Bilhete Chuvoso




Já são alguns dias de chuva em Porto Alegre e perto de uns 7 meses de quarentena. Um desses dias acordei de madrugada e fiquei olhando da janela da minha sala carros e ônibus entrando e saindo da cidade. Vivo no sétimo andar de um prédio na Cristovão Colombo que me dá o privilégio de ter uma vista ao Guaíba e à AVENIDA DA LEGALIDADE e suas elevações. Daqui sempre vejo também os garis de laranja ao longe, um pouco antes da legalidade – na verdade, abaixo dela e sua elevação. Estão lá, todos os dias independente do clima.

Especificamente quando observo de noite vejo pequenas luzes indo e vindo repletas de histórias que gostaria de ouvir: como será que é estar dentro desses automóveis escutando a chuva e vendo a cidade te engolindo? Eu estive nesse lugar: chegava de Florianópolis em Porto Alegre sempre pela madrugada. Via o cimento grosso dos pilares que protegem os trilhos do “trensurb”, que na velocidade do ônibus faziam uma sequência quase hipnótica. Eu chegava sedento pela cidade e sua muvuca, sobretudo suas facilidades.

Só que o meu ponto aqui é a chuva. Estendi o braço pra fora pra sentir as gotas dela e me dei conta de que eu não sentia a chuva faz tempo. Já choveu na quarentena, relampejou, teve aguaceiro… Só que eu não senti a chuva. Hoje eu senti. Arrisquei colocar o braço pra fora de forma tímida e ainda de roupão pra sentir umas gotas, mas logo tirei. Apoiei-me na janela e fiz uma força proposital, compartilhando com o concreto um pouco de um peso que era mais da ordem existencial do que uma demanda física.

Cheirei o ar, ouvi o barulho das enormes árvores e suas folhas no ventaval e coloquei de novo o braço pra fora. Estiquei o roupão. Queria meu braço todo de fora sentindo as gotas! Quando vi, meus pensamentos começaram a ser conduzidos pelo barulho do vento nas folhas. Voei longe, tão longe que me perdi por um instante. Voltei, apertando o concreto e pensando pra mim mesmo que não há nada de “novo normal”.

Acredito muito nos instantes.

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