CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE - CRISE(s) I


Em alguns momentos, o homo oeconomicus (aquele problematizado por Foucault) é ativado. Ele me faz questionar se eu devia fazer aqui e/ou em outras redes uma retrospectiva no intuito de vender uma imagem específica usando o que eu fiz ao longo do ano, os lugares que visitei, ganhos físicos, materiais, intelectuais, fotos bem feitas etc. Enfim: a possibilidade de construir uma imagem rentável pra mim e para o sistema; constituir a ideia de um Luís Bagé específica, de sucesso, sempre pra frente. Ser humano produtivo, vencedor, resiliente, lutador, militante (de sucesso) etc.

E eu sempre travo. Não dá pra mim, nunca fui de me expor dessa forma. Fazer de mim mesmo um valor nunca fez sentido e talvez eu sucumba socialmente por isso, vai saber... Não sou um cara das fotos, dos vídeos, dessa política estética virtualesca. Participo com prazer quando junto de outras pessoas, mas raramente vejo sentido em tirar uma selfie, por exemplo.

Tão pouco eu (paradoxalmente, por escrever isso na forma de postagem que é uma exposição) questiono e nem julgo individualmente esse tipo de comportamento. Tem uma mescla aí que faz parte e outra que nem tanto.

Voltando ao que eu disse, talvez nunca sejam os gestos em si, mas como a finalidade deles é modulada. Eu me sinto em dívida por não fazer propagandas de mim mesmo.

CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE - O SONHO É UM AGENCIAMENTO

Na verdade, não tenho nada de novo a dizer. A experiência que passou comigo é algo que Beradt, no livro "Sonhos no Terceiro Reich" já havia explorado de forma interessante, coletando sonhos de pessoas que viveram a ascensão do terceiro reich. O que segue é um relato do sonho. Vamos lá.

Eu estava em uma sala de aula dentro do Estádio do Beira Rio, ministrando alguma aula que acreditava ser da pós graduação. Entre os alunos estavam professores, mas havia um aluno diferente: Eduardo Bolsonaro. Pois é. Eu não lembro mais exatamente o tema que estava falando, mas em um dado momento eu certamente lancei um conteúdo que passava por algum pensamento progressista a respeito de certo tema. A reação dele foi de escárnio e depois de indignação, fazendo alguma argumentação completamente sem sentido para "provar" que eu estava errado. Eu lembro que no sonho a argumentação era fraca, quase inexistente. Havia na figura dele um desejo de mostrar-se sabichão pra turma ao mesmo tempo em que supostamente deixaria o professor "no chinelo", me "refutando".

Nesse momento surge uma menina jovem entre a turma, com pinta de militante organizada. "É um absurdo ficar dando voz pra fascista". Na hora eu tentei mediar a situação, entendendo que seria o papel como professor. No sonho, eu estava trabalhando com o diagnóstico de que pontos antagônicos não estavam conseguindo constituir e nem sustentar espaços de debate presencial. Eu pedi calma e então relancei pra turma o que Eduardo havia dito, pedindo para que todos (ele incluso) ficassem calmos pra podermos enfrentar a discussão. A turma foi estabelecendo clara divergência com o que ele havia dito, mas a postura de Eduardo foi a de dar risada de todos. Assumiu novamente uma pompa de "fodão intelectual" e começou a fazer uma verborragia de absurdos teóricos, com conexões completamente sem sentido. Levantou o tom de voz pra fazer isso e ia levantando cada vez mais, produzindo certa indignação.

Foi mais ou menos por aí no sonho que eu comecei a me irritar com esse aluno. Era tanta estupidez condensada em uma só fala que eu nem sabia por onde começar, além de que tinha certeza que esmiuçar os absurdos que ele havia dito ocuparia o resto da aula - fora o fato de que era clara por sua postura que ele não estava aberto a dialogar. A minha ação no sonho foi peculiar, pois eu lhe disse: "Tá, Eduardo.. E os 16 mil reais?". Quando ele ouviu isso, sua fala cessou e deu pra ver que ele engoliu seco, com olhos arregalados. Havia no sonho um escândalo evidente (mas pouco coberto pelo mídia) entre sua família e uma propina ou algo do tipo com 16 mil reais. O escândalo era real, mas havia algo de proibição velada de falar sobre. Os outros alunos sabiam também e ficaram surpresos com o que eu fiz. Nesse meio tempo, Eduardo se tornou no sonho a ira encarnada. levantou derrubando as classes, xingando a mim e ao resto da turma.

