Prazer e o simbólico: simples reflexão sobre os chistes e a arte/dança



    Recentemente finalizei a leitura do livro “Os Chistes e sua relação com o inconsciente”, de Sigmund Freud. Devo dizer que a leitura deste livro representou para mim mais um grande acordo e aproximação com esta teoria, especialmente por representar aquilo que no campo psicanalítico mais me chama atenção: o significado que damos as coisas. Longe de mim fazer o fichamento do livro nesta postagem. A intenção está bem longe de ser isso, queria apenas fazer algumas divagações sobre o que este livro suscitou em mim.

    Primeiro o fato consagrado: a busca pelo prazer e a evitação do desprazer. Estamos sempre buscando dar vazão para as pulsões, de preferência da forma mais rápida e imediata o possível. Queremos sempre concretizar nosso desejo e nos livrarmos o máximo possível daquilo que nos causa qualquer tipo de desconforto ou insatisfação. Se parar para pensar, acredito que muitos dos leitores concordariam mas fariam o seguinte adendo: “Está correto. Mas hoje não somos selvagens, não sairei por aí fazendo o que eu quero pois é errado”. De fato somos muito “avançados” e para que possamos viver de forma coletiva pactuamos uma série de contratos sociais que em parte dão conta de segurar toda a impulsividade e violência contida em nossas vontades mais primitivas, de tal forma que chega a ser um espanto nos imaginarmos vivendo juntos se não déssemos conta de segurá-las. Ainda assim, por mais que estejamos devidamente domesticados a viver de forma minimamente “civilizada”, não significa que ao segurar todos nossas vontades mais íntimas estamos nos livrando delas. Bem, de fato nos livramos delas pelo menos no plano consciente. Mas aquilo que foge de nossa consciência não o faz ao acaso e também não deixa necessariamente de existir. Aquilo que damos conta de “nos livrar”, inclusive de formas muito sutis e até mesmo inconscientes acha seu lugar no plano do Inconsciente. Neste plano estas pulsões podem existir, refugiadas de qualquer limite que lhes é imposto aguardando a forma mais oportuna de aparecerem e garantir que sejam extravasados da melhor forma possível. Recordo tudo isso apenas para atentar o quão astuciosa é a forma de funcionamento do psiquismo humano, especialmente do inconsciente, a ponto de enganar a nós mesmos a respeito do que queremos mas nos direcionando ao cumprimento de tais vontades das mais diversificadas formas, supostamente nada relacionadas ao que de fato gostaríamos de fazer ou extravasar.
Entramos então no plano do simbolismo. Tão astuciosa é essa forma de realizarmos nossas vontades que encontra através de algo tão cotidiano como a fala formas extremamente elaboradas de dar vazão as pulsões mais sexuais ou agressivas existentes. Astuciosa de tal forma que apropria-se das mais inocentes ou absurdas ligações de palavras e na formação delas realiza uma frase que expressa em poucas palavras aquilo que gostaríamos de dizer ou vivenciar, isto quando não o faz através de uma simples palavra que carrega em si todo material inconsciente que deseja aparecer e que nos enche de satisfação quando proferida. No caso do livro lido, Freud trata dos chistes, jogos de palavras que em determinados contextos sociais dão conta da vazão pulsional. Quando fazemos piadas, alusões, replicamos com absurdos ou até sentenças sem nenhum sentido e temos de volta por parte do outro uma reação como a explosão de risadas temos então um chiste. O chiste é uma forma socialmente aceitável de darmos vazão a nossos desejos (isto, é claro, depende também do contexto cultural, histórico e até mesmo político, um chiste que trata da religião por exemplo pode ser ofensivo a religiosos e não fazê-los rir). Não apenas é uma forma de vazão, como também uma forma altamente econômica e inteligível, de forma que em poucas sentenças expressa coisas que (em tese) necessitariam de uma longa linha de raciocínio muitas vezes custosa e que leva a desistência de sua expressão. O prazer do chiste consiste portanto destas duas coisas: a primeira é que o sujeito que o realiza através dele burla bloqueios sociais e individuais e permite que se expresse algo que de outra forma talvez fosse dificultoso, vergonhoso ou horrível de ser dito/feito e a segunda é que consegue desarmar qualquer grande elaboração racional sobre o tema, expressando em muito pouco, através até mesmo de um nonsense, todo conteúdo que desejávamos nos livrar e que se fosse seguir as vias da racionalidade ficaria impregnado pela mesma vindo inclusive a perder seu caráter de riso. Porém, isto caracteriza o chiste pela via única de quem o expressa e tenho que resgatar aqui melhor o fator do riso. Quem expressa o chiste normalmente não ri e inclusive a ausência de uma reação por parte de quem o diz se faz necessária para que de fato o que foi dito seja um chiste e desencadeie em risadas. Para que o chiste se complete é necessário que existam mais dois elementos na relação: o segundo, o ouvinte, que vai dar risadas e um terceiro que serve como um bode expiatório, como o alvo do chiste em questão e que não precisa necessariamente ser uma pessoa física ou uma presença no momento podendo ser representado simbolicamente por via da fala, da mesma forma que levando em conta a realidade virtual de hoje, quem escuta ou vê o chiste também não precisa estar presente de carne e osso, ainda que precise expressar alguma resposta. Mas voltando: por que o ouvinte dá risadas descontroladas de um chiste? O chiste como falado anteriormente é uma forma astuciosa de vivenciarmos nossas pulsões e ele possibilita isto através de uma esquiva destes bloqueios ao adquirir a forma de um jogo de palavras expresso de uma forma em um determinado contexto. Pois bem, quando ouvimos este jogo de palavras e logo caímos na risada tal fenômeno acontece pois ao ouvirmos esta “malandragem” do chiste de outra pessoa tem ela sob nós o mesmo efeito: gozamos pela vazão de pulsões que por algum motivo estavam inviabilizadas por algum estanque ou bloqueio e que agora, através desta “malandragem”, veem a oportunidade de vazarem, e obviamente o fazem pois de tal forma age o inconsciente. Não pensamos sobre esta “malandragem”, primeiro caímos na risada e então o autor do chiste também fica autorizado a rir-se e completa de vez o gozo que intencionava. A rapidez com que formulamos um chiste ou que rimos apenas conota o caráter inconsciente deste processo que visa justamente esquivar-se da racionalidade por um breve momento e abrir brecha para que saiam essas pulsões, de tal forma que um chiste que é repetido em sequencia ou é vítima da racionalidade perde sua graça. Da mesma forma sempre que lembramos e vemos a oportunidade de falar um chiste que criamos ou que ouvimos o fazemos, para que outra pessoa ao dar risadas permita esse gozo completo a mim também, pois dele necessito e se o fizer de forma antecipada corro o risco de roubar o caráter engraçado do próprio chiste e consequentemente a risada do outro.
    Vejo este fenômeno como algo surpreendente. Adquirimos a capacidade de gozar pela nossa própria fala e sempre através de um outro. Tal forma elevada e complexa de satisfação não me surpreende de existir pois só existe devido os intensos bloqueios sociais e culturais contemporâneos que forçam o inconsciente a expressar-se dessa forma (e de forma alguma isso é uma espécie de elogio pois sabemos também os males que essa sociedade também traz).

