QUANDO O LIBERALISMO ANDA DE MÃOS DADAS COM O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO - A RETOMADA DA "CURA GAY" NA PSICOLOGIA

Nessa semana fiquei sabendo de mais uma tentativa de que nossa profissão aceitasse profissionais que se dispõem a realizar a terapia de reversão sexual, também conhecida por cura gay. Um grupo pequeno de profissionais organizou uma ação popular e, com a decisão de um juiz, abriu brechas para que profissionais possam reproduzir essa prática que data de tempos nefastos da história humana, onde a diversidade sexual era entendida como uma doença ou um desvio moral.

O que chama atenção nessa decisão é que o juíz não decidiu por colocar abaixo a normativa do Conselho Federal de Psicologia que orienta tanto os profissionais quanto a própria fiscalização do conselho. Pelo contrário, ele manteve a normativa com o seguinte adendo: a orientação segue como orientação, mas o conselho não vai poder impedir profissionais de ofertarem a cura gay, que vai ser ofertada sem propaganda e em ambientes reservados. É nesse paradoxo que consiste um ponto chave da sociedade brasileira e também da nossa profissão. Vejamos.

A discussão em torno da retomada da cura gay avança basicamente em duas frentes: uma frente científica e outra político-ideológica. Na frente científica há uma vastidão de materiais sobre a terapia de reversão e seus fracassos, senão agravantes para a saúde mental de quem a ela se sujeitou ou foi sujeitado – valendo destacar aqui toda crítica produzida pela reforma psiquiátrica brasileira aos tempos em que muitos eram internados apenas por serem “sexualmente pervertidos”. Ou seja: há um acúmulo histórico dentro da área sobre essas práticas em termos de saúde e de direitos humanos, tornado-se uma frente onde o ponto a favor da cura gay só se sustenta em cima da própria ignorância, visto que globalmente até mesmo instituições significativas e mais rígidas como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Associação Americana de Psiquiatria (APA) deixaram de reconhecer a homossexualidade como uma doença em seus manuais (Classificação Internacional de Doenças e Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) ¹.

Impossibilitados de vencerem de forma argumentativa na frente teórica e metodológica, para fazer valer seu preconceito e pressupostos religiosos, os defensores da cura gay adentram então em um debate que é fundamentalmente político: a liberdade do profissional e do paciente de ofertarem ou buscarem uma cura pra sua sexualidade. É aqui que o juiz instaura então nosso paradoxo, pois admite as orientações dadas pelo conselho (ou seja, entende que elas são necessárias), MAS entende que prevalece a liberdade dos profissionais de ofertarem a cura gay, sem a intervenção de nenhum órgão regulador pra isso (no caso, nosso conselho). O que é isso senão a prevalência direta da noção burguesa de liberdade, que se remete a uma liberdade de mercado, regulada pela noção de oferta e demanda?

Percebam que não há nenhuma discussão social e científica por trás dessa defesa intransigente da liberdade de ofertar a cura gay, toda questão é reduzida à condição de mercadoria, o que descola o fazer psi de seus efeitos em uma dimensão social. Há apenas essa noção torta de que é direito meu como cristão e/ou profissional ofertar a cura gay, independente do que isso signifique ou tenha significado pra todo um segmento da população que hoje se identifica dentro das siglas LGBT. Digo cristão, pois vejo que muitos desses profissionais se identificam como desse segmento religioso e acabam misturando preceitos bíblicos com sua própria ética como profissional psicólogo ².

É nessa dobradinha entre ideologia (no sentido marxista) liberal e fundamentalismo religioso que pode se expressar a defesa de uma cura gay. Ela não tem nenhuma outra via de fundamentação, visto que cientificamente já é batida e que simplesmente dizer que “acha que tem que curar porque a bíblia considera negativo” não é nada convincente. Essa operação insidiosa pelo qual preconceito e uma religiosidade bem específica tentam pautar a ação de uma categoria têm sido extensivamente usada por esses setores, que andam mascarando suas pautas religiosas em valores liberais e uma discursividade deturpada de democracia. O apelo ao debate político e ideológico é tão grande, que essa segunda frente de discussão tenta engolir a primeira, onde defensores da cura gay e da liberdade advogam pelo direito de fazerem pesquisas pra provar a eficácia da cura gay e a patologia da homossexualidade, visto que estariam sendo proibidos disso.

