O problema da saúde pública - Um problema da universidade


Não é de hoje que nosso país vive um drama em relação ao seus serviços de saúde. Não há um brasileiro, até mesmo o governista mais otimista que esteja satisfeito (ou nesse caso tenha a cara de pau de negar) com a situação precária dos serviços de saúde em um geral. Esse drama já se estende por muitos anos, e tem chegado cada vez mais em seu ápice neoliberal. E qual a saída que temos pensado enquanto brasileiros para isso? Ou melhor: enquanto universitários brasileiros, como têm sido nossa reflexão dentro da academia a respeito da saúde pública?

O que sentimos quando nos entregamos as graças de nosso governo no SUS são diversas coisas, dentre elas as mais recorrentes são: filas, demora no atendimento, ausência de profissionais, falta de espaço... mas afinal, por que isso acontece? Por que a saúde pública no nosso país tem de ser assim? Felizmente as causas são menos aleatórias do que parecem e estão sujeitas muito mais aos planos dos nossos governos do que a nossa incapacidade de ser um povo autônomo. Desde as décadas de 80 e 90 o mundo tem sido influenciado - pelo processo de globalização- a submeter-se cada vez mais a um projeto neoliberal em contraponto com o “famigerado” welfare state. Enquanto este último preconizava uma série de direitos e serviços promovidos pelo estado ao cidadão o primeiro tem em suas diretrizes a desresponsabilização do estado da maioria destas atividades e a concessão destas as organizações privadas, configurando-se assim o tal do “estado mínimo” que interfira o menos possível na vida e no mercado, deixando que este vá se regulando pela competitividade. A hegemonia do projeto neoliberal não acontece à toa: ganha forças durante as crises dos anos 70-80, que encontraram nesse tipo de política a saída da recessão e a tentativa de revitalizar o capitalismo. Na américa latina é no período dos anos 80 que temos a vinda dessa onda, sendo mais tardiamente implementada no Brasil na época do governo Collor. Uma das formas dos governos implementarem isto é através de programas neoliberais colocados por instituições exógenas como o Banco Mundial e o FMI, que no seu “auxílio” (empréstimos em dinheiro) às nações em desenvolvimento oferecem uma série de cartilhas, que contém “dicas” de superação dos problemas econômicos da nação. Especificamente a respeito da saúde, em uma de suas cartilhas o BM deixa claro que se nosso país quer resolver seus problemas econômicos e sociais deve ao máximo reduzir seus gastos com saúde pública, deixando isto apenas aos que realmente precisarem dela e ceder a gestão e o oferecimento deste tipo de serviço a organizações privadas sem fins lucrativos. Ao que parece nosso governo tem feito bem o dever de casa solicitado pelos nossos professores estrangeiros e bem sucedidos: temos esse ano um corte de 55 bilhões nos orçamentos de saúde e a vinda pesada das Organizações Sociais, como a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares que surge como resolução do problema relacionado aos Hospitais. Embora não fique tão explícito ambas as decisões são na verdade sinérgicas e correspondem a uma estratégia simples: sucateie e privatize. Diferentemente de outros setores a saúde tem no histórico de sua elaboração uma grande luta por parte do povo, que nos deu frutos como a consciência da saúde enquanto um direito e os conceitos de universalidade, integralidade e equidade. Desnecessário dizer que estas elaborações representam hoje um grande entrave para a implementação das estratégias exógenas, o que exige a utilização de técnicas refinadas de privatização, como a estratégia do sucateamento e a criação de diretrizes aparentemente inofensivas como as Organizações sociais (caráter privado mas sem fins lucrativos), que sustentam-se sob o problema da gestão para se legitimar enquanto saída aos problemas caóticos do incapaz do estado. Não vou ater-me aqui as consequências deste tipo de ação em um direito como a saúde, que acaba sendo transformada em um serviço, submetido a ótica de uma gestão pragmática, numérica e que acima de tudo consiga lucros. Minha reflexão é a respeito da refletividade da universidade pois é o espaço onde hoje atuo.

Em relação a universidade o que vemos é uma completa apatia em relação a situação socioeconômica e política do país, quando não uma postura legitimadora e reprodutora de diretrizes como as do Banco Mundial. Quando me refiro a universidade não é no abstrato: neste conceito consta a instituição que é formada não apenas pelas suas estruturas físicas mas também pelos professores, técnicos administrativos, reitores e pró-reitores, currículos e projetos político pedagógicos. Tomemos o exemplo da saúde pública no país e o analisemos em suas diversas instâncias, deixando ao leitor os seguintes questionamentos: Nas suas disciplinas sobre saúde pública, o fenômeno do sucateamento e dos problemas é abordado? Nossos professores (independente de seu posicionamento sobre) trazem e/ou estimulam um debate sério sobre esses temas? A reitoria promove debates amplos e abertos relacionados as decisões centrais da universidade