    O que fico refletindo posteriormente é uma espécie de “transposição” da nuclearidade deste processo simbólico para outras ações. A racionalidade em excesso de fato não dá conta da expressão de nossas pulsões. Por vezes, tende justamente a dificultá-la e por ser o campo de todas as repressões repassa estas ao que gostaríamos que fosse expresso ou vivenciado, sendo além de um processo custoso e cansativo uma transfiguração que não nos satisfaz completamente no final e que tende a nos desviar completamente ou em parte da intencionalidade que tínhamos. Passamos então a outras formas de gozar que realizam esse mesmo trabalho: uma esquiva da racionalidade e uma economia na forma de expressão, reduzindo a coisas “simples” (mas obviamente ao mesmo tempo complexas) a complexidade pulsional e sua diretividade mas sem necessariamente deixar de escoá-la por completo. Refiro-me por exemplo aos sonhos mas também ao processo sublimatório, como a dança ou a arte no geral. A utilização metafórica, a expressão corporal intensa, por gestos ou símbolos ausentes de uma linguagem racionalizada e formal que dão conta de sintetizar e expressar de forma muito mais satisfatória nossos desejos íntimos, sem rompermos também qualquer bloqueio social ou cultural colocado para nós: um gozo inaceitável de forma aceitável – a fórmula perfeita para a civilização moralizada. Pegando o exemplo da dança: quando observo a expressão corporal de um outro ou outros e consigo sentir prazer e a intensidade disso (embora muitas vezes não consigamos dizer de cara o “porquê” e não à toa propositalmente evitamos dar sentido a isto no momento pois arriscaríamos cessar esse prazer), não estou vivenciando nada mais do que algo semelhante ao que ocorre nos chistes: uma possibilidade de escape pulsional individual, dotado de seu sentido único mas que encontra naquela situação oportunidade para ser consumado de alguma forma, não sem deixar seu rastro emotivo e prazeroso. Não é a toa que nos vemos desejosos de estar em ou visualizar peças ou apresentações para vivenciarmos essa experiência “catártica”, especialmente em momentos onde estamos assolados por sentimentos que nos causam desconforto.

    A minha conclusão é contemplativa da riqueza desta linha teórica. Ela evidencia para mim a fragilidade e a riqueza da existência humana, a simplicidade e a complexidade de nossos desejos e as metamorfoses que eles sofrem, uma concepção que é certamente dialética e se sustenta nos conflitos internos e externos do sujeito. No campo objetivo ela abre escopo para que eu possa pensar os efeitos dos bloqueios criados pela humanidade na psique, suas decorrências e como determinam muito da existência humana, podendo desta forma pensar maneiras não apenas da resolução individual de seus mais variados efeitos no sujeito mas fazer parte da criação de mudanças na forma cultural e política que nos organizamos, tendo muito mais ferramentas para uma análise profunda da humanidade e todo seu patrimônio cultural.

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