Desde as eleições, grupos políticos específicos tem constantemente inserido em pauta o impeachment da atual presidenta. Embora esta palavra tenha a magia de misturar toda uma gama de diversas insatisfações reais que o governo do Partido dos Trabalhadores(PT) criou, é perceptível que o pilar central deste pedido se baseia na corrupção do PT e os escândalos decorrentes disso. Discurso não tão velho e que, na verdade, fazia também parte principal da queda de Collor há pouco mais de 20 anos. Mera coincidência?
A insistência no retorno do impeachment e nas comparações com Collor ("Dillma") é uma repetição que merece ser explorada, pois acaba por se tornar um recurso ilusório que impede a exposição radical de suas causas e, mais importante, bloqueia novas medidas diante delas. Apliquemos uma ferramenta fundamental tanto na análise econômica como na psíquica: a recordação histórica. Lembremos que Collor sofreu o impeachment majoritariamente por causa da comoção em torno da corrupção e desvio de dinheiro público. A história que aprendemos é a de Collor e Paulo César Farias roubando o dinheiro da população e sendo depostos por uma massa de estudantes caras pintadas. Então se conclui que o que removeu Collor de seu posto foi sua corrupção e sua imoralidade como presidente, quase como que seus confiscos autoritários tivessem sido justos caso não tivessem sido desviados para o bolso de corruptos. Não é costumeiro comentar, porém, toda uma outra série de medidas neoliberais completamente destrutivas de direitos sociais e trabalhistas que ele intencionava fazer/fez em prol do capital financeiro internacional e do FMI, que iam desde os cortes no setor de serviços a até privatização das universidades[1]. Estes elementos pouco aparecem nas justificativas gerais de seu impeachment, embora tivessem impacto na vida econômica do país e das pessoas. Mas a história anda e o Brasil se viu satisfeito pelo seu exercício democrático contra governadores corruptos.
No entanto, passaram os anos e estamos diante de um mesmo quadro geral: continuam os problemas com os serviços (decorrência das medidas que foram aplicadas por Collor e seus sucessores até hoje), continua a privatização, continua cessão ao capital estrangeiro (a saúde pública aberta ao mesmo é o caso mais recente), continua a destruição de direitos trabalhistas e continuam sendo usados boa parte de nossos impostos para juros da dívida externa. Continua também a imoralidade política. Com este pano de fundo chegamos a outro ápice de insatisfação generalizada[2] , simbolizada em especial por Junho de 2013. O desejo por mudança volta ainda mais radical e sedento por ser satisfeito, pois as medidas anteriores de sua resolução, em especial as alternâncias de governos, se mostraram insuficientes. No entanto, os setores reacionários e moderados da sociedade prontamente levantam sua barreira repressiva contra tal ensejo, reprimindo-o e principalmente o cindindo em um lado mal (os "vândalos") e um lado "bom" ("cidadão de bem"). Entre a vontade radical e visceral de mudar o país e os muros erigidos por uma ideologia apaziguadora, acontece um impasse. Incapaz de se renovar e se realizar por completo, esse impulso de mudança é reprimido. De forma semelhante à libido, regride e posteriormente associa-se às fantasias relacionadas ao antigo impeachment, catexizado em nossa história pela função aliviadora que cumpriu.
É aqui começa a fazer sentido a famosa frase marxista: a história se repete como tragédia e depois como farsa. Se por um lado o impeachment de Collor se apresentou como uma tragédia e escandalizou o povo, mostrando que a corrupção se incrusta até o mais alto escalão do governo, por outro se apresenta agora como farsa - pois não foi retirando uma figura do poder que se resolveram os problemas do país, nem sequer a tal da corrupção que havia sido o carro chefe de seu impeachment. A tentativa atual, pois, é nada mais e nada menos que uma repetição farsante. É uma solução que serve para conciliar a necessidade real e radical de mudanças no país por parte do protagonismo da população com um apassivamento e uma resignação estratosférica ao status quo. A redução dos problemas atuais à figura presidencial e à corrupção (deslocamento), seguida da condensação no impeachment obedece aos mesmos mecanismos da formação de sintomas neuróticos histéricos freudianos. E de forma semelhante a um sintoma, atua justamente como uma adaptação/sujeição do desejo de mudança e não no direcionamento deste à mudança de fato; acaba por ludibriar de forma obediente a vontade radical de transformação. Temos uma ação que tem em seu fim uma não ação. Que é na verdade apenas a manutenção de um desejo que temos tido há tempos em relação ao progresso nacional.
Acredito que a insatisfação precisa ser radical. Buscar em sua própria história suas raízes. E a partir delas transformar-se em força criadora. Que não se sabota em um ritual de tentar reviver o passado, mas intenta se efetivar na construção um país diferente. Que "o impeachment de Dillma", por sua insistência em se repetir, nos mostre nas entrelinhas o que na verdade ele é: a definição latente das insuficiências de nosso regime democrático.
[1] Curiosamente, boa parte destas denúncias eram protagonizadas pelo PT e outros partidos e movimentos de esquerda. Ver Martuscelli [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-62762010000200010&script=sci_arttext] e Arantes [http://grabois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=50&id_publicacao=115&id_indice=398]
[2] Uma espécie de um retorno do reprimido; "O gigante acordou". Que gigante seria esse?