O sonho então sofre uma espécie de "fast forward", de forma que eu saio da classe dando de cara com o gramado. O estádio se mesclou com uma casa ou construção mais simples, pois o gramado era e não era o do estádio de futebol. De qualquer forma, eu avistava de cima uma massa de gente fazendo protestos contra mim. "Escola Sem partido" certamente estava entre suas demandas. No sonho a minha sensação era de confusão, mas eu também achava a situação engraçada. Era tão absurda pra mim (no sonho) que eu fiquei rindo da cara das pessoas do alto de uma espécie de sacada e isso as deixava ainda mais indignadas. Eu gritei "E os 16 mil?" de novo, apenas pra deixar as pessoas ainda mais irritadas.

Eu terminei a cena no sonho assim, rindo do absurdo.

CRôNICAS EM TEMPOS DE GOLPE - ANOTACOES DE UMA PASSAGEM POR SAO PAULO

Hoje pela manhã eu não passei mais de 15 minutos navegando em duas redes: twitter e facebook. Nos últimos tempos minha timeline se restringe basicamente a análises desastrosas (algumas alarmistas) ou pessoas de esquerda fazendo o esforço de apagar o incêndio gerado pela enxurrada de fatos políticos bastante problemáticos.

Não sou adepto do discurso de "vamos falar só das coisas boas"e assim ignorar fatos que por mais nefastos que sejam precisam ser encarados. Por outro lado, está também na hora de trocarmos mais entre pares os momentos de respiro ou de açoes que por mais minúsculas que tenham sido, tenham produzido efeitos coerentes com os valores que nós de esquerda partilhamos.

Esse meu comentário não vem só da angustia de ver apenas (e repetidamente) notícias sobre os mesmos fatos e a desgraça que elas representam, mas por ter vivido em São paulo dois eventos: uma visita ao Memorial da Resistência e a participação no V Congresso Brasileiro de Psicologia Ciencia e Profissão. No primeiro, a memória aparecia como exercício compartilhado ao habitar junto dos narradores a mesma cela na qual experenciaram a tortura no DOPS na medida em que contavam essa experiência, inclusive suas estratégias de resistência. No segundo, a articulação lationo americana feita entre violência, corpo, memória e fascismo faz questionar que mais do que gravar uma bistória é preciso partilha-la junto dos outros, inclusive trocando abraços, danças e dando as mãos.

Minha questão é que tenho começado a entender que a Narrativa Benjaminiana, mais do que uma "fala aberta", é uma atividade, no sentido proposto por Clot e Schwartz. A partilha dessa atividade narrativa é o exercício da memória, algo que temos perdido dada a centralização da produção narrativa da redemocratizacáo e outros movimentos sociais em um paradigma informacional onde o Estado e sua institucionalidade se ocupou de contar por nós os avanços e ganhos conquistados. Por isso, a memória não se dá somente por uma via de gravar informaçoes, mas de partilhar o próprio exercício de narração desta mesma memória.

Por isso o convite à narração e consequente produção de experiências nossas. Mais do que partilhar noticias (importante) temos que ativamente compartilharmos essa prática, que por sinal é a única via de produção de comum: engajar-se juntos e,m algo.

CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE - SHOW DO ROGER WATERS 30 DE OUTUBRO POA E A INSUSTENTÁVEL BURRICE DO SER

Ontem eu fui no "polêmico" show do Roger Waters.

Foi um show maravilhoso: a voz dele segue impecável, os solos estavam maravilhosos, o telão com imagens te convidada à psicodelia sem nem mesmo estar usando alguma substância, algo que até seria interessante pra esse show.

Trouxe muitas imagens de guerras, desigualdade, crianças e resistência. A segunda parte do show ele problematizava o fato de estarmos sendo governados por porcos (lembrou Orwell) e trazia críticas fortíssimas ao Trump, o que inclusive incomodou brasileiros destes da camisa da seleção. Porém, sua parte mais polêmica foi o intervalo de 15 minutos, onde o telão exibe várias coisas que devemos resistir: às polícias militarizadas, ao fascismo (nome de Bolsonaro não foi exibido), destruição ambiental, sai em defesa de Julian Assange etc. Foi maravilhoso: um show impecável! A produção de um respiro para quem está em um mundo sendo dominado pelo ódio e o fascismo e quer sustentar valores humanitários para todos e não só para seus cupinchas de credo e de classe.

