensei duas vezes e fui.
Chegando neste espaço me deparei com estudantes de outros cursos: enfermagem, odontologia, medicina, nutrição e farmácia. Em nossas reuniões filosofávamos sobre SUS, sociedade e Brasil por um viés crítico ao capitalismo. Quanto mais conversávamos sobre isto, mais forte ficava dentro de nós a ideia de que nossa formação não dava conta disto que desejávamos. Que ela era atrasada e que seguia moldes rígidos, que impossibilitavam a formação também política dos alunos.  Nos reuníamos sempre no final da tarde, por volta das 18 horas. Não lembro de me sentir cansado dentro deste espaço! Na verdade era revigorante: ali havia uma aprendizagem significativa.

Nosso laço se dava através deste compromisso político. Aos poucos fomos nos estruturando como coletivo, organizando nossos horários de encontro, lugar e dia da semana. Nós decidíamos o que iríamos ler/assistir/conversar. Algumas vezes era um colega que organizava o espaço e trazia alguma discussão, outras vezes chamávamos pessoas de fora para ter um momento de conversa com a gente. Essa última opção era a menos utilizada, ficando a troca de saberes, práticas e afetos mais ao encargo do coletivo. Estávamos fazendo aquilo não só porque queríamos, mas porque entendíamos que este conteúdo era imprescindível em uma formação bancada com o dinheiro da população, que em sua maioria depende do SUS - e por isso precisa de profissionais qualificados e alinhados com o mesmo. O espaço era nosso e não havia hierarquia: apenas a horizontalidade estudantil. Nas reuniões dávamos conta de nosso próprio lanche e cuidado: fazíamos dinâmicas de grupo, chás, dividíamos comida e quase sempre após o espaço fazíamos algum momento de descontração que ia desde beber e dançar a até tocar com instrumentos dos Centros Acadêmicos ou Atléticas.

Dado certo acúmulo do grupo, percebemos que não nos bastava só estudar e que era necessário intervir em nossos cursos. Já que não haviam espaços mais democráticos e politicamente comprometidos com o SUS na universidade, decidimos criá-los! Realizamos debates e filmes em espaços que denominamos "círculos de saúde". Fizemos inclusive uma Jornada da Saúde, que mal teve apoio da universidade: só cedendo um auditório. Nós que fizemos os materiais de divulgação, organização do espaço, metodologia etc. Forjamos espaços políticos e educativos dentro da universidade. Eventualmente nosso coletivo cresceu, incorporando pessoas de cursos como Economia, Ciências Sociais etc.
O CAIS perdurou por algum tempo e mantivemos nossa auto formação e compromisso político. Desdobrou posteriormente em uma organização para os Centros Acadêmicos da Saúde, o que fez com que gradativamente ele perdesse seu teor auto gestionário e educativo e passasse a ter um formato mais rígido de organização e disputas políticas externas e internas. Também fortaleceu pautas de reformas curriculares nos cursos.
Por algum tempo fomos criticados por sermos acadêmicos. Bobagem. Nosso compromisso era político e tinha relação direta com os trabalhadores, o SUS e a própria universidade. Naquele espaço coordenamos nossa própria formação sem depender de professores. Pensamos nossas próprias intervenções e tentamos atrair a comunidade para dentro da universidade. Tudo o que sei sobre SUS hoje é por causa da base que tive tendo trocas diretas com meus colegas.


Quero com esse relato saudar meus antigos colegas, mas principalmente dizer ao estudante: organize-se independente da sua faculdade! Forme com seus colegas espaços de troca e de aprendizagem. Professores não são obrigatórios para aprendermos! Exerçam a autonomia e a desobediência, façam organizações paralelas e construam de fato sua própria formação e compromisso político crítico. Dêem sua cara a estes espaços e não reproduzam a mesquinharia autoritária e verticalizante como pregam ideologias empreendedoras ou pautadas na meritocracia. Vamos construir outra perspectiva de educação via uma práxis libertária, como é o verdadeiro espírito humano e das classes subalternas!