Uma aula extensa, metafísica e chata. O professor falando, colocando mil ideias, viajando longe mas mesmo assim captando a atenção de alguns poucos. Boa parte da turma porém desatenta: não entendia, fazia que prestava atenção, tentava dormir, estava pensando na prova de sexta-feira, lendo seus xerox atrasados e todas estas outras coisas que só nós estudantes sabemos o sentido todo. Eis porém que surge uma atividade diferente: um teatro. A ideia era simples: interpretar livremente um sonho do professor podendo modificá-lo a bel prazer. Sorrisos e risos surgiram e a atenção foi captada. Em pouco tempo os estudantes que estavam bonitinhos e obedientes sentados em suas cadeiras em um quadradinho físico limitado logo estavam se levantando, sorrindo, de pé, movendo-se e ansiosos para fazerem a interpretação e o jogo de teatro. O teatro ocorreu (com direito a estudantes se atirando ao chão da sala) e em pouco tempo se restabelecia contato com o lúdico e os corpos e logo após toda turma estava engajada na discussão e aqueles que até então não haviam colocado-se dentro da aula passaram a expor até mesmo seus pontos de vista mais íntimos. O professor incluso. Ainda que dentro de uma lógica que se manteve abstrata, metafísica e girou em torno da interpretação de um sonho do professor a discussão fluiu, houve oxigenação e um tato de vida dentro da sala de aula que é estranho a qualquer pessoa que está desde o primário comprimido em uma cadeira e obrigado a escutar o discurso profético de um docente. Até mesmo eu, rapaz mais pragmático consegui compreender a lógica por detrás da teoria da qual anda me identifico e pouco entendo por vezes a linguagem.
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Nos corredores do hall do CFH um grupo de estudantes trabalha artesanalmente na confecção de um grande cartaz branco composto por folhas brancas. Ao seu redor, as pessoas participam, dão opiniões, ficam animadas. Um varal começa a ser confeccionado também, com o trabalho e a arte de alguns estudantes do curso. Em pouco tempo o grande cartaz branco está pendurado no mural do curso, com duas canetas à disposição e uma simples sugestão: “Permita-se”. Em minutos o bendito cartaz estava rodeado de pessoas escrevendo coletivamente e divertindo-se em cima dele e em questão de 2 dias o grande cartaz branco encontra-se preenchido pelas mais diversas expressões, das mais disseminadoras do amor a até mesmo as mais agressivas, de desenhos e letras de música a até piadas com e sem sentido, versos, conselhos, questões políticas e até angústias. Um simples cartaz branco.
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Casos recentes dentro do curso de Psicologia da UFSC, do semestre 2011.1. Por que estou levantando isto? Para trazer à tona a questão da arte e da cultura como elementos essenciais na emancipação e educação do indivíduo e também em seu caráter integrativo e instrumental em termos da aproximação e da identificação de um coletivo de estudantes. Esta arte e cultura que frequentemente é reprimida, excluída e renegada (há excessões) dentro da academia e de certa forma da sociedade formalizada que temos em funcionamento hoje. Esta que é essencial na libertação das pessoas. A questão da arte e da cultura é ampla. Existe todo um debate em cima dela mas focarei aqui em duas coisas: primeiro como instrumento de emancipação dos corpos através do exemplo da sala de aula e depois em seus fins integrativos e formadores de laços dentro de nosso curso.
A questão da sala de aula
Desde que ingressamos na sociedade formal introjetamos diversas regras e normas que não só remetem ao nosso comportamento mas também aos nossos corpos. A instituição como a escola (e também a universidade) contribui muito para que nos mantenhamos em nossas “bolhas de conforto”, espremidos em nossas carteiras e escutando sem questionamento ou movimento a fala dos professores. Somos também expostos a regras que não nos permitem olhar nos olhos, tocar ou abraçar direito nossos colegas e gente próxima e não preciso dizer que se a distância entre bons amigos já é grande a de desconhecidos ou “semi-conhecidos” (aquele que você sabe que tá lá mas não sabe o nome e igual cumprimenta) é maior ainda. Neste contexto só nos resta trabalhar o intelecto, a mente, o cérebro. Este aprende e o resto fica de fora. Isto é dado de maneira tão recorrente que se torna natural, normal e como se fosse e será sempre desta maneira. Porém momentos como a aula que presenciei nos mostram que as coisas não precisam necessariamente ser assim. Pegando especificamente a atividade do teatro foi possível para que muitas pessoas dentro daquela sala de aula, através da utilização não só de sua cabeça mas de seus corpos e papéis pudessem compreender o raciocínio por detrás da teoria excessivamente metafísica e “viajona” que estávamos estudando. Em pouco tempo a alegria e a disponibilidade da participação dos estudantes apareceu e a aula tomou um rumo diferenciado (ainda que um tanto estranho dado a natureza da interpretação do sonho de um professor).