Cabe uma reflexão política. Vale destacar que havia meia dúzia de pessoas que resolveram gastar seus 200, 300 ou até 600 reais para ir num show desses pra defender o fascismo e o autoritarismo, seja nas suas formas institucionalizadas ou seja apresentando ojeriza às críticas. Na contramão daquilo que elas estavam usufruindo (um show onde o artista pode livremente criticar politicamente presidentes e a história), se sentiam profundamente ofendidas pelo seu "novo líder" e além de vaias, largavam frases desconexas e desejos de censurar o artista do tipo:

"Espero que Roger Waters morra logo."
"David Gilmore é melhor"
"Ditadura sim"
"Quero música e não política"

Pra "disfarçar", já cansados e aceitando que eram uma minoria ali gritavam "Viva o grêmio". Depois de cenas tocantes, com um som maravilhoso, a pessoa só consegue berrar isso para disfarçar o ódio que estava sentindo do músico?

O fenômeno de ontem me fez querer entender mais como que o ódio produz uma dissonância cognitiva ímpar dessas. É algo que a Psicologia ainda demore pra explicar. A incapacidade das pessoas estabelecerem a relação entre a vida e obra do artista e ficarem objetivamente magoadas com as mensagens de Roger Waters é de uma burrice bastante profunda. Não acho que seja uma questão de neurônios, mas de um ódio que as tornou tão cegas ao ponto de não conseguirem estabelecer esse tipo de relação.

Hoje mesmo, Bolsonaro indica 3 ministros com histórico de corrupção para serem seus ministros, um deles (o da casa civil) admitiu que fazia picaretagem e apenas pediu "desculpas". Porém, seus seguidores seguem considerando Bolsonaro um "offsider" e que ele vai combater a corrupção.

Como eu falei, não tenho respostas. Mas é de se pensar o que faz com que alguém não se deixe tocar em nada pelas mensagens de paz e anti guerra do telão e se sinta convocada a desejar a morte do artista. Além do mais, era evidente que caso o que Waters estivesse criticando fosse a esquerda em geral, estaria por essas mesmas pessoas sendo considerado um gênio e a política seria muito bem vinda no show. Lamentável, mas só mais um sinal de ódio: a manifestação é boa apenas se reproduz o que eu gosto, caso contrário o melhor destino é a morte.

CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE - FRAGMENTOS DIÁRIOS

No clima das "viradas" pró Haddad, se evidencia pelas malhas das cidades diferenças de abordagens em relação à política. Há um ethos imbricado na práxis dos militantes que delineia posicionamentos que definem formas bastante diferenciadas de ocupar-construir a própria cidade. Vou generalizar a fim de registro pessoal de memória:

Pessoas fazendo campanha pelo #Haddad13: "Vamos conversar" é o mote; trazem amorosidade digna de Paulo Freire propondo sentar com "boulos" e café, tomar chá e trocar abraços; tentativas de discutir civilizadamente posicionamento político (contramão do momento); ocupam a cidade com cartazes com mensagens positivas e pela democracia; espalhados nas ruas; se prestam a ficar bons minutos falando com minions que queriam só importunar. A política aqui se produz parando o fluxo das vidas: sentar com calma e refletir. Convite a habitar o presente- lembram-me de Walter Benjamin. Está em pauta o encontro.

Campanha Pelo #B171: Ocupam a rua basicamente só em comícios; foco em carreatas; saudações nacionalistas duvidosas; discurso inflamado e odioso; promessa de aniquilação do(s) outro(s); abordam com câmeras e com voz alta quem discorda deles; xingamentos gratuitos; abordagem truculenta e intimidatória dos "vermelhos" que estão na rua na medida em que se aproximam vociferando impropérios mesmo sem ser abordados. Sinalizam usos pontuais e pragmáticos da cidade e operam por uma Política de condomínio: dentro dos carros, apartamentos, whatsapp. OS muros que separam uns dos outros não são enfrentados, mas reforçados. O próprio candidato debate política de dentro de casa e evita debates. Isso sinaliza uma prática política sempre a partir da reificação da propriedade privada e do próprio umbigo. Misturar-se com a diferença jamais. Uso pragmático e pontual da cidade para a política, sempre enviesado para o que lhes favorece (lembrar das placas de Marielle, intervenção urbana rapidamente destruída em POA por militantes de direita). É insuportável ver a cidade “suja” no cotidiano. Há dia, data e hora pra se fazer política legitimamente na cidade.

