O SUS sofreu uma série de ataques ao longo deste governo, mas desde o lançamento da nova proposta relativa ao uso abusivo de Álcool e outras Drogas está nítido um interesse particular em destruir os avanços produzidos pela reforma psiquiátrica. Consolidada com a Lei 10.2016, a reforma psiquiátrica, diferente do que prega o corporativismo da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), nunca foi uma reforma voltada a prejudicar os profissionais da Medicina. Sua proposta foi trocar o modelo de assistência focado na hospitalização pelo que chamamos de “cuidado em liberdade” e teve como central nessa proposta a criação dos Centro de Atenção Psicossociais (CAPS).
Essa estratégia partia das críticas aos horrores dos manicômios e de uma noção de saúde a partir de sua dimensão coletiva: a saúde mental não se resume às iniciativas individuais de quem experiencia a loucura (psicoterapia, tomar remédio etc), mas deve ser compreendida a partir da integralidade posta nos princípios do SUS. Sendo assim, cuidar de quem passa pelo sofrimento em saúde mental implica na fomentação e criação de redes de apoio que envolvem trabalho, família, amizades, moradia, alimentação etc. Foi de fato um golpe no modelo hospitalocêntrico e no saber-poder médico, pois agora a saúde mental deixava de ser exclusiva desse tipo de lugar e passava a ser compreendida a partir da lógica do território e também como parte de outros dispositivos de saúde. Essa reforma aconteceu porque loucos militaram pelo direito de construírem suas vidas apesar de sua diferença e com isso fundaram um outro modelo assistencial, mesclando o tratamento com a possibilidade de exercer a própria autonomia.
Mas meu texto não vem para aprofundar nisso, fica nos comentários indicações de leitura que acho pertinentes sobre. O que venho reforçar é que não podemos compreender essa estratégia de retomada de manicômios separando-a de uma análise que envolva algum grau de economia política. Sabe-se faz mais de século que os manicômios ganharam força e prestígio justamente pela função social que adquiriram: isolar pessoas em contravenção com os valores de uma sociabilidade capitalística e que por sua condição e condutas significam um risco social, seja por mostrarem as falhas dessa sociabilidade ou seja por se comportarem de maneira diferente desses valores. Os que se recusaram a se adaptar foram internados e isolados da sociedade sob a justificativa de serem readequados nos moldes do sujeito “produtivo” demandado pelos valores liberais, instaurando uma prática de higienização a partir da necessidade de adequação a um modo de viver específico. O alvo dessas estratégias, na prática, foram os segmentos mais pobres da população, que no nosso país implica necessariamente em um recorte racial. Como exemplo da internação como instrumento político podemos somar a essa reflexão a dimensão de gênero, visto que não foram poucas as mulheres que foram internadas por causa de sua revolta contra valores patriarcais que acompanham essa sociabilidade (ex: se recusar a casar com quem o pai agendou) sob o pretexto de histeria.
Dito isso, não podemos descolar a retomada radical da estratégia das internações como propõe o governo do momento de crise que nos encontramos. Quando o capitalismo agudiza sua crise os impactos não são apenas em números e algoritmos da bolsa de valores, são também na nossa vida cotidiana. Desemprego e miséria não só produzem adoecimento psíquico, como também geram revolta. Pessoas acabam na rua, iniciam abuso de substâncias (lícitas e ilícitas), se suicidam por perderem seus empregos, entram em depressão diante das cobranças excessivas e da competitividade extrema, se organizam em movimentos sociais, fazem passeata etc. Destaco em especial a pobreza, que se materializa em corpos esfarrapados pelas ruas todos os dias mostrando o fracasso das políticas adotadas.
Em momentos como esse o Estado sempre infla seu braço da segurança pública e faz uso ostensivo da violência para manter a “ordem” e a noção de que “tudo vai bem”. Assim, quando o Estado diz que vai retomar o modelo hospitalocêntrico em saúde mental ele está aproximando a saúde do discurso da segurança pública no sentido de voltar a colocar as pessoas nessas instituições e afastá-las da sociedade.
Essa é a primeira faceta desse tipo de política: conter os danos da crise higienizando a sociedade, sobretudo pessoas pobres e que vivem nas ruas sob a égide de “internar esses viciados”. A segunda é fazer da crise cifrão. O modelo hospitalocêntrico é caro, internações são caras e quando elas se tornam o foco da política pública se produz um efeito que chamamos de “institucionalização” das pessoas. Quanto mais se fica em um hospital psiquiátrico maiores as chances de se tornar dependente dele, criando um ciclo que cada vez fica mais difícil de romper.
A quem interessa ficar internando pessoas num giro ininterrupto, senão às empresas de saúde e também as Comunidades Terapêuticas? Esse é um terreno que já está montado, pois não é de hoje que a terceirização na saúde tem se aproximado de entidades religiosas e outras que ofertam internação em fazendas. Esses corpos são indesejáveis no sentido ideológico, mas altamente desejáveis no que se refere aos lucros possíveis relacionados a aumentar o número de internação de pessoas.
É preciso afirmar: A retomada das internações é, dentre várias coisas, mais um sinal de que os tempos serão duros.