É evidente o papel crucial que uma atividade artística teve dentro deste contexto. Primeiro pois colocou os estudantes protagonizando a dinâmica da aula e inclusive do teatro; segundo porque colocou além dos ouvidos e olhos também o corpo a serviço do entendimento de uma teoria abstrata o que também remete a uma compreensão melhor do próprio corpo e, por fim, tirou as pessoas do marasmo e as colocou na posição criativa. Isto evidentemente pode ser atingido de outras maneiras mas a questão da arte trata isto de maneira mais simples e extremamente acessível. Ainda assim, se mantém longe do contexto acadêmico. O por que disto podemos conjecturar mas para mim é evidente que tal prática modificaria radicalmente a vida das pessoas e sua percepção sobre si mesmas, sobre suas relações e sobre seu papel e serviço dentro do curso de Psicologia e provavelmente em relação a sociedade e o modelo econômico vigente hoje.
O uso da arte e da cultura de sua maneira mais rústica e simples acaba por servir de um excelente instrumento que fomenta a aprendizagem e a autonomia do indivíduo (tanto é que algumas linhas de pensamento da psicologia usam isto) dentro da sala de aula. Sua importância fica evidente mas ainda assim se mantém distante do estudo sistemático dentro de nosso curso, mesmo sendo instrumento de extrema validez e eficiência na compreensão de sí e de sua relação com o meio ambiente em que está inserido. Que fique para os hippies e os pós-modernos, eles dizem!
Arte & Cultura e a integração do curso
O mural da livre expressão (que são simplesmente folhas de papel branco no mural) deixa evidente a importância de atividades como esta como diretamente proporcionadoras de um ambiente social e divertido entre os estudantes do curso. Novamente um instrumento simples se torna potente na transformação da dinâmica interna do curso de Psicologia da UFSC. Bastava chegar perto do mural para conversar com alguém – mesmo que com pouca intimidade – e logo escrever algo ou dar risada do que alí se econtrava. O melhor é que aqueles rabiscos, para o curso e para quem escreveu/desenhou nele ganham um significado único e de pertencimento. O mural porém não atua apenas como instrumento que cria condições de situações de aproximação entre os estudantes (isto desde sua confecção até a escrita nele) mas também deixa um espaço livre, individual, onde é possível expressar a coisa mais estranha, bizarra, sem sentido ou íntima sem haver um julgamento no ato. Dá a possibilidade de real expressão daquilo que talvez não ache meios convenientes de ser colocado para o coletivo de estudantes do curso. A disseminação da arte e da cultura em nosso curso, bem como a constante formulação de concepções próprias dentro do curso a respeito disso é de importância crucial para que não apenas comecemos a nos enxergar como um grupo maior (ainda que com nossas diferenças) mas possamos também nos conhecer das mais variadas formas. Isto inclui também as festas realizadas ao longo do semestre, a disseminação de um jornal próprio dos estudantes do curso, suas produções, etc...
Quantas condições da formação de laços e vínculos não são suscitadas por atividades como esta?
A arte e a cultura são, portanto, essenciais para a organização estudantil. Sua linguagem proporciona graus de liberdade e autonomia dos quais a linguagem formal e a simples exposição não conseguem sempre contemplar. Precisamos estar mais atentos a este tema pois a lógica pragmática vigente tende a suprimir e denegrir este tipo de atividade taxando-a com diversos adjetivos que a diminuem e alienam toda possibilidade de compreender atividades como estas como possibilidades e superação do “normal” e do “cotidiano”. Deve ser, inclusive, tema de debate para nós como futuros psicólogos pois sua utilidade é imensa na compreensão e análise de relações estabelecidas consigo e com o meio bem como sua modificação e quantidade de benefícios que porporciona.