Nota de um Capricorniano vencido

Para nós a vida é luta constante

Acordar todo dia com a mente disciplinada
Raciocínio aguçado e estratégia traçada
Todo esforço nunca é o bastante
Aproveitar o máximo cada instante
fazer dele uma experiência a ser examinada
minuciosamente trabalhada e cultivada
Erro não se repete logo anotar é importante
Com a mente preparada vou à luta marchando
A pintura de guerra é cara fechada pois não busco graça
Mas a criança desce a escada devagar me atrapalhando
“Anda logo, tenho compromisso ô desgraça!”
Ela nem liga e desce sem pressa brincando
E de súbito ela vira e me ataca! Um sorriso que fissura minha couraça
Fico tolo: adeus pintura-bélica-carranca
Aceno sem jeito sorrindo e sigo a minha andança.
E na minha marcha e forma militar eu vacilo:
Droga, foi tanto preparo disciplinar pra ser vencido por um simples e sincero sorriso.

Os Familiares e os Bruxos

Quero fazer esse registro sobre a importância do familiar para meus amigos bruxos e bruxas. Os familiares são nossos parceiros(as) e amigos(as). Nos encontramos com eles através de frutos do acaso do nosso viver e acabamos por estabelecer com eles pactos: cuidamos deles e eles cuidam da gente. É como se fosse um pedido para dividir uma travessia que é tanto deles quanto nossa e que está sempre marcada por toda sorte de provação. Eles estarão lá em rituais ou no cotidiano nos protegendo e nós estaremos com eles cuidando para que fiquem bem.

Comigo e com o Luke foi isso do acaso. Quando eu de fato vim viver com ele eu era tratado como ele geralmente tratava as visitas: trepando em seus braços e simulando sexo. Ele costumava vir ao meu ouvido e lamber minha orelha ao mesmo tempo em que mexia sua corcunda buscando transar com meu braço. Éramos um pouco indiferentes e estranhos, pois eu também ligava pouco pra ele ao ponto que minha mãe costumava contratar pessoas pra sair com ele. O meu lugar de trabalho é meu quarto, onde sento e escrevo, leio e faço outras coisas relacionadas a isso. Nos nossos primeiros encontros, Luke costumava entrar cauteloso no meu quarto (que era do meu irmão) e subir na janela pra ficar curtindo o sol e o vento na cara. Na época eu fazia abdominais no chão e volta e meia ele entrava e ficava me “atrapalhando” lambendo minha cara, produzindo risadas.

Com o tempo, percebi que suas "garotisses" nunca aconteciam quando eu estava estudando e trabalhando. Quando eu estava sentado lendo e escrevendo para provas de residência ou mestrado o que acontecia era que eu acabava por olhar para o lado e ele estava lá. Silenciosamente ele entrava no quarto ou na sala e se deitava em sua caminha, como um guardião. Hoje fico horas e horas trabalhando com ele ao meu lado. Nosso acordo foi forjado dessa forma menos convencional: estarei contigo quando estiveres em provação e tu me cuida. E assim construímos uma relação onde o trabalho é um elemento fundamental. Ele me ajuda a cuidar do meu trabalho e eu cuido dele. Nosso regime de ação juntos envolve um número específico de horas escrevendo ou lendo e eventuais pausas onde vamos nas gramas do Shopping Total para que ele também possa fazer o seu trabalho de detetive, procurando pistas cautelosamente com seu faro e resolvendo mistérios que ele mesmo fica impelido a enfrentar.

A minha nota aos outros bruxos e bruxas é só reafirmar que cuidem de seus familiares. Observem como eles nos apresentam as cláusulas de seu contrato e sigam elas com a devida rigorosidade.


A imagem pode conter: uma ou mais pessoas e cão

Notas sobre a vida ou um outro olhar sobre meus óculos mágicos

Acostuma-se o míope a achar os óculos sempre e religiosamente nos mesmos lugares.

Um dia, ele acorda e os óculos não estão lá. Rabugento ele procura. Até que incrédulo, o míope se atira no chão e olha embaixo da cama.

E eis que eles estão lá. No lugar dos Monstros. O instrumento que te faz enxergar.

Isso é viver.

