Ensaio psicanalítico: desamparo, ansiedade e tristeza no capitalismo



     Não é de hoje que trato o mundo de forma pessimista. Talvez a materialidade que impera em meu pensamento apenas enraíze a minha ideia de que o mundo “é como é” e que nos vale, tal como dizia Freud, nos despirmos de ilusões ou fantasias a respeito da vida e aprendermos a vivê-la enquanto o caos, a incerteza e a finitude que é e se constitui, de forma consciente de nossos desejos e dores.
                                                                                                                                                                        Desta forma, para mim tem sido cada vez mais evidente que o século XXI para os brasileiros tem se constituído cada vez mais como o século do sofrimento, do desespero, da depressão e da ansiedade. Conforme consta na epidemiologia de saúde mental brasileira elaborada por Mello e Kohn em 2007, os transtornos mais diagnosticados em adultos brasileiros são: transtornos de ansiedade, fóbicos, depressivos e abuso de substâncias (principalmente álcool). Ainda que considere a forma de diagnósticos utilizada questionável são dados que nos dão um chão para pisarmos, pois nos mostra que daquela parte que busca ajuda no SUS existe uma predominância da ansiedade e tristeza no discurso, condições vinculadas a todos os transtornos colocados acima. E acredito que não nos é necessário consultar livros ou irmos muito além para constatarmos a situação. Nos basta uma noite cercado de pessoas a simples vivência e escuta cotidiana para avaliarmos como a incerteza e a tristeza estão presentes em todos espaços, não necessariamente de forma patológica mas ainda assim como condição imperante na maior parte daqueles e daquelas que lutam por sua existência nas severidades e injustiças do sistema capitalista. Tudo isto materializa-se não somente nas queixas mas também no abuso de substâncias, nos sumiços repentinos, em exposições exageradas (poderia dizer histéricas) nas redes sociais e nos desesperos periódicos que ocorrem entre as quatro paredes de apartamentos e casas, longe dos olhos dos outros. O que se coloca para mim então é o seguinte questionamento: porque devemos viver neste estado de medo? Por que a vida se constitui hoje de forma exageradamente triste ou incerta para a maioria de nós? O que torna nossas vidas tão penosas?

