Gosto e não gosto do inverno. Por um lado o frio me agrada, pois posso me socar de casacos e não me preocupar em ficar suado, coisa recorrente quando estou andando pela UFSC em épocas mais quentes. Por outro, não me agrada o teor reflexivo que ele me causa. Quer dizer, me agrada, mas as vezes não agrada tanto. No inverno parece que existe uma tendência a mais para pensar enquanto estou andando ou fazendo qualquer coisa: "A que ponto chegamos", "Como será a humanidade daqui a 100 anos?", "Será que estamos mesmo no progresso?", "Se a vida humana fosse diferente, poderia não ter isso, ter aquilo, os diagnósticos em saúde mental seriam assim, a alimentação seria assado"e muitas outras coisas... Mas o fato de hoje é mais simples.
Lá estava eu nas lojas Renner do grande centro de Porto Alegre. Como bom pequeno-burguês, tenho as condições de frequentar a loja tranquilamente, devidamente ace$$orado por meus avós, dispostos a renovar meu armário e me dar pilhas de roupas, bem como indicar casacos que eu ficaria muito lindo e que (embora nem sempre estejam em concordância com meu gosto) serão a fórmula certa para ter um estilo impecável. Houveram tempos em que isso me incomodava, hoje, fico feliz em ter tamanho carinho por parte deles. Na muvuca da loja (que é enorme) subi direto para a sessão masculina e lá fiz minhas compras. Mesmo sendo ace$$orado, o meu espírito cascudo não me autoriza a extrapolar nos gastos e fiz apenas 3 compras. Depois de grandes minutos na companhia deles, meu irmão e minha mãe finalmente finalizamos as compras e optamos por pegar o elevador para descermos, visto que estávamos no último andar da loja (que é uma muvuca).
Aí começamos a esperar o elevador. Estávamos conversando de forma aberta e solta. Ao meu lado uma menina, talvez nos seus 14 anos, também se aproximava com os pais falando alto e se divertindo. Eis que chegou o elevador com sua mágica. Seu feitiço começou a fazer efeito antes mesmo de entrarmos, pois quando vimos que estava se aproximando todos nós fechamos a boca como um zíper, rotacionamos nossos corpos quase na mesma velocidade e nos pusemos a entrar. O elevador estava cheio, o que fez com que as pessoas ficassem mais espremidas. E aí a situação que pra mim é engraçada e a qual denominei como "feitiço". Feitiço que na verdade para mim nada mais é do que a força das convenções sociais devidamente enraizadas em nossas mentes, supostamente para permitir que possamos viver em civilidade e paz. Mas, voltemos a essa magia: no elevador todos muito juntos, mas as bocas fechadas. Mãos nas genitálias, a famosa "poker face"; algo meio neutro no olhar e nos gestos. A espontaneidade da garota sumiu em poucos segundos, os sorrisos saíram das bocas e as mentes ocuparam-se com pensamentos íntimos. Uma tossidinha tímida. O papo que estávamos fazendo cessou temporariamente e o que predominou foi o silêncio quebrado apenas pelo barulho das engrenagens do elevador. Eis que a porta se abre, saímos todos como gado espremidos e todos retomaram seus assuntos, sorrisos e preocupações normais, deixando a tiazinha dos botões a recepcionar mais uma leva de pessoas.
O fenômeno do elevador é tosco de ser analisado, com tantas outras coisas por aí a serem observadas. Mas não é engraçado? No espaço do meu dia onde eu mais fiquei próximo e cercado de gente (estranha) foi justamente o espaço em que eu mais me reprimi e todos os outros se reprimiram (com direito a 2 pessoas tapando suas genitálias com as mãos). Não teve nenhum movimento sutil nisso: todos calaram-se e ninguém teve a ousadia de quebrar o pacto social ali colocado. Cada uma na sua, no seu espaço. Não é um espaço coletivo, mas sim um espaço de indivíduos, receosos de que sejam invadidos, incomodados ou que incomodem a "paz"de todos. Deixamos todos a espontaneidade e nossos assuntos de lado, para não invadirmos uns aos outros com nosso gozo verbal. Justamente na época da depressão e do desamparo, onde a ânsia por um Outro ou a carência de atenção e amor se torna cada vez mais maior, é justamente onde mais nos colocamos barreiras e restrições. Que mecanismo ardiloso e fenomenal é esse, o do querer mas ter de evitar, mas sair pela tangente pra tentar ter esse prazer quando ele se mostra possível. Já estava escrito pelo velho, lá no mal-estar... o preço que o homem teve de pagar para que pudesse viver na ordem social: a repressão de nossos desejos e a sublimação ou o recalque (as vezes patológicos) como forma de darmos conta da contradição entre o eu e a sociedade moderna, igual, fraternal e livre. E assim vivemos, e eu chego em casa e escrevo esse texto, pra dar conta de algo que pode ter ficado lá, mas veio parar aqui.
De qualquer forma, continuo andando por aí sonhando, pensando no meu desejo socialista. Quando poderemos entrar no elevador e nos reconhecermos enquanto parte integral e indissociável de um mesmo todo, que se compõe pelo trabalho coletivo, condicionante nuclear da existência e da reprodução humana em toda sua larga escala? Chegará um dia em que conseguiremos romper os horrores do "fetichismo da mercadoria" tão bem trabalhado pelo saudoso Marx e poderemos nos reconhecer no outro enquanto irmãos nessa mesma terra, necessitados um do outro para que possamos continuar existindo? Eu sonho que sim. Mas por enquanto, continuarei tapando as genitálias dentro do elevador.
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A não ser que no elevador entrem as mesmas pessoas que estavam a conversar fora dele, o silêncio é quase que contagioso por assim dizer.
ResponderExcluirÉ estranho, parece que ao mesmo tempo onde não queremos invadir a fala do outro, o próprio espaço, pequeno e limitador, nos reprime fazendo com que nossa voz ganhe uma autonomia muito maior e ecoe numa amplitude onde qualquer frase mal colocada soe como um golpe e aí, tem aquela velha história de compartilhar a "vergonha" alheia. Talvez medo. De tentar, de compartilhar a "individualidade" com o desconhecido ou até receio de invadir seu pensamento.. Passei por isso Quarta-Feira, por sorte a conversa continuou - era só família. De vez em quando me flagro pensando algo similar - no elevador rs. Liked! Bom fim de semana prolongado. Beijo ;*