Carta às amigas e aos amigos nos prelúdios dos meus 30 anos de vida

Aos amigos e amigas e a quem mais servir,

O ano de 2019 não foi um ano fácil. Foi de uma dificuldade tão intensa que conseguiu fazer com que o campo progressista brasileiro, pela primeira vez depois de muito tempo, conseguisse finalmente ter como uma de suas palavras de ordem mais difusas em território nacional uma espécie de síntese entre amorosidade e luta política: “ninguém solta a mão de ninguém”.

Mas essa carta é pra lhes dizer que esse ano eu não consegui segurar a mão de ninguém. Vocês estavam em roda e em comunhão, soltaram as mãos uns dos outros abrindo inúmeras vezes o círculo, com as palmas das suas mãos convidando para que eu fizesse parte disso, mas eu não consegui segurar. Entre carrancas e imobilidade, sei que fiz parecer como se não fosse importante ou como se eu não quisesse estar perto – mas nunca foi isso. A verdade é que nesse trajeto final aos 30 anos há a marca de um momento muito difícil no qual estive paralisado, atravessado por certa neurastenia da qual nunca fui acometido. Fui faltoso em todos os aspectos possíveis: não li alguns de seus textos, não presenciei alguns dos momentos importantes, não cumpri com acordos, não visitei suas casas, abracei de menos, não devolvi sorrisos, falei muito pouco, pouquíssimas vezes afirmei a importância de vocês na minha vida, impus diversos limites para encontros… Cuidei pouco dos diferentes patrimônios afetivos e simbólicos que constituímos juntos via amizade. A situação foi tão drástica que eu sequer consigo contar nos dedos de duas mãos as vezes em que fiquei embriagado junto de vocês.

Assim, escrevo-lhes essa carta não para me desculpar, mas para dizer que apesar disso eu vivo. Diz Canguilhem (um filósofo que foi antifascista em pleno nazismo) que a vida é um processo normativo: está orientada por um impulso vital que faz com que consigamos, a partir da relação com nossa história singular e coletiva, reinventar ambas no próprio exercício de afirmar nossa existência. Impulso esse que nos convida sempre à composição com aquilo que a vida nos lança em meio à sua aleatoriedade. Assim, estar saudável diz da capacidade de viver a potência dessa tessitura, enquanto a doença não é a presença ou não de determinado diagnóstico e sim o assujeitamento totalizante àquilo que se passa. Uma mera adaptação ao real, onde é ele que acaba por ditar os rumos da vida a partir de uma aderência extremada do vivente aos seus regramentos particulares.

Eu lhes digo: fui pego de surpresa por minha situação. Quando um encontro que a vida nos lança é o da tristeza sem nome, como se compõe com isso? Vivi um vazio inescrupuloso, atravessado pela angustiante e ininterrupta presença da incógnita. Eu aderi a isso, sendo modulado por aquilo que me assolou. Desenvolver maneiras de compor com determinadas situações nem sempre é da ordem de um tempo lógico: demanda uma duração que, apesar dos pesares, sustenta um desconforto que eventualmente pode se transmutar de uma posição de agente indesejado para uma fagulha de outra possibilidade.

Eu queria chegar nos meus 30 anos bem. Mais magro, bem sucedido financeiramente e com maiores certezas sobre o que fazer quanto ao meu futuro. Nesse sentido, não me considero ainda bem, mas me considero saudável pela perspectiva de Canguilhem. Aberto, enfim, a fazer desse episódio da minha vida algo a compor com a de vocês mediante as possibilidades que a minha relação com cada uma permite. Hoje eu seguro as mãos com a devida coragem que cabe aos desacomodados.

REGISTROS DO #15M - CONTRA A FALÁCIA DA DIREITA A VERDADE DA AÇÃO

No dia 15 de Maio, tivemos outra manifestação histórica (#15M). Foi o segundo grande levante com críticas ao atual presidente e seu projeto retrógrado de governo, sendo o primeiro deles protagonizado pelo movimento feminista com o mote #elenao. Os grandes atos do dia 15 tinham como ponto central “Educação Pública e de Qualidade”, partindo do entendimento de que a deve ser mantida e defendida pelo Estado. Isto significa que se trata de compreendê-la como um direito conquistado. O que implica, também, em entendê-la como estratégica em um projeto de país.

