Uma crônica de garis e de engravatados

Um sonhador estava dentro do ônibus indo trabalhar. Estava consumado pelo marasmo cotidiano e o cansaço de quem vende a força de trabalho: olhos fundos, olheiras grosseiras e expressão corporal caída. Tudo indicava que assim seria também o resto de seu dia. Iria descer, trabalhar e voltar pra casa com a mesma expressão. Estava desanimado com tudo: a democracia do próprio país em xeque, a arbitrariedade do poder policial e judiciário, a precarização das políticas públicas (e consequentemente do seu trabalho), a ausência de espaços para se organizar.... Tempos difíceis para ser contra a ordem das coisas.

O ônibus fez uma curva e passou na frente do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) de Porto Alegre. Um raio de sol entrou em seus olhos e franziu a testa. Foi abrindo eles devagar e se deparando com as sinuosas curvas do edifício que sempre sonhou em "dropar" de skate. Mas desta vez desviou o olhar das curvas do edifício para a praça que há na frente do mesmo. Não pela praça em si, mas porque ela estava tomada por pessoas vestidas de laranja: haviam muitos garis na praça. E os garis não estavam limpando a praça. Por que é chocante ver vários garis em uma praça sem estar limpando ela?  Isso chamou sua atenção. Viu que estavam dispersos e fazendo diversas coisas: havia um número grande jogando futebol suados e alguns sem camisa; haviam outros namorando apaixonadamente; alguns davam risada bebendo um refrigerante; outros fumavam; outros circulavam pela praça e por fim um grupo de mulheres parecia compenetrado em uma conversa. A praça que estava sempre vazia ou no máximo ocupada por meia dúzia de gente branca e bem arrumada passeando com seus cães agora estava ocupada por certa vida e felicidade. Quando estava perto do ponto de ônibus nosso personagem viu algo inusitado: dois dos seguranças terceirizados do CAFF atravessaram correndo a rua em direção à praça. Nosso amigo pensou o pior: iria pedir pra acabar com a "bagunça" e resolveu também descer do ônibus.

Acompanhou secretamente os seguranças que, muito animados, se aproximaram dos garis e pediram pra jogar bola. "O dia tá pedindo uma pelada!" Falou um deles. "Chega junto" Falou o gari. Nosso sonhador ficou boquiaberto. Foi então que percebeu que alguns engravatados e bem arrumados começaram a atravessar a rua também. Pressupôs que viriam fazer o controle que os seguranças não fizeram. Mas para a surpresa do sonhador, eles se aproximaram meio envergonhados de um grupo de garis que assistiam a pelada. Pediram um isqueiro meio sem jeito e iniciaram uma conversa sobre o dia, mas depois estavam se queixando do trabalho deles e a sensação que não resolve porcaria nenhuma na vida das pessoas e que era melhor estar ali. O gari então se queixou do sistema de saúde. Por acaso um dos rapazes trabalhava no setor da saúde e então começaram a explicar sobre a gestão, concordando com as críticas do Gari e envolvendo muitos ali, ele inclusive,  no exercício de ver outras possibilidades. Então surge atravessando a rua  um sujeito de cabelos grisalhos e pançudo, bem arrumado. Alguns trabalhadores do CAFF começaram a ficar acuados e isso denunciou que se tratava de algum chefe. Ele chegou suando com o sol. Olhou sério para o grupo. Olhou sério para a "bagunça" da praça. Ficou certo silêncio. Cedeu para a realidade: "Vamos ou não vamos montar um time pra jogar? Eu é que não vou ficar sozinho no gabinete". Então os que assistiam e discutiam montaram um novo time. A pelada seguiu. A esta altura do acontecimento nosso personagem já estava em um êxtase de tamanha brasilidade em tão pouco espaço de tempo. Quando o jogo acabou resolveram sentar em roda pra combinar a próxima partida. Ficou definido que toda terça de quinze em quinze dias o trabalho seria na praça e ali jogariam bola, sendo que no restante do expediente poderiam falar sobre seus trabalhos com quem mais estivesse disposto. Nosso sonhador viu que era tarde e resolveu se retirar.


E de fato se retirou. Falei que se tratava de um sonhador. Voltou para o mundo real e para a vista que tinha da janela do ônibus que já se despedia da praça. E então viu que quem estava ali eram apenas os garis em tempo de lazer, enquanto as outras pessoas transeuntes se afastavam daquele monte de laranjinhas negros ocupando um espaço que provavelmente só visitam na posição de limpadores.

Um comentário:

  1. O que vou dizer? que sou o avô do escrevente e que tenho orgulho desde que ele com 12 anos, no colégio, escreveu uma narrativa curta sobre "óculos mágicos"?Pois acho que com aqueles óculos ele continua vendo a realidade dura, injusta e dolorosa que a todos cerca. Isso que desejo ressaltar, mais que o talento da criação, o conteúdo singular, e o aprumo da linguagem: que meu neto continua com o mesmo olhar justiceiro, mantém a linearidade de sua visão preocupada com o social, graças a Deus (ou aos Fados?),será sempre coerente e inteiriço com sua visão de mundo. José Carlos Teixeira Giorgis, escriba bissexto.

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