[Desenrolar reflexões depois, se possível]

Gostaria de relatar no dia de hoje estou feliz com a campanha que ocupou a última semana das eleições. Vejo uma retomada (ainda que tímida) de uma espécie de militância e micropolítica orgânica historicamente marcante na esquerda da America latina, que mistura afetividade com luta política aguerrida e descentralização das ações. Nota: Nunca coube no Estado essa característica rebelde Americana (não confundir com Tio Sam, nós somos América) e, quando se tentou fazer caber, perdemos. Respiro a retomada de uma de nossas caracterísitcas: a solidariedade. Não a demarcada por valores morais, mas aquela que se dá pela troca de olhares e a partilha conjunta de uma ação. Produzimos Comum, talvez diriam Dardot e Laval.

Deixa-me feliz que essa semana eu vi indícios da dissolução de uma terrível figura que se cristalizou nesses últimos anos: a do/da "militante chato" ou “o amigo/a militante”. Quem veio me chamar para as ruas, para eventos, para debate, para militar, não foram mais aquelas "figurinhas marcadas" das minhas redes de relações, mas pessoas que não traziam esse engajamento partidário e institucional mais sistemático em suas histórias de vida.

Feixes que anunciam as resistências.

NOTAS DOS TEMPOS DE GOLPE

Estava eu e mais um grupo de umas 30 pessoas participando de uma caminhada histórica por POA, que tinha como objetivo apresentar pontos da cidade que serviam de espacos de organização política, lazer e cultura operária.

Por uma ironia do acaso, enquanto falávamos sobre as greves de 1919 e movimento anti nazi de POA, passa uma carreata pro Bozo (fraquíssima por sinal). Entre bandeiras do Brasil e da monarquia, aguardavamos a sinaleira para atravessar a avenida. Evidentemente, as pessoas da carreata clamavam por nosso apoio, mas.prontamente começamos a mostrar o dedo polegar voltado pra baixo, sinalizando desaprovação do candidato. Do alto do carro de som, um sujeito me.filmava e me xingava em alto e bom tom, algo que respondi com uma risada e uma saudação nazista irônica.

Na verdade, isso me tocou pouco. O que me.tocou veio depois: um menino que devia ter uns 4 anos e que estava dentro de um dos carros da carreata passou nos encarando e mostrando o dedo do meio. Ele tinha um olhar sério e até raivoso. Sustentou seu dedo do meio pra fora do carro até sumir pela avenida. Do nosso grupo, não houve nada de agressivo e apenas desaprovação.

Essa é uma cena que fica na cabeça e evidencia o mar de odio que os eleitores desse sujeito navegam.

Mãos Dadas (por Carlos Drummond de Andrade)

Não serei o poeta de um mundo caduco.

Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Carlos Drummon de Andrade

Crônicas em tempos de pós-golpe: Dia do Psicólogo.

Em 2018, difícil comemorar com tanta alegria.

Em tempos onde prepondera o poder gerencialista, querendo sempre direcionar tudo (inclusive a "qualidade de vida no trabalho") à produção incessante;

Em tempos em que se acredita em ideologia de gênero, inclusive dentro da própria categoria;

Em tempos em que fui questionado se era um psicólogo adventista, pois se buscava um profissional com a mesma moral da família, visto que a filha estava indo em um psicólogo e causando conflitos em casa por causa disso;

Em tempos onde as ciências humanas são descredenciadas todos os dias;

Em tempos em que Psicólogxs falam que "bandido bom é bandido morto";

São vários os exemplos. Somos uma boa categoria, que esteve junto de vários movimentos sociais e construindo a redemocratização do país. Temos bastante arcabouço teórico e prático para colocar em questão a sociedade, seus modos de funcionamento ou como ela fabrica (e demanda) subjetividades específicas. Ao mesmo tempo, nascemos e nos fundamentamos na normalização/adequação das pessoas à sociedade.

Porém, sinto que em alguns momentos estamos indo léguas para trás. Para além de readequar as pessoas, vejo a categoria se enveredando em discursos de ódio que não só adequam às pessoas, mas fazem girar a engrenagem de fazer morrer (inclusive através do fazer viver) com uma velocidade absurda.

