Uma das temáticas que vamos explorar na residência é o tema da infância.
Um dos textos que abre as aulas sobre tal tema apresenta o conceito de
"devir-criança". Resumindo de forma grosseira, este conceito tenta
explicitar como a criança se coloca em um estado de "permanência aberta
dos processos de subjetivação". O devir criança é a entrega à alteridade e
ao acoplamento constante às sensações e a outros seres humanos. Uma tendência a
exploração, que leva a uma potente capacidade de criar linhas de fuga diante
dos modos de subjetivação instituídos. O texto também provoca com a ideia do
devir-criança como uma fagulha de resistência que se sobressai nos adultos e
que nos permite novamente retomar a espontaneidade e a abertura a novas
possibilidades criativas de relação com o mundo."Muito bonito",
pensei eu mesmo enquanto lia. Concordei com a reflexão e pensei como seria
positivo que eu próprio me deixasse ser um pouco "devir-criança".
No entanto, antes mesmo de entrar no trem para ir para casa já estava
retirando de minha mochila um livro e me preparando para me adequar ao que
dizem as regras sociais: o trem não é um lugar pertinente para qualquer outra
coisa que não se fechar em uma bolha. Nada de encarar pessoas ou falar com
elas. Tudo nos perfeitos ditames neuróticos básicos. Mas a vida me guardava um
breve encontro com um ser de 10 meses chamado Sofia.
Quando entrei no trem acabei ficando em pé, segurando meu longo guarda
chuva entre as pernas e carregando minha mochila de forma invertida, ficando
ela voltada para minha frente. Senti que meu guarda-chuva estava se mexendo um
pouco demais e tive um estranhamento, mas a mochila não me permitia enxergar
meus próprios pés. E foi enquanto fazia o esforço para ver o que estava
acontecendo em minhas pernas que cruzei meu olhar com o de Sofia, que surgia
debaixo de minha mochila. Sofia não me deu oi. Ela me olhou um tempo e voltou a
querer tocar meu guarda chuva. Influenciado pela Psicologia e pelas leituras
sobre alteridade, cedi rapidamente para sua brincadeira, de forma que a cada
vez que ela tocava em meu guarda chuva fechado eu o girava, sempre de acordo
com a intensidade que ela o puxava. Ficamos "conversando" assim.
Depois decidiu pisar em meus tênis e ficar tocando neles. Sua curiosidade era
tamanha, que ela resolveu então puxar alguns cordões da minha mochila. Fui
levado por sua onda, chegando ao ponto de em pleno trem ficar me agachando e
levantando para provocá-la a pegar na corda, vindo ela eventualmente a
mordê-la. Ela prosseguiu explorando todos sujeitos próximos no vagão. E quando
seu pai se propunha a pegá-la no colo para cessar com seu comportamento, ela
logo chorava e esperneava, bastando colocá-la novamente em pé no chão para que
parasse e retomasse suas atividades. Recusava-se ser capturada pela ordem!
Queria era caminhar e se relacionar. Em pleno trem me peguei rindo, brincando e
conversando com pelo menos 5 ou 6 estranhos que, após um dia cansativo, se
permitiam através de sua relação com Sofia conversar trivialidades e cuidar
dela ao mesmo tempo. A viagem passou rápido, mas no instante que sentei me vi
pegando o livro novamente. Diferentemente de Sofia, fui facilmente recapturado
à norma sem nenhuma resistência, até que ela ressurge em minha frente. Seu pai
então pede que ela se despeça. Nos despedimos e eu me permito novamente fechar
o livro e sorrir para ela e os outros, me despedindo.
Acredito que este breve encontro com Sofia me ensina, através de uma
relação, justamente o que o texto tenta explicar. A relação que Sofia
estabeleceu comigo ao fazer uso de seu devir criança fez com que eu me
colocasse em seu lugar e também vivesse um pouco deste devir normalmente
reprimido dentro de nós. Ela suscitou a fagulha de resistência. Brinquei e
conversei com estranhos dentro de um trem. Demos risadas. Trocamos coisas da
vida. Sofia nos ajudou a estabelecer linhas de fuga - participando deste
processo ela própria também. Com um suspiro de agradecimento, finalizo a
reflexão esperando que Sofia tenha aprendido algo de relevante pra ela
também.
REFERÊNCIA: CECCIM, Ricardo Burg e PALOMBINI, Analice de Lima. Imagens da infância,
devir-criança e uma formulação à educação do cuidado. Psicol. Soc. [online]. 2009, vol.21, n.3, pp. 301-312 . Disponível em:
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