    Fazendo um resgate a Freud chama-me atenção duas coisas: a contradição eterna entre o indivíduo e a sociedade e também o desamparo. Primeiramente, temos o desamparo enquanto situação presente no ser humano desde seus primórdios de existência. Sendo o bebê humano uma das criaturas mais frágeis e carentes de cuidado e atenção nascemos sujeitos a dependência de outros que possam nos atender e acolher, impedindo pelo cuidado que nossa vida seja tomada por forças naturais fora de nosso controle. Porém, esta fragilidade perpetua-se em nosso íntimo psíquico, mesmo quando atingimos a idade adulta. Ainda que com corpos mais formados e adaptáveis às situações, a necessidade de segurança se mantém no homem e só pode ser suprida através da relação com o outro ou através de fantasias que consigam tornar nossa frágil existência no mundo mais tênue e agradável. Freud aponta que desta necessidade e do estado de ansiedade decorrente da sensação de ansiedade (desamparo) surge uma das maiores criações do ser humano: a religião. A religião tem como características primordiais a “Humanização” das forças da natureza que fugiam a explicação e o controle do homem (tal mecanismo de defesa tem por objetivo a aproximação e identificação com aquilo que tememos através de uma projeção), que posteriormente por estarem diretamente associadas ao modo de ser e a estética humana foram questionados enquanto ideais de segurança e poder, vindo a ser condensados numa ideia de um ente super-poderoso na forma de um grande Pai cuidador e justo, zeloso por suas criaturas e que nos oferece uma série de garantias como a vida em paz nos céus, a concretização da ilusão da imortalidade através de uma vida após a morte ou a certeza de um destino feliz. Há de se convir que tal aconchego de primeira impressão é extremamente sedutor a qualquer um de nós, de forma que os céticos rapidamente se colocam a questionar se isso seria possível. De qualquer forma, é através de Deus que o homem cria uma forma de lidar com seu estado desamparado jogando-se aos braços e certezas deste ser magnífico. Aponta Freud em seus textos que surgirá um dia em que a humanidade irá conseguir romper de vez com esta dependência de um ser fantasioso para lidar com sua condição desamparada e irá, através da ciência, percorrer um caminho mais “claro” (no caso, consciente é a palavra), que o guiará através da compreensão de sua situação frágil no mundo de forma não mais vinculada a uma fantasia mas sim através da aceitação de sua condição como ponto de partida para qualquer resolução que surja. É visível em nosso país que há uma grande massa de pessoas ainda apegadas à crenças e valores religiosos, criando algumas das situações mais espantosas frequentemente colocadas de forma crítica na mídia, especialmente as relacionadas aos dízimos e doações (paga-se o que não se tem pela proteção do Pai). Este fenômeno não acontece à toa, mas é certamente um sintoma do desamparo vivido principalmente pelos setores mais marginalizados da população.
       Em contraponto com o que Freud havia colocado a respeito da ciência, podemos também perceber que até mesmo dentro dos setores mais “aculturados” de nossa sociedade (estudiosos, filósofos e cientístas) também nos deparamos com a dúvida e a incerteza. Refiro-me a “onda pós-moderna”, que ao tratar todos aspectos da realidade como “fluidos” e de intensa “volatilidade” caem na negação eterna de tudo que surge, apostando e sustentando-se na fragilidade do saber humano, questionando-o eternamente não encontrando nem através da ciência um caminho que a humanidade poderia seguir nos rumos de sua emancipação psicológica e consciente em relação ao desamparo. O apego com afinco a essa postura, que é essencial mas assim posta é péssima, pode acabar por agravar a situação desamparada através da eterna incerteza de tudo que se cria ou se faz. Se vive no efêmero. Persiste portanto a situação desamparada, não podendo mais nos segurarmos nem mais na ciência. No que confiar? Quais as soluções para este dilema? Carpe diem? Narcisismo? Análise para o resto da vida? Viver exclusivamente do devir? Para mim, a solução vem a partir da consciência de nosso estado e situação nos colocarmos em nosso devido lugar e pensar formas, através de nosso conhecimento sobre nossa condição, buscar sua resolução. É preciso dizer aqui que não nego algo como o devir, pois certamente é fruto de uma aceitação da condição. Mas isso pode abster o ser humano de tomar o papel ativo na realização de seus desejos. Embora não acredite que se estabeleça aí uma relação causal acredito que existe uma tendência a passividade em tal postura.
De mãos dadas com o desamparo temos ainda condições sempre em diálogo com este e que acaba por aprofundar a tristeza e a insatisfação humana: as normas sociais. Criadas para tornar possível uma vida sem a barbárie trazem elas consigo uma série de limitações para nossos desejos mais íntimos. Não posso matar a quem nutro grande ódio, não posso berrar em determinados lugares por mais que eu queira, preciso defecar em locais específicos, não posso ter ou em alguns momentos sequer desejar ter contato com um outro a quem desejo, etc... São todas uma série de convenções que inicialmente se colocam para possibilitar de forma mínima nossa convivência mas que, com as vicissitudes do modo de produção passam a modificar-se e agravar cada vez mais a situação de desamparo e a insatisfação humana. Refiro-me ao individualismo exacerbado do capitalismo, que através de seus mecanismos de dominação introjeta em cada um de nós um conjunto de valores que acaba por impedir o exercício de uma coletividade e amparo. Como se dá este processo está devidamente trabalhado na obra de Marx e chama-se “fetichismo da mercadoria”, que embaça a visão do homem e o impede de ver e consequentemente ter de admitir sua dependência – que não apenas é psíquica mas também material através do trabalho, sendo este, quando exercido de forma coletivizada, condicionante também da possibilidade de se ver e aceitar a dependência e a resposta de muitos problemas em nossos semelhantes. Esta condição alienante (a do fetichismo), cada vez mais bem elaborada e evoluída, só torna a vida mais insuportável e incerta e acaba por legitimar uma outra fantasia criada para se suportar a dura existência neste sistema doentio. Faço alusão aqui a uma resposta digna do Capital ao sofrimento humano:o mito robinsoniano contemporâneo (americano) do “Self-made man”, que no ápice do individualismo e na crença em si resolve todos seus problemas pessoais e materiais sozinho, pois é forte, determinado e um exímio empreendedor em sua vida pessoal e profissional, o que nada mais é além de outra fantasia que nos impede de nos colocarmos na situação de seres conscientes dos determinantes de nossa condição de sofrimento, tal qual como deveria ser o processo de superação individual de cada um.
       A eterna contradição entre o que eu quero e o que nos é permitido leva todos a um grau de insatisfação, o que conduz o sujeito a uma revolta para com a sociedade e suas normas, de forma que passamos a quebrá-las tamanho é o sentimento insuportável de conciliá-las com minhas vontades de forma sucessiva. Sabe-se que a desigualdade social em nosso país é gritante, o que agrava o grau de revolta dos sujeitos que vivem as contradições sociais de forma violenta pois a medida que a fruição sexual mais intensa fica restrita a uma parcela menor da sociedade (sendo essas normalmente as classes que tem maior acúmulo de riquezas) aumenta também o sentimento de hostilidade para com essa injustiça da sociedade, criando as condições para que suas regras e preceitos percam seu sentido e que da parte dos oprimidos se negue de se internalizá-las. Se há uma resposta para questões como a da violência e da corrupção em países dependentes e em subdesenvolvimento certamente encontra-se nas condições alarmantes e tristes da vida agravadas pela condição capitalista. Um rompimento radical com os preceitos mais básicos estabelecidos para nossa vida em forma livre, igual e fraterna como não matar/violentar/prejudicar o outro são postos de lado pela revolta, que acha por uma solução individual e talvez infantil uma forma de lidar com o desamparo criado pela situação de insatisfação e intenso e recorrente medo de andar pelas ruas sabendo-se que a qualquer momento estas regras podem ser quebradas e fazer um sem número de vítimas, incluindo o Eu. Destaco a solução individual novamente, pois na incerteza e na descrença de tudo, na impossibilidade do estabelecimento de vínculos seguros com a “vida lá fora” resta talvez um narcicismo de certa forma selvagem e um recalque sem precedentes, senão a formação de diversos sintomas patológicos, sendo essa retração a única forma segura da maioria dos indivíduos poder lidar com suas pulsões. Um caminho que nos dá soluções mas ao mesmo tempo pode ser condicionante e agravante do problema, levando em conta suas decorrências sociais e pessoais.

