Crônicas Detestáveis de Tomás IV - Ambiguidades

Aldir e Joice são um casal de um bom bairro central de uma capital. Vivem uma não tão feliz vida conjugal, que para ambos já se tornou mais uma espécie de empresa do que propriamente amor. No fundo eles sabem que são mais sócios do que amantes - aprenderam isto em uma sessão de coaching.

A rotina e a vida deste casal é interessante: acordam pela manhã e quando começam a tomar seu café sempre escutam uma vizinha da frente brigando com sua filha. Suzana (a vizinha da frente) berra muito alto com a filha e a desmoraliza das mais variadas formas. Ela também bate tão forte na criança que dá pra escutar os tapas, os berros e os choros da filha, que ecoam pelo prédio e por parte da vizinhança. Já virou rotina para eles assim como o convite para matear com Suzana nos dias de descanso e de sol.

Já no almoço eles escutam as brigas de Érico e Ana. Parecia brincadeira, mas era só colocar o feijão na boca que se escutavam as agressões e começava a pancadaria: ambos se agrediam muito, mas quem aparecia roxa era sempre Ana. Escutavam seus choros e lamentos e uma vez até ouviram Érico ameaçar ela com um revolver. Aldir e Joice se incomodam um pouco com essa situação e quando saem para almoçar com eles no domingo tentam não falar sobre isso e focar em coisas positivas (outra dica que eles leram em um livro sobre auto ajuda e empreendedorismo), pois acreditam que dessa forma podem tornar Ana mais feliz.

Quando chega a janta, Joice se retira um pouco para terminar coisas do trabalho e Aldir assume a cozinha, pois tem tentado desconstruir um pouco seu machismo. Enquanto ele prepara a janta é comum escutar Filomena com sua fala enrolada berrando com sua doméstica, a dona Rutinei. Ela chama Rutinei de preta incompetente que só quebra as coisas dela. Ela bate a porta e segue resmungando sozinha. Aldir fica meio chateado, mas entende a situação: Filomena tem um probleminha de ficar agressiva quando bebe e a pobre Rutinei, que já é idosa, de fato deixa escapar uma coisa ou outra da mão. "Tudo certo"- pensa ele.

No fim do dia eles gostam de ir para a sacada fumar e olhar o movimento. Eis que então observam um sujeito encapuzado pichando as paredes da rua em pleno início de madrugada. Joice arregala os olhos e berra da sacada: -"OLHA ESTE VAGABUNDO! VAGABUNDO! VAGABUNDOO!". Aldir também complementa: "SEU FILHO DA PUTA! VAI TRABALHAR VERME!". Assim que termina o berro ele começa a descer pela escadaria enquanto o pichador já era apanhado na rua por Érico. Somam-se na volta do jovem pichador todos os moradores, com exceção de Joice e Suzana que berram todo o tipo de impropério para o rapaz e sugerem que ele seja amarrado. Assim que chega em meio à muvuca, Aldir prontamente assume o papel de uma espécie de mestre de cerimônias e começa a interrogar o rapaz, lançando perguntas e olhando para a pequena massa ao seu redor, que aprova cada uma das perversas perguntas que deixam o jovem de olhos arregalados. Algumas pessoas sugerem espancar, outras sugerem amarrar e outras já estão cuspindo nele. Depois de pensarem, decidem pelo suplício: Aldir viu na TV que a polícia faz os jovens engolirem o bico de seus sprays. Ele dá um tapa no rapaz, pinta a sua roupa e manda ele engolir a tampinha. O rapaz, chorando e humilhado, prontamente engole a tampa e é solto pelo pequeno grupo de justiceiros urbanos. Os vizinhos comemoram a justiça feita e comentam o quanto o governo não garante nada e seria bom eles se cuidarem. Ao fim, marcam uma cerveja na casa de Érico.

Aldir retorna para a cama com Joice e por ela é recebido como um herói. Sentem-se aliviados por terem ajudado a limpar um problema social e se entregam ao sono com calma e serenidade. Na parede fica a mensagem: "+ amor, por favor".