Dessa discussão, finalizo com duas questões:

A) Não é apenas na Psicologia que valores preconceituosos e contra os direitos humanos têm sido difundidos. Na sociedade brasileira como um todo a ideologia liberal tem sido usada para justificar “o direito de ser preconceituso”, afinal, se uma pessoa homossexual pode falar contra o preconceito, porque eu não posso falar a favor do preconceito contra ela, visto que ela me ofende com sua expressão sexual? Na idéia de que “podemos tudo”, afinal somos “livres”, estamos em tempos em que até candidatos à presidência correm livres difundindo ódio com aclamação.

B) É inaceitável para psicólogos comprometidos com a profissão que valores religiosos e preconceituosos se escondam através da liberdade dentro de nossa categoria. Nossa profissão não pode ser usada como uma máscara para dar livre vazão e legitimidade à homofobia e todo tipo de preconceitos.

O discurso da liberdade, essa liberdade mercadológica, tem feito com que muitos profissionais que se identificam como liberais apoiem a cura gay e reforcem essa aliança entre liberalismo e conservadorismo em sua forma religiosa. A esses, lhes digo: cuidado com o que estão alimentando, pois essa aliança não é de hoje e culminou em regimes historicamente reconhecidos como genocidas e violentos, inclusive no nosso próprio país.

_______________________________

¹O DSM-V ainda mantém a Disforia de gênero como um transtorno. No que pese a necessidade de ser revisto, ainda assim trata-se de um “transtorno” que se refere “ao sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa. Embora essa incongruência não cause desconforto em todos os indivíduos, muitos acabam sofrendo se as intervenções físicas desejadas por meio de hormônios e/ou cirurgia não estão disponíveis. [..] foca a disforia como um problema clínico e não como identidade por si própria” (p. 450-451, DSM-V, 2014). A identidade não está em questão. Lembrar, porém, que o segmento "T" segue sendo visto como patologia.

²Quanto a este autor, nada tenho contra o fato de que psicólogos e psicólogas tenham sua espiritualidade. O problemático é quando ela intenta incidir sobre a vida do outro, através do lugar de saber da Psicologia, para reproduzir preconceitos e ódio.

CRÔNICAS DE TEMPOS DE GOLPE - PRESOS NA SURPRESA

No início de Setembro de 2017, vivi e vi o Movimento Brasil Livre cancelar uma mostra de obra de arte na minha cidade, acusando a mesma de promover o que se convencionou chamar de “gayzismo”, que na prática são as discussões que promovem a temática LGBT e os sujeitos desse segmento.

Esse fato entra junto de muitos outros em um rol de acontecimentos que vão gradualmente compondo tempos nefastos e retrógrados no nosso país. Só aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, temos um prefeito que é aliado/membro direto desses movimentos de extrema direita e que recentemente acionou a justiça para proibir que façam manifestações contra ele. Nem a presidenta (supostamente uma comunista autoritária) em vias de sofrer impeachment apelou para tal medida. Ao norte do país, as sombras do famigerado Escola sem Partido avançam na direção da formação de um policiamento contra a doutrinação ideológica, especificamente a de esquerda, pois a de direita com seus preceitos mecadológicos pode e deve ser difundida livremente.

Os setores mais progressistas se indignam e dizem: “esses movimentos de direita se vangloriam de serem favoráveis à liberdade, mas na prática têm operado com um crescente autoritarismo mesclado com ódio!”. E eu me pergunto enquanto escuto isso o seguinte: qual é a surpresa? Talvez em algum momento tenhamos perdido o tino do debate sobre luta de classes, que desde muito tempo já denuncia que a liberdade que a burguesia sempre se refere é a de mercado. Não há nenhuma preocupação desses movimentos que se dizem livres ou libertários com a liberdade humana, pois caso houvesse eles não estariam caçoando de professores em greve ou apoiando a repressão contra manifestações estudantis; muito menos vibrando com o fechamento de uma galeria de arte! Vale dizer que era uma galeria de arte promovida por um banco internacional, de forma que poderíamos tranquilamente aplicar a fórmula liberal universal da “mão invisível” e pensarmos da seguinte forma: se eu não gostei, não frequento e nem uso mais esse banco. Evidente que o MBL e seus apoiadores não operaram dessa forma, mas sim pela da repressão. Repressão de uma temática específica e que diz de setores marginalizados da sociedade, o que torna a ação deles ainda mais direcionada.

Acredito que para nós são tempos de perguntas e não de respostas imediatas, muito menos soluções prontas. Encerro então retomando a pergunta: Por que ainda estamos presos na surpresa?