Carta às amigas e aos amigos nos prelúdios dos meus 30 anos de vida

Aos amigos e amigas e a quem mais servir,

O ano de 2019 não foi um ano fácil. Foi de uma dificuldade tão intensa que conseguiu fazer com que o campo progressista brasileiro, pela primeira vez depois de muito tempo, conseguisse finalmente ter como uma de suas palavras de ordem mais difusas em território nacional uma espécie de síntese entre amorosidade e luta política: “ninguém solta a mão de ninguém”.

Mas essa carta é pra lhes dizer que esse ano eu não consegui segurar a mão de ninguém. Vocês estavam em roda e em comunhão, soltaram as mãos uns dos outros abrindo inúmeras vezes o círculo, com as palmas das suas mãos convidando para que eu fizesse parte disso, mas eu não consegui segurar. Entre carrancas e imobilidade, sei que fiz parecer como se não fosse importante ou como se eu não quisesse estar perto – mas nunca foi isso. A verdade é que nesse trajeto final aos 30 anos há a marca de um momento muito difícil no qual estive paralisado, atravessado por certa neurastenia da qual nunca fui acometido. Fui faltoso em todos os aspectos possíveis: não li alguns de seus textos, não presenciei alguns dos momentos importantes, não cumpri com acordos, não visitei suas casas, abracei de menos, não devolvi sorrisos, falei muito pouco, pouquíssimas vezes afirmei a importância de vocês na minha vida, impus diversos limites para encontros… Cuidei pouco dos diferentes patrimônios afetivos e simbólicos que constituímos juntos via amizade. A situação foi tão drástica que eu sequer consigo contar nos dedos de duas mãos as vezes em que fiquei embriagado junto de vocês.

Assim, escrevo-lhes essa carta não para me desculpar, mas para dizer que apesar disso eu vivo. Diz Canguilhem (um filósofo que foi antifascista em pleno nazismo) que a vida é um processo normativo: está orientada por um impulso vital que faz com que consigamos, a partir da relação com nossa história singular e coletiva, reinventar ambas no próprio exercício de afirmar nossa existência. Impulso esse que nos convida sempre à composição com aquilo que a vida nos lança em meio à sua aleatoriedade. Assim, estar saudável diz da capacidade de viver a potência dessa tessitura, enquanto a doença não é a presença ou não de determinado diagnóstico e sim o assujeitamento totalizante àquilo que se passa. Uma mera adaptação ao real, onde é ele que acaba por ditar os rumos da vida a partir de uma aderência extremada do vivente aos seus regramentos particulares.

Eu lhes digo: fui pego de surpresa por minha situação. Quando um encontro que a vida nos lança é o da tristeza sem nome, como se compõe com isso? Vivi um vazio inescrupuloso, atravessado pela angustiante e ininterrupta presença da incógnita. Eu aderi a isso, sendo modulado por aquilo que me assolou. Desenvolver maneiras de compor com determinadas situações nem sempre é da ordem de um tempo lógico: demanda uma duração que, apesar dos pesares, sustenta um desconforto que eventualmente pode se transmutar de uma posição de agente indesejado para uma fagulha de outra possibilidade.

Eu queria chegar nos meus 30 anos bem. Mais magro, bem sucedido financeiramente e com maiores certezas sobre o que fazer quanto ao meu futuro. Nesse sentido, não me considero ainda bem, mas me considero saudável pela perspectiva de Canguilhem. Aberto, enfim, a fazer desse episódio da minha vida algo a compor com a de vocês mediante as possibilidades que a minha relação com cada uma permite. Hoje eu seguro as mãos com a devida coragem que cabe aos desacomodados.

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