Por que
ficamos tão passivos diante do que achamos “incorreto” ou
absurdo? O que faz com que grupos inteiros se submetam completamente
à ordem e se disponham a engolir as situações mais aversivas o
possível?
Vou
falar de meu contexto, isto é: o contexto universitário. No Centro
de Filosofia e Ciências Humanas estudamos as mais variadas linhas
críticas que elencam de forma magistral uma reflexão a respeito da
função das mais variadas instituições e normas culturais. Temos
estudado na 7ª fase do curso a função da escola e como seu
surgimento se dá ligado diretamente a ideia de “inserção” no
mundo adulto, como uma forma de “treino” para a realidade – no
nosso caso a do trabalho assalariado. Em meados do século XVIII,
onde o trabalho assalariado passa a hegemonizar a mediação da
relação trabalho-trabalhador, a escola começa a beber diretamente
das fontes de conhecimento sobre disciplina e ordem oriundas
especialmente dos exércitos e monastérios. Aos poucos, a escola
passa a transformar-se em todos seus aspectos, do arquitetônico ao
organizativo e estrutural, em uma instituição de disciplinarização:
estipula horários para todas as atividades de seus alunos e
empregados, autoriza determinadas atividades ou não, estabelece seu
cronograma, realiza suas cobranças, estipula políticas de punição
aos indisciplinados e desviantes, ensina e promove o respeito ao
mestre/autoridade, hierarquiza seus alunos e profissionais, obriga o
aluno a decorar seu hino, etc... Em suma, transforma a educação
dos jovens em uma ação preparatória e continuada para o que
Foucault denomina de “docilidade”: através de suas rotinas e
regras estimula e potencializa a absorção da disciplina e da norma
nos corpos dos sujeitos; introjeta neles toda uma totalidade de
ideias e valores que servem para a geração de subserviência e
passividade diante da ordem e suas várias formas – dos professores
ao próprio Estado. Acredito eu que no sistema universitário não se
passa diferente, ainda que com seus discursos se pretenda superar
tais condições ao se pretender mudar a sociedade. Vejamos.
Hoje,
jovens adultos, ingressamos na universidade. Aqui, diz-se por aí, é
o lugar do mais alto conhecimento, da autonomia, da crítica e da
liberdade de se pensar. Um lugar onde estamos cada um por mérito e
por si e cabe a nós a responsabilidade de nosso futuro profissional
e de nossas atitudes perante nossas obrigações (veja só, de tal
forma podemos até ir ao banheiro sem pedir autorização!). É aqui,
neste lugar quase que sagrado, que aprendemos a quebrar oportunamente
com o senso comum para passarmos a entrar na produção e na reflexão
sistemática que extrapola as aparência e começa a investigar as
essências/causas dos fenômenos dentro de suas minúcias e sua
complexidade. Neste contexto acabamos por estudar as instituições,
as relações de poder e as formas de controle social e individual.
Mas, ainda que com o acesso a este tipo de conhecimento, o que faz
com que diante de seminários mecanizados claramente inúteis e sem
sentido; aulas que beiram a insignificância para quase turmas
inteiras seja pelo seu não-vínculo com qualquer vivência real do
sujeito ou pela didática horrenda advinda de formas pedagógicas e
avaliativas contemporâneas do período neolítico; enfim, o que faz
com que turmas inteiras de jovens dispostos e estudiosos de nível
superior, críticos ávidos da pedagogia, da institucionalização,
do sistema e da racionalidade se submetam de forma excepcional – e
até mais obedientes e dóceis que uma criança indefesa – a essa
situação altamente contraditória com seus estudos? O que leva a
conivência diante dessa ordem, ainda que profundamente
insatisfeitos? Não obstante essa (já grande) contradição prática,
esses estudiosos e críticos da sociedade mesmo detendo todo este
arcabouço teórico ao submeterem-se ao que lhes é imposto acabam
por outro lado, pela aceitação, caíndo em outra contradição que
é posteriormente reproduzir estas formas de dominação em seu
ambiente de trabalho. Como
alerta Tragtenberg¹ estes são os futuros “colarinhos brancos”
que rumo às usinas, escritórios, ONG's e dependências ministeriais
assumem o cargo de gestores e fiscalizadores da ordem, seja pela
burocracia ou pelo assistencialismo paternalista (muitas vezes quase
que como forma de extravio de uma certa culpa por ter dinheiro ou
oportunidades na vida). Tornam-se agentes diretos da reprodução e
instauração disciplinar e normativa. Nada mais conivente e
interessante ao então sistema amplamente criticado.
