O QUE FAZER?

Uma caminhada de 15 minutos por Porto Alegre por volta das 7:30h

Numa escadaria algumas pessoas se organizando para o trabalho e vizinhos conversando.
Nas calçadas temos pessoas apressadas, um boteco com taxistas e algumas pessoas em farrapos jogadas no chão, em frente a uma padaria que eventualmente lhes joga migalhas.

Passo por uma praça que literalmente fede a merda humana e com partes do gramado que batem em meus joelhos de tão altas.

Um viaduto sujo, conglomerado de gente pegando ônibus. Outra praça suja, gente catando coisas do lixo, outro sujeito esfarrapado mendigando nas portas das lanchonetes. Um cara mal encarado em sua fruteira, que eu vejo sempre que faço esse trajeto. Um gari pede dinheiro para tomar café para um transeunte, que reage com surpresa e um pouco de nojo. Mais à esquina, um homem já idoso, acompanhado de seu carrinho de supermercado cheio de sacolas, roupas e outros pertences dele lê um jornal: Zero Hora.

Caminho mais por uma avenida e me deparo com um condomínio-edifício-garagem, um verdadeiro colosso urbano. Isso me faz curiosamente olhar para o asfalto da avenida e ver que carros circulam livremente enquanto me aperto entre pedestres. No outro lado, perto do hospital, mais pessoas dormindo no chão.

No meio do caminho um sujeito maltrapilho olha pra mim e diz: "Me dá 2 reais?" - sinalizando um número 2 com os dedos. Já afetado pela caminhada acabo também sendo grosseiro, sem querer, e noto que ele fica surpreso. Fui curto e grosso, não queria parar pra conversar.

Quase em casa mais uma fruteira (na verdade a terceira) de um homem alegre e bufão. Conheço ele, ele fala alto e mexe com as pessoas na rua. Passo por uma creche e vejo na frente dela inúmeras mães, provavelmente de origens mais populares pelas roupas que vestem e como falam de seus patrões. Fumam, estão com sobrepeso e semblante cansado.

Antes de chegar em casa, um último encontro: uma mulher fala alto, gesticula e aparentemente discute/briga em alto e bom tom com o nada.

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O ontem se faz hoje, pois lembro que passei boa parte da minha tarde discutindo a liberdade de um pesquisador de uma universidade pública poder fazer coisas inúteis e/ou sem relevância e a potência nômade de pessoas que perderam suas casas e foram se camuflar vivendo em aeroportos - em Buenos Aires e na Europa. Não no Brasil.

Crônicas em tempos de Golpe – Por que paramos de olhar para nossas sobras? [Disparado pela manifestação anti-Butler]

Hoje no Brasil, sujeitos que se dizem liberais estão se manifestando contra a palestra da Judith Butler, uma renomada pesquisadora internacional e com produções lidas no mundo inteiro. Estão aparecendo internacionalmente queimando uma boneca da pesquisadora na frente de um SESC – instituição que é mantida pelo grande empresariado brasileiro e que eles apoiaram e apóiam nas “reformas” que têm sido feitas pela burguesia nacional. Realizam esse protesto amparados na argumentação de que ela prega "ideologia de gênero", um termo que está cada vez mais hegemonizando o senso comum e que insinua que há um plano esquerdista de tornar as crianças homossexuais e/ou difundir a pedofilia pela dominação das idéias, plano (segundo eles) em curso no país pelo governo socialista do PT.

Bom, é bem claro que perdemos o fronte e uma mescla de ignorância com conservadorismo venceu a disputa. Mas será? Fico pensando que talvez nunca tenhamos estado por cima de nada. Talvez pela aposta em um programa por demais conciliatório e socialdemocrata, ou pelas importantes conquistas da redemocratização, tenhamos achado que estávamos realmente caminhando em direção a uma ordem e progresso, iludidos por certo sonho positivista de um avanço que vinha devagar, mas vinha! O queixo cai quando nos deparamos com tamanha demonstração de ignorância e uma onda de revisionismo completamente anti-intelectual e anti-reflexão, mas essa dimensão arcaica, que com muito estranhamento se mostra no moderno, é uma questão que Walter Benjamin havia se deparado em sua época, quando observava surpreso a ascensão nazista.

O que ele nos ensina com algumas de suas passagens é que é ao olhar para os restos e as sobras da história contada que entendemos o presente e podemos reconstruir a própria história. A história de 1988 tem sido ensinada de uma forma, bem como a dos últimos 10 anos de governo também. Mas e aquilo que paramos de contar pra fortalecer uma narrativa de coesão e em prol de um “ápice” onde vencemos? Quais sobras nós, como esquerda, fomos deixando na nossa caminhada? Como elas andam se apresentando hoje na nossa militância e coalizão?

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