Estou aproveitando estas férias para aprofundar um pouco mais meus conhecimento sobre saúde, em especial saúde coletiva. O texto que li e que desencadeou esta reflexão foi “Saúde e Meio ambiente”, de Minayo. A ideia é reivindicar a teoria sistêmica apresentada no texto para evidenciar a necessidade da superação, no profissional de saúde, do tecnicismo enfatizado na universidade e do pouco estímulo generalizado a ação e reflexão política, essencial quando se trata de promoção de saúde.
O texto de Minayo é dedicado a estudar a relação do meio ambiente e o debate de desenvolvimento sustentável com saúde. Para isso a autora apresenta a teoria sistêmica, elaborada por Ludwig Von Bertanffy em 1978. Não vou apresentá-la aqui de maneira integral, mas a proposta é um pensamento dinâmico e a superação de dicotomias e compartimentalização do conhecimento, apresentando a necessidade de que para entendermos os complexos fenômenos humanos e naturais devemos entendê-los sob a ótica de um contexto, de uma imprevisibilidade e de uma dinâmica em eterno movimento de transformação. A proposta é pensar a saúde desta maneira também, sendo ela a intersecção da relação entre comunidade, economia e ambiente. Para muitos, trata-se na verdade da interdisciplinariedade, a superação de uma ótica cartesiana de conhecimento e o avanço para um novo patamar científico e epistemológico, baseado no diálogo entre os conhecimentos. Aqui temos parte da sustentação do debate sobre a participação social no sistema de saúde, pois a construção de uma sociedade saudável perpassa pela participação dos indivíduos residentes nesta, não apenas como elementos efetivadores de ações de saúde como também parte essencial da formulação de um conhecimento necessário sobre saúde coletiva para o país. Até aí, temos a teoria muito agradável, beirando a clássica cena de olhos lacrimejantes de uma pessoa emocionada com a possibilidade de “uma transformação para um mundo melhor”, onde os pobres serão ouvidos e valorizados e toda aquela tendência humanista e assistencialista que sobrevoa a ingenuidade pequeno burguesa sobre mudanças sociais significativas. É sobre essa tendência que gostaria de tratar, pescando um dos elementos que certamente desencadeiam essa ingenuidade e que dificultam de fato uma práxis sistêmica, uma vez que um dos elementos centrais da teoria passa a ser negligenciado sistematicamente desde o nascimento da maioria dos brasileiros: o político.
Fato é que conseguimos ter quadros intelectuais muito bem formados hoje no ensino público superior. Temos um sem número de doutores e profissionais extremamente bem instruídos e capacitados a dissertar sobre todos aspectos técnicos, científicos e epistemológicos sobre uma série de fenômenos sociais e biológicos. EM contrapartida (e sei que os elementos que não se enquadram nessa descrição não vão incomodar-se com minhas alfinetadas), temos de maneira geral uma ingenuidade política disseminada entre grande parte deses sujeitos, que evidencia-se pela total ausência destes em espaços e discussões de cunho político e um desprezo enorme pela militância e participação na reivindicação de direitos e mobilizações sociais. Certamente não estou me referindo àqueles que não defendem a saúde coletiva enquanto meio de mudança social muito menos aqueles que ainda defendem concepções reducionistas de ciência de ser humano – estes, nos encontraremos vida afora e disputaremos diretamente estas concepções. A crítica aqui está justamente a todos aqueles estudantes (eu incluso), profissionais e professores que reivindicam este tipo de conhecimento e construção, mas de maneira contraditória comportam-se como fiz a referência acima, ignorando a necessidade do envolvimento e informação política e tendo seu centro em técnicas e teorias de maneira exclusiva. Há aí uma enorme incoerência entre a teoria que se defende e sua aplicação. Não vejo justificativa nenhuma que faça alguém instruído sentir-se confortável na posição de defensor de uma mudança social sem a experiência, a referência de um horizonte político claro e a prática política cotidiana dentro de suas limitações pessoais. Mais duro ainda deve ser o “puxão de orelha” em professores e profissionais, uma vez que configuram-se como elementos detentores de um certo poder sobre outras categorias e em sua tarefa de educação podem reproduzir a ingenuidade de uma teoria desvinculada da prática política.
