“Vênus engana os amantes com simulacros”. Podemos trocar “Vênus” por
“Afrodite”, sua representação grega. Ouvi essa frase enquanto
conversava com meus amigos no bosque do CFH. O que você acha dela?
Essa
frase me marcou de forma excepcional. Achei que ela, assim mesmo,
isolada do texto todo original representa muita coisa e de certa forma é verdadeira. Desde tempos
antigos o ser humano parece estar marcado pelas paixões que vive ao
longo de sua vida e se põe a refletir sobre elas, buscando uma
explicação para isso, talvez como uma forma de alento e de ilusão
de controlar algo que jamais estará sob um controle pleno. Fato é
porém que todos nós desde os momentos mais antigos de nossas vidas
vivemos sob o jugo do amor: primeiro por nós e depois aos poucos com
a capacidade de estendê-lo a objetos, vindo a amá-los como se
fossemos nós mesmos.
É daí
que comecei a pensar a ideia do simulacro. Na frase tal habilidade é
incumbida a um terceiro, uma Deusa do amor, quando na verdade se
trata de algo realizado por nós próprios. A metáfora porém é
válida: a paixão é essa relação com um simulacro. Apaixonados,
envolvemos a nós mesmos em uma simulação, um ideal, uma fantasia
de perfeição, harmonia e excepcionalidade. É inconcebível nos
darmos conta de que na verdade se trata de um ser humano como
qualquer outro, com seus valores, crenças, qualidades e defeitos.
Mas não! Envolvemos nosso objeto amado com esta capa de amor e
tornamos ele uma perfeição, uma admiração, uma beleza sem igual e
incomparável. Não há nada mais delirante do que estar apaixonado –
e não estou aqui usando delírante com uma conotação negativa.
Este simulacro é tão forte que no desejo intenso por ter este
objeto por perto (normalmente o tempo todo) para nos dar prazer
chegamos ao ponto de incorporá-lo a nós mesmos. Na impossibilidade
material de haver uma fusão esse objeto amado e carregá-lo conosco
nosso inconsciente age de forma perspicaz e tentar dar conta disso :
adquirimos trejeitos, vocabulários, imitamos habilidades... enfim,
passamos a nos tornar aquilo que estamos amando de forma que possamos
carregar ele conosco o máximo possível. A imitação de alguns
gestos e jeitos de nossos pais não é fruto do acaso ou da genética.
Pessoalmente acho esta nossa habilidade um tanto impressionante por
sua sutileza. O psiquismo humano age de tal forma que não nos damos
conta dessa nossa fragilidade e necessidade de carregarmos esse amor
para nos sentirmos bem, e não quero aqui parecer contrário a isto,
afinal, é um grande motor para nosso desenvolvimento subjetivo e
pessoal.
A outra
faceta é quando esse simulacro acaba. Quando removemos, ou temos ele
removido, nos vemos em situação inusitada pois tudo aquilo que
passamos a carregar dentro de nós passa a ser por vezes indesejável.
No desespero de nos livrarmos de um prazer que agora se torna dor nos
mutilamos e nos tratamos como um lixo – confundindo que na verdade
o que estamos desmerecendo é aquilo que era de outro e agora está
mesclado em nós mesmos. O simulacro ao ir embora tem as mais
variadas características e fins, mas deixa sempre trapos e fiapos em
nós, que normalmente nos constituem e servem de material para que
esse movimento continue ao longo de nossas vidas.
Não há
nada mais humano que este movimento. Nada para mim representa melhor
nossa condição do que nosso comportamento quando envolvidos pelo
amor em uma saga pessoal de prazer, fantasia e dor. Peço a ti então
Vênus: não nos abandone jamais! E nos envolva em mais e mais
simulacros, dos mais variados tipos, para que possamos desfrutar de
muito de nossa vida que a racionalidade cotidiana e capitalista por
vezes impede e nos afasta cada vez mais, fazendo com que essa busca
pela perfeição deixe de ser feita na relação humana e passe a ser
buscada e reduzida a relação com mercadorias e coisas.
Trecho original do livro "História da Eternidade" de Jorge Luís Borges:
"Como o sequioso que no sonho queria beber, e esgota formas de
água que não se sacia e morre abrasado pela sede no meio de um rio:
assim Vénus engana os amantes com simulacros, e a visão de um corpo não
lhes dá fartura, e nada podem soltar ou guardar, embora as mãos
indecisas e mútuas percorram todo o corpo. Por fim, quando nos corpos há
presságio de venturas e Vénus está a ponto de semear os campos da
mulher, os amantes apertam-se com ansiedade, dente amoroso contra dente;
absolutamente em vão, dado que não chegam a perder-se no outro nem a
ser um mesmo ser."
Lindo! Amei o texto :)
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