      Arma-se então o palco para a tragédia da vida no século XXI: a incerteza de tudo, até mesmo de nossos acordos mais básicos, que podem ser quebrados a qualquer hora e nos coloca em uma vida de intensa ansiedade e tristeza, dominada pelo medo. Cria e nos aprofunda na situação do desamparo, nos levando as soluções mais diversificadas e negativas o possível bem como a recorrência a um sem número de fantasias sejam elas de origens mitológicas ou contemporâneas; qualquer coisa para suportar o fardo da existência.

     Isto me faz crer que o movimento criado por Freud ao redor do desamparo não teve um desfecho tal qual como queria, tornando esta condição consciente de forma massificada. Ao invés de termos caminhado nessa direção nos afundamos cada vez mais em nossas fantasias, nos impedindo de ver nossa situação. Temos ferramentas para este progresso: a análise, as diversas teorias críticas de todos os campos sociais e culturais e um olhar atento a vida cotidiana. AO invés de nos darmos pela volatilidade da vida e de que nada nos adianta fazer devemos nos esforçar sempre na compreensão deste fenômeno e sua relação com aspectos maiores da vida, visto que é visível em todos nós (sendo causador de muita dor e aflição), e a partir disto podermos elaborar como sairmos, enquanto espécie humana, desta condição lastimável em que todos nos encontramos nos mais diversos graus. E que a certeza e a segurança se mostrem em nossos horizontes, através da consciência e da retomada de nossa condição de “assassinos do pai”, divisores da culpa e compromissados, pelo reconhecimento de nosso trabalho conjunto, a criar e manter cada um a liberdade sua e do outro.


Texto dedicado aos meus queridos colegas Ana Raquel, Maria Luíza, Márcio Jibrin, Paula e Luiza. Embora possa estar equivocado ou divergente de algumas coisas, foi trabalhando com vocês que essa reflexão se tornou possível e me marcará enquanto futuro psicólogo.

Freud no elevador

Gosto e não gosto do inverno. Por um lado o frio me agrada, pois posso me socar de casacos e não me preocupar em ficar suado, coisa recorrente quando estou andando pela UFSC em épocas mais quentes. Por outro, não me agrada o teor reflexivo que ele me causa. Quer dizer, me agrada, mas as vezes não agrada tanto. No inverno parece que existe uma tendência a mais para pensar enquanto estou andando ou fazendo qualquer coisa: "A que ponto chegamos", "Como será a humanidade daqui a 100 anos?", "Será que estamos mesmo no progresso?", "Se a vida humana fosse diferente, poderia não ter isso, ter aquilo, os diagnósticos em saúde mental seriam assim, a alimentação seria assado"e muitas outras coisas... Mas o fato de hoje é mais simples.