Isso nos faz atentar para o elemento que eu gostaria de fisgar aqui: a tendência tecnicista universitária, transfigurada na clássica “neutralidade” do conhecimento ou a “liberdade” para tudo que aparecer. Não é por acaso ou por maldade que temos a tendência a negligência política. Há na universidade hoje uma série de mecanismos que possibilitam a instrução de estudantes e futuros professores/profissionais na direção de uma educação “pura” e “técnica”, não havendo espaço para a política enquanto espaço de formação crucial para a criação de intervenções e conhecimentos significativos para a sociedade. Eu, certamente, acredito que isto não aconteça “à toa”, e que esses mecanismos referenciados estão ligados diretamente a estrutura universitária, a qual já explorei em postagens neste blog (saúde mental do estudante e alguns outros). As decorrências disso são profissionais de saúde que não constroem em seu cotidiano espaços políticos, não defendem publicamente os direitos dos cidadãos e lavam suas mãos diante da necessidade de um posicionamento político claro, acreditando que sua atuação esteja vinculada apenas em “ajudar o outro” ou generalizações do tipo. Para fechar esta crítica, quero trazer aqui a noção da necessidade de ampliação do conceito de “participação social” para “participação comunitária”. Para a autora é preciso termos uma ampliação deste conceito, e passar a tratar os fóruns e espaços públicos como comunitários, abertos a todos os setores sociais (inclusive empresariais). Acredito que só existam benefícios com esta concepção, mas atento apenas a uma consideração: tendo profissionais pouco preparados para a disputa e organização política (que é também sua função, enquanto profissionais de nível superior), temos a chance de que em espaços devidamente públicos os interesses privados tenham hegemonia nas decisões político-sociais sobre saúde, as quais, não há necessidade de termos nenhum pudor, representam uma série de retrocessos (vide a indústria farmacêutica). Agora, podemos ter uma série de benefícios, políticos e sociais, se os profissionais de saúde estejam preparados para construir e estimular a participação popular nestes espaços, enriquecendo-os e trazendo ganhos muito significativos não apenas em termos de decisões sobre a saúde mas também a necessária revitalização política para os brasileiros, etapa crucial para uma transformação social, bem como a defensoria pública dos interesses empresariais, os quais não ocorrem, ficando na surdina e fugindo de um controle social mais amplo e evidente (o que, novamente, só contribui para a deserção e um posicionamento incrédulo em relação a política).
Agora, fácil é estarmos na frente de um computador digitando este mundo de críticas e nada fazer. É tempo, mais do que nunca, de pensarmos como podemos alterar este cenário. Como hoje, os estudantes, professores e profissionais de saúde podem contribuir para a essencial construção integral de conhecimento e ação social? O primeiro passo, acredito, já está ocorrendo em algum grau. Primeiro é o reconhecimento e a formulação contínua de uma formação profissional que esteja vinculada diretamente as necessidades sociais vigentes no campo da saúde, bem como a superação de um modo pedagógico distante do estímulo da reflexão autônoma e construtiva, superando as noções puramente técnicas e que entre no âmbito da disputa política. O segundo, que é o mais desafiador, é inserir gradualmente a política como elemento central na vida da mulher e do homem enquanto cidadãos de uma democracia. Falo agora especificamente de onde estou inserido, que é o movimento estudantil. Como tornar a política e o debate em cima de uma democracia e participação social significativa em um ambiente onde temos a maior parte dos elementos direcionado a formação profissional como estritamente fundamentada nos livros e manuais sobre saúde, deixando de lado a necessidade da experiência política enquanto elemento fundamental para qualquer profissional da saúde, enquanto agente de mudanças na vida das pessoas? Não sei a resposta exata. Mas cabe a nós, na prática cotidiana e na militância, corrermos os riscos necessários e aprendermos, com a prática, o risco, a avaliação e o estudo constante superarmos a tendência a ignorância (no sentido de ignorar mesmo) política e tornarmos os espaços de decisão, disputa e elaboração políticas novamente interessantes no corpo estudantil enquanto um todo e não mais a um número seleto de iluminados e críticos da realidade, evitando assim a fatídica prática que tende ao extremismo e o isolamento da massa.
Espero que o texto tenha contribuído em algum grau para quem o leu. Sei que fui duro. A intenção era esta. Mas coloco aqui a todos que estão dispostos a correrem esses riscos e tentarem a construção de uma nova educação em saúde, que estaremos juntos, até o fim de meus dias, nesta intensa e difícil empreitada.