Ainda que a pauta central tenha sido os cortes na educação, o pano de fundo era a linha da defesa da democracia e suas conquistas, algo tranquilamente identificável na medida em que se caminhava com o povo: bandeiras LGBT, materiais e palavras de ordem contra a reforma da previdência, exercício de memória de Marielle Franco, contra o golpe, contra a reforma trabalhista, sindicatos, partidos, professores etc. Podemos dizer que se trata de uma pauta de interesse daqueles que se dizem nacionalistas, pois está em questão a defesa das conquistas políticas do povo de nosso país e a importância de nossa autonomia na dinâmica da produção de conhecimentos local e global.

Por isso, não é a toa que a direita ficou com medo! Nessa manifestação não estavam só pessoas com algum engajamento prévio de militância. Estavam lá pessoas que usufruíram desse direito (educação pública custeada pelo Estado) e por isso faziam questão de estar lá para sustentar sua defesa. O exercício militante, que inclui participar desse tipo de marcha, carrega também um elemento formativo: viver junto dos outros essa marcha facilita a transversalidade de pautas que nem sempre se cruzam em abstrato. O governo teme a solidariedade entre uma esquerda ainda fragmentada e por vezes difusa entre progressistas e até liberais que se vêem hoje no país acusados serem de esquerda, apenas por terem noções básicas sobre capitalismo.

Não demorou para essa direita acuada ativar sua militância a partir de seus elementos centrais: ódio e mentira. A linha de argumentação básica dos imbecis se resumiu a dizer que o ato era “político demais” porque tinha partidos (talvez o seu disco mais arranhado de tão repetido) e a fomentação de argumentos falaciosos e mentirosos, como buscar deslegitimar as pessoas que estavam se manifestando dizendo que elas não fizeram o mesmo nos governos do PT (uma mentira sem tamanho).

O primeiro ponto é uma espécie de dissonância cognitiva ou simplesmente argumentação de má fé. Quem não lembra que partidos políticos financiavam as manifestações a favor do impeachment? Quem não lembra de políticos partidários subindo em palanques e falando? Quem não viu toda a corja direitosa se filiando em siglas para ser eleita? Quem ainda consegue, em pleno 2019 e com tamanha polarização no país, achar que existe manifestação que não seja política? Será que se um de seus lideres (agora eleitos) ou seus movimentos (todos com vínculos partidários) aparecessem em um ato político, seriam expulsos? Será que achariam uma maravilha ou ficaram incomodados?

Francamente, aos ingênuos e não aos canalhas: se vocês são contra os cortes na educação o que faz mais sentido? Aceitar essa argumentação falsa dos governistas ou estar do lado de quem está agindo contra os cortes? De resto, é claro que a esquerda partidária e organizada estava na marcha! É ela e seus outros setores que historicamente defenderam e defendem a educação como um direito e não como uma mercadoria! Isso é um fato indiscutível, quem defende a educação nos termos em que está posto para parte do povo (que se trata de um direito e de que é necessário que siga assim) É E SEMPRE FOI A ESQUERDA. Eis um dos motivos do medo da direita: ver suas mentiras se esfarelando na medida em que o que define o real é a prática e não mensagens falsas.

O segundo ponto da direita é cobrar de que não havia militância quando o PT estava no governo. Quem viveu na universidade nos anos petistas sabe o quanto isso é falso. Primeiro, porque era notável que havia um aumento do investimento nessas instituições por todos os segmentos: os estudantes viajavam mais para seus congressos, aumentam-se os benefícios estudantis, havia material para os professores e técnicos trabalharem etc. Ao mesmo tempo, nos momentos de desmonte, se faziam inúmeros levantes e protestos, QUE PRONTAMENTE ERAM CRITICADOS COMO “BALBÚRDIA” POR TODOS OS QUE HOJE QUEREM APONTAR O DEDO E DIZER QUE NÃO HAVIA MANIFESTAÇÃO! A canalhice desses segmentos não tem limite algum e é triste que parte da população se deixe levar por um ódio completamente quimérico.

Mas seguimos firmes. Aqueles que foram nos atos, não tenho duvidas, saem fortalecidos e dando risada de tamanha estupidez falaciosa. Quem estava lá viu como passou longe dessa caricatura completamente falsa que a direita tenta fazer dos protestos, assim como quem viveu nas universidades também vê o quão imbecil é a caricatura que o governo tenta vender delas. Ainda há tempo de se desfazer da idiotice fomentada pelo governo e lutar pela educação junto de quem nunca deixou ela de lado.