Lá estava eu nas lojas Renner do grande centro de Porto Alegre. Como bom pequeno-burguês, tenho as condições de frequentar a loja tranquilamente, devidamente ace$$orado por meus avós, dispostos a renovar meu armário e me dar pilhas de roupas, bem como indicar casacos que eu ficaria muito lindo e que (embora nem sempre estejam em concordância com meu gosto) serão a fórmula certa para ter um estilo impecável. Houveram tempos em que isso me incomodava, hoje, fico feliz em ter tamanho carinho por parte deles. Na muvuca da loja (que é enorme) subi direto para a sessão masculina e lá fiz minhas compras. Mesmo sendo ace$$orado, o meu espírito cascudo não me autoriza a extrapolar nos gastos e fiz apenas 3 compras. Depois de grandes minutos na companhia deles, meu irmão e minha mãe finalmente finalizamos as compras e optamos por pegar o elevador para descermos, visto que estávamos no último andar da loja (que é uma muvuca).

Aí começamos a esperar o elevador. Estávamos conversando de forma aberta e solta. Ao meu lado uma menina, talvez nos seus 14 anos, também se aproximava com os pais falando alto e se divertindo. Eis que chegou o elevador com sua mágica. Seu feitiço começou a fazer efeito antes mesmo de entrarmos, pois quando vimos que estava se aproximando todos nós fechamos a boca como um zíper, rotacionamos nossos corpos quase na mesma velocidade e nos pusemos a entrar. O elevador estava cheio, o que fez com que as pessoas ficassem mais espremidas. E aí a situação que pra mim é engraçada e a qual denominei como "feitiço". Feitiço que na verdade para mim nada mais é do que a força das convenções sociais devidamente enraizadas em nossas mentes, supostamente para permitir que possamos viver em civilidade e paz. Mas, voltemos a essa magia: no elevador todos muito juntos, mas as bocas fechadas. Mãos nas genitálias, a famosa "poker face"; algo meio neutro no olhar e nos gestos. A espontaneidade da garota sumiu em poucos segundos, os sorrisos saíram das bocas e as mentes ocuparam-se com pensamentos íntimos. Uma tossidinha tímida. O papo que estávamos fazendo cessou temporariamente e o que predominou foi o silêncio quebrado apenas pelo barulho das engrenagens do elevador. Eis que a porta se abre, saímos todos como gado espremidos e todos retomaram seus assuntos, sorrisos e preocupações normais, deixando a tiazinha dos botões a recepcionar mais uma leva de pessoas.

O fenômeno do elevador é tosco de ser analisado, com tantas outras coisas por aí a serem observadas. Mas não é engraçado? No espaço do meu dia onde eu mais fiquei próximo e cercado de gente (estranha) foi justamente o espaço em que eu mais me reprimi e todos os outros se reprimiram (com direito a 2 pessoas tapando suas genitálias com as mãos). Não teve nenhum movimento sutil nisso: todos calaram-se e ninguém teve a ousadia de quebrar o pacto social ali colocado. Cada uma na sua, no seu espaço. Não é um espaço coletivo, mas sim um espaço de indivíduos, receosos de que sejam invadidos, incomodados ou que incomodem a "paz"de todos. Deixamos todos a espontaneidade e nossos assuntos de lado, para não invadirmos uns aos outros com nosso gozo verbal. Justamente na época da depressão e do desamparo, onde a ânsia por um Outro ou a carência de atenção e amor se torna cada vez mais maior, é justamente onde mais nos colocamos barreiras e restrições. Que mecanismo ardiloso e fenomenal é esse, o do querer mas ter de evitar, mas sair pela tangente pra tentar ter esse prazer quando ele se mostra possível. Já estava escrito pelo velho, lá no mal-estar... o preço que o homem teve de pagar para que pudesse viver na ordem social: a repressão de nossos desejos e a sublimação ou o recalque (as vezes patológicos) como forma de darmos conta da contradição entre o eu e a sociedade moderna, igual, fraternal e livre. E assim vivemos, e eu chego em casa e escrevo esse texto, pra dar conta de algo que pode ter ficado lá, mas veio parar aqui.

De qualquer forma, continuo andando por aí sonhando, pensando no meu desejo socialista. Quando poderemos entrar no elevador e nos reconhecermos enquanto parte integral e indissociável de um mesmo todo, que se compõe pelo trabalho coletivo, condicionante nuclear  da existência e da reprodução humana em toda sua larga escala? Chegará um dia em que conseguiremos romper os horrores do "fetichismo da mercadoria" tão bem trabalhado pelo saudoso Marx e poderemos nos reconhecer no outro enquanto irmãos nessa mesma terra, necessitados um do outro para que possamos continuar existindo? Eu sonho que sim. Mas por enquanto, continuarei tapando as genitálias dentro do elevador.