Surge
então a pergunta: para que está servindo nosso conhecimento
“crítico” afinal, senão para um fetiche pessoal ou a clássica
e pomposa masturbação academicista? De que adianta saber se não há
intenção ou não há interesse em de fato aplicá-lo para mudar as
situações que contribuem para que o sistema mantenha-se em seu
lugar ? – situações essas as quais conhecemos bem as origens, as
formas, função, mecanismos e especificidades. Sobre isso já nos
disse o “comedor de crianças” Karl Marx quando atentou em suas
“Teses sobre Feuerbach”: “Os filósofos dedicaram-se somente a
interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é
transformá-lo”; e igualmente preciso foi Freud quando ao trabalhar
o psiquismo humano e a dinâmica inconsciente atentou a facilidade
que temos de observar nossos próprios problemas e negatividades nos
outros (os analistas de plantão prontamente irão rir ao ler isso)
como forma de alívio psíquico, o que nem sempre acarreta em
mudanças. Acaba por ser preferível lavar nossas mãos através de
vias fáceis e ilusórias do que fazer o enfrentamento profundo
necessário para a superação dos problemas que vivemos e sentimos.
Há de ser assim? Será este então nosso papel? Repito aqui a
astúcia argumentativa de Álvaro Vieira Pinto na “Questão da
Universidade”: a universidade de tal forma acaba por, na verdade,
cumprir bem sua função real: a de acabar por ser um instrumento de
ordenação e não modificação social. Trabalha de forma a não
sermos educados para agir e mudar a ordem e tão pouco passamos a nos
interessar por compreendê-la em sua minuciosidade e profundidade,
uma vez que isso a nada nos serve senão muito mais a angústia e
insatisfação pessoal diante da realidade. Melhor esquecer ou
atenuar!
Mas
o que se pode fazer para mudar tal situação? Como pode a
universidade cumprir aquilo a que outrora foi idealizada a ser e
passar a promover e educar sujeitos dispostos à transformação
social de sua nação – tal qual como ela burocraticamente se
propõe com seu tripé mágico (ensino-pesquisa-extensão)? Diante da
cultura e da política da disciplina a palavra de ordem acaba sempre
sendo o medo. O receio e a ansiedade diante do ímpeto
transformador são menos fruto de uma “deficiência” neuroquímica
ou cerebral de cada um mas sim resultantes de todo um processo de
construção da autoridade do mandante e da mediocridade do sujeito
quando em conflito direto com a ordem vigente. Não há nunca setor
mais capaz e mais disposto para pensar uma alternativa ao opressor do
que o próprio oprimido, quando este não se curvou de vez a
introjetar a opressão. No caso da escola e da universidade trata-se
da juventude estudantil. Não o estudante enquanto sujeito em ações
isoladas de resistência (que são também imprescindíveis) mas
enquanto coletividade, que se identifica com os vetos ao livre pensar
e ao novo e se põe a agir conjuntamente na superação dos mais
variados mecanismos disciplinadores e dispositivos da ordem. Resgato
novamente Freud: lembremos que para que o Pai da horda primeva fosse
por vez morto, e acabasse com seu reinado individual e restringente
para todos os seus filhos, foi preciso que estes últimos se
juntassem para o matar de vez (uma vez que grande) e junto disso
acordassem mutuamente em coletivizar a vitória e a angústia de
quebrar com um regime de opressão e segurança e ingressar em uma
nova forma societária de igualdade, justiça e agora incertezas,
uma vez que dependente grandemente do compromisso de cada um com a
manutenção desta comunidade e da felicidade/segurança de todos. Só
assim existe possibilidade da efetivação do novo.
Penso
que toda ação micropolítica tem sua validez. O movimento acontece
em suas minúcias especialmente dentro das salas de aula. Mas são em
espaços como os da avaliação coletiva por exemplo que ganha força
e significado ainda mais amplo e geral a indignação e a sede de
mudança de cada um. As provas estão aí: chegamos ao ponto de mudar
nosso próprio currículo. O próximo passo qual será?
Ps: não quis fazer apologia ao
assassinato de professores ou figuras de poder. (rs)
¹.
Trecho do texto “Delinquência Acadêmica” de Maurício
Tragtenberg.