A importância da balbúrdia: memória-elogio ao Centro Acadêmico Livre de Psicologia - UFSC

Foto do ato realizado em Florianópolis-SC

Um lindo registro do 
#15M em Florianópolis! Tive a felicidade de me formar em Psicologia no curso da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesse lugar, além de ter a cesso à formação curricular, foi possível também uma formação que aconteceu na medida em que eu me movimentava junto de colegas: manifestações, espaços paralelos de estudo, centro acadêmico, diretório central, conversas pelo bosque, avaliação de curso etc.

Em um dia intenso como o de hoje é muito bom ser convidado a retomar algumas dessas memórias como estudante de Psicologia e militante do Centro Acadêmico Livre de Psicologia da UFSC. Embora presente como pós-graduado/graduando e profissional formado, não era segredo que quem hegemonizava o ato em Porto Alegre eram secundaristas e estudantes da graduação: seus cantos eram mais alegres, os corpos moviam com mais disposição, a goela mais exposta aos gritos de ordem, a ousadia de puxar sempre pra mais a manifestação...

São memórias fundamentais de um movimento do qual fiz parte e segue até hoje, inclusive lembrando a importância da não resignação a um modo de subjetivação neoliberal.

Que seja dito: A balbúrdia é um elemento fundamental do pensamento. Não há produção intelectual sem balbúrdia, mesmo que se trate da ciência mais exata da face da terra. A bagunça nos convoca ao rearranjo, a necessidade de mudança e de criação: motor revolucionário.

Ao curso de Psicologia e em especial o CALPSI-UFSC, de seus fundadores até os atuais membros da gestão, um grande obrigado e a certeza de que independente de governos ou a situação pessoal de cada um ontem, hoje ou amanhã: a nossa memória prevalece.

NOTAS EM TEMPOS DE PÓS-GOLPE: A TAL UBERIZAÇÃO

Entro em um restaurante com clima de pressa, pois estava atrasado.

Vou me servindo enquanto um computador fica apitando sem parar e um tiozinho suado com a camisa do Grêmio vai e volta da cozinha para o computador. Quando ele mexe no computador ele para de apitar, mas logo em seguida volta a apitar. Quando me sento na mesa me dedico a olhar ao redor do buffet livre:

Um espaço grande, comigo e mais umas 4 pessoas sentadas nas mesas comendo. Em pé e alguns outros sentados, cerca de uns 7 ou 8 motoqueiros com mochilões térmicos nas costas, angustiados e olhando para seus celulares. O tiozinho vai e vem do computador para a cozinha, parecendo angustiado. Vez ou outra, retorna com sacolas de papelão onde os motoqueiros pedem para ele grampear antes de recolherem o que provavelmente é a entrega deles, saindo como jatos e pedindo apressadamente para confirmar a saída do alimento no aplicativo.

Era um restaurante de Buffer livre, mas quem estava em maioria ali eram entregadores de aplicativos. Na fila para pagar, a prioridade eram eles e eu tive de aguardar.

Que modos de subjetivação estão em produção?

UMA ANOTAÇÃO SOBRE O ATO EM MEMÓRIA DE MARIELLE FRANCO EM PORTO ALEGRE

Vale marcar a beleza que foi o ato em memória da Marielle Franco e em defesa de uma vida mais digna na cidade de Porto Alegre.

Não é de hoje que tenho dito que é inegável a maioria feminina na cena política urbana da cidade. O ato por Marielle teve como marca não só uma hegemonia feminina,mas também muito mais negra. No centro do ato que aconteceu na cidade, estava posta a potencia do feminismo interseccional, especialmente quando dirigido por mulheres negras. Não foi um dia de falas masculinas em palanques: apenas mulheres falaram. Diversas, de várias correntes, todas defenderam de forma muito especial a luta por uma sociedade mais justa, agregando elementos a partir de seus lugares de fala e também de militância organizada.

Disso tudo, há um ponto muito específico me chamou atenção: uma mudança significativa nas palavras de ordem da manifestação. Parece (para mim) ser um desdobramento de uma reconfiguração mais feminista e anti racista em termos na nossa direção política. Ecoa em minha mente até agora: " Marielle perguntou, eu também vou perguntar, quantas mais tem que morrer pra essa guerra acabar". Cantado em voz majoritariamente feminina.