Eu acho que são tempos de sabotagem. Colocar o sapatinho na engrenagem segue sendo radical, por mais que não estejamos hoje necessariamente operando engrenagens físicas. Espero nesse dia mais comunhão entre meus pares progressistas, para que não retornemos para um estado decadente d categoria, que já não anda bem apesar dos esforços. 

CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE

Nunca conheci Marielli. Mas acho que nos conhecemos, no presente mesmo.

Minha realidade é distinta: um branco classe média e uma negra de origem da periferia. Para muitos isso é um abismo intransponível, para uns poucos minha empatia é insignificante ou uma espécie de engodo, apenas pelo meu lugar no mundo e o dela.

Fato é que Marielli se foi e com ela um pedaço de todos nós que acreditamos em uma sociedade mais justa. Não tenho dúvidas que foi alvo por sua condição de negra e mulher. Mais que isso, uma mulher negra que fez afronta direta ao poder.

Hoje foi ela, mas e amanhã? Lembro agora: campesinos e campesinas, indígenas e militantes contra o agronegócio. Ditadura. E os que vieram antes dela? Contestado. Canudos. Escravatura. Quilombos. Sepé Tiaraju. Diretamente encomendados e encomendadas todos, em prol do avanço e do bem da nação.

Podemos escapar disso?

CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE – APOTEOSE PARTE 1

No dia 24/01/2018 chega um dia histórico no país: o julgamento globalmente visto como controverso e enormemente enviesado politicamente do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para mim, trata-se do ápice do golpe que temos vivido e a apoteose de nossa decadência política: de um lado a extrema direita junto da direita na rua pedindo a prisão de Lula (e apenas a dele) e afirmando o golpe e suas “reformas” anti-povo; do outro uma esquerda estilhaçada defendendo uma flor que não se cheira politicamente, que é o Partido dos Trabalhadores.

Mas o que queria relatar ao leitor nesses registros são esses “detalhes” que às vezes ficam suprimidos em narrativas históricas lineares e “polidas”, dessas que lemos séculos depois dos ocorridos. O que eu queria comentar que aconteceu nas vésperas desse dia foram as dissidências dentro da esquerda. Em um lado, havia pessoas defendendo a não condenação: petistas e setores da esquerda que entendiam que a condenação seria um golpe duro na democracia e na esquerda como um todo. Do outro lado, militantes envoltos em um certo purismo ou em uma noção de dialética um tanto engessada: não cabe/não vou defender Lula e o PT, pois prefiro defender Rafael Braga e/ou não coaduno com as decisões do partido ao longo de seus governos.

Gosto de pegar esse fato, pois essa peculiaridade exemplifica bem um problema gigante que temos vivido no campo da esquerda: a dificuldade de composição. Se por um lado o petismo cego acha (mesmo) que Lula presidente é a salvação do Brasil, por outro alguns militantes de esquerda acham que por invocar a pauta A ou B ou lembrar do movimento minoritário Z ou Y, estariam ou deveriam estar isentos diante da situação – e não há dúvidas que muitos já fazem isso pensando na eleição de seus candidatos. Perdura entre nós algo de um pensamento voltado ao próprio umbigo, orientado talvez pelo prazer de “lavar as mãos” quando for oportuno crescer politicamente ou simplesmente para se sentir bem dizendo “eu falei” de uma posição distante. Esse é um prazer recorrente dentro do campo da esquerda: certa “lacração” advinda de uma posição pura e isenta de contradições. Enfim, a negação de toda uma tradição de pensamento embasada no movimento e na luta.

Eu assisti o discurso de Lula no dia anterior. Impossível não pensar que tudo que foi dito foi sumariamente ignorado nas gestões de coalizão de seus governos. Ainda assim, é necessário defendê-lo nesse dia, pois para o campo da direita eu sou Lula e o PT – e talvez eu seja um pouco mesmo, pois esse partido ainda é parte central da história recente da esquerda nacional. Não é ignorando (muito menos cuspindo) em nossa história que avançamos, especialmente se focarmos nossa ignorância nas partes “ruins”.

...

No mais, marchamos, penso eu, para uma profunda derrota, pois aparentemente só através dela podemos voltar a sonhar e abandonar um pouco o pragmatismo eleitoreiro.