É possível que o leitor já tenha entrado em contato com a notícia de uma pediatra que se negou a atender a filha de uma pessoa filiada ao PT. Aqueles com bom senso certamente se indignaram ou pelo menos questionaram esta atitude. Não foi o caso do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS), algo que não nos surpreende dadas suas manifestações anteriores no mínimo preconceituosas, pra não dizer retrógradas. ¹
Quanto ao caso, penso que seja importante primeiro falarmos de um ethos que permeia o trabalho com a saúde em um país que entende ela como um direito do cidadão e depois adentrarmos na situação política do país, que ajuda a contextualizar a atitude. Iniciemos de modo simples: para trabalhar com a saúde das pessoas nosso olhar não pode ser atravessado por uma perspectiva moral.
Na nossa constituição a saúde é um direito, isto significa que quem com ela opera também opera, naturalmente, com a garantia de um direito. Se a isso somarmos que se trata de uma criança, que sequer tem a ver com as escolhas partidárias da mãe, podemos pensar no próprio Estatuto da Criança e Adolescente e vermos que há aí algo mais grave, que é a negligência com a infância. No entanto, diante de dados tão factuais como estes, há aqueles mais descabidos que acreditam que o liberalismo econômico pode a tudo ser aplicado e aplicam a lógica liberal de forma selvagem e acrítica em uma realidade que não é a da mão invisível e sim a de uma sociedade democrática constituída de direitos básicos. Estes, que acham que um profissional da saúde pode ser regido pelo próprio umbigo e as vontades particulares, e, pior ainda, que pode se dar o luxo de não se questionar o porquê que atender uma pessoa com as características X, Y ou B os incomodam, correm o sério risco de reproduzir práticas preconceituosas - imaginemos um profissional que não "se sente confortável" em atender um judeu e não vê problema nisso, na verdade sente até orgulho de "não pactuar" com judeus! Pois é.
Portanto, não há nada de louvável na atitude de uma médica que nega atendimento por uma questão política e partidária. Aos que veem algo de positivo nisso é recomendável o exercício de olhar pra si e se perguntar o que anda ficando em primeiro plano: as pessoas que confiam em nosso trabalho e de nós dependem ou opiniões pessoais tranquilamente questionáveis - como não pactuar com uma sigla partidária que por acaso um parente do paciente é filiado. Em suma: para nós, trabalhadores da saúde, acima de qualquer coisa deve estar o ser humano e suas potências, independente do lugar político, social e econômico que ocupa - e se não é possível oferecer isso a todos, precisamos sempre nos perguntar os motivos e lutar para que se modifiquem.
É igualmente importante olharmos para as mobilizações nacionais. Temos na atitude dessa médica mais que uma conduta particular questionável, mas sim um desdobramento gravíssimo das demonstrações de intolerância política para com determinadas cores ou siglas. Algo que diz do empobrecimento do debate político e sua substituição pura pelo ódio e o desgosto. Vale a pena (nos) acabarmos por um sistema falido e por políticos que estão todos, quase sem exceção, comprometidos com qualquer coisa que menos nossos interesses? O que esta criança tem a ver com os problemas do país e com as causas dos mesmos (as quais ela supõe que seja o PT, algo facilmente questionável) ?
Por fim, recomendo a todos, inclusive os que pactuam com a atitude da médica, que assistam o filme "Um Skinhead no Divã". Trata-se da história de um psiquiatra/psicanalista judeu que resolve atender um skinhead nazista. Aprendamos com a 7ª arte!