Penso que a linha política posta por essas mulheres dialoga mil vezes mais do que as tradicionais que têm sido utilizadas. Há uma força instituinte sem precedentes se articulando em torno da organização delas e se faz cada vez mais imprescindível para nós homens escutarmos e nos deixar levar por esse fluxo intenso de luta, mas também de amorosidade e busca por justiça.

AINDA SOBRE A TERRÍVEL E ABOMINANTE NOTA TÉCNICA DE SAÚDE MENTAL DO GOVERNO FAXO -QUAL É A TARA PELO ELETROCHOQUE?

A nota recém lançada pelo governo é um horror. É fundamental ler ela para ver que seus fundamentos são os mesmos que sustentam o resto das ações desse governo: a ausência de embasamento, a necessidade de colocar a culpa nos governos de esquerda e um discurso essencialmente moralista. Eu queria comentar aqui essa tara pelo eletrochoque. Que fique claro que pra mim a questão principal é a retomada de hospitais psiquiátricos, mas vamos para a ECT antes.

A história desse procedimento anda de mãos dadas com a necessidade da psiquiatria ter que se refundar sob bases neurofisiólogicas, visto que toda sua história foi acompanhada por críticas severas á falta de cientificidade dos procedimentos psiquiátricos.

O famoso Eletrochoque foi muito utilizado nos manicômios pelo mundo a fora, sempre acompanhado de argumentações científicas inconsistentes a respeito de sua efetividade. Na prática, o eletrochoque era mais um instrumento de punição e tratamento moral do que de saúde, pois sua utilização tinha mais a ver com uma necessidade de domar e/ou punir loucos desobedientes ou "problemáticos" do que qualquer outra coisa. Ele era, portanto, muito funcional ao que se prestava e cruel ao mesmo tempo.

A ECT (que é o eletrochoque de volta) reaparece agora com essas roupagens estilo Hi-Tec e prometendo choques para reequilibrar a química cerebral. Até onde eu li sobre, segue sendo um procedimento complexo, caro e que precisa ainda de mais validações para ser usado a nível de política pública. No meu ponto de vista, sendo seguro, comprovado e utilizado como tratamento e não como tortura, não vejo problema. O que é suspeito é a citação direta sobre esse procedimento por parte do governo. Qual é a necessidade de reafirmar a ECT dessa forma e, curiosamente, junto dos hospitais psiquiátricos?

É aqui que pra mim entramos no verdadeiro ponto em questão: o interesse de abandonar a reforma psiquiátrica e seus preceitos progressistas e libertários para regredir ao modelo hospitalocêntrico e manicomial. Substituir um modelo de prevenção e tratamento em liberdade e no território pela retomada da internação, dos hospitais psiquiátricos e de procedimentos de alta complexidade não passa da necessidade da Psiquiatria tentar se reafirmar como hegemonia no campo da saúde mental, ao mesmo tempo em que faz do tratamento da loucura novamente uma bela mercadoria (nunca deixou de ser, mas podemos discutir isso em outro momento) pra ser explorada e preferencialmente tratada através de medidas baseadas no isolamento e internação,voltada diretamente aos elementos mais indesejados da sociedade: pessoas pobres e/ou em situação de rua, usuárias de drogas e que são em sua maioria pessoas negras. Quanto mais gente internada, mais dinheiro rolando. Para um Estado que se diz falido, instaurar um CAPS AD IV (com mais profissionais médicos) e focar em procedimentos de alta complexidade como hospitais e ECT parece um completo contrassenso, como é toda política desse governo.

De resto, a nota é um show de horrores e de retrocessos. Reafirma que devemos ser contra legalização das drogas e que a busca deve ser pela abstinência e supressão do uso de substâncias. Realinha a Saúde Mental com o discurso da Segurança Pública e retoma a clássica função de dominação dos corpos e punição dos indesejáveis.

Ps:
Leiam a nota. Ela é também muito mal escrita, parecendo mais um panfleto ideológico voltado pra legitimar hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas (essas últimas diretamente citadas várias vezes)

http://pbpd.org.br/wp-content/uploads/2019/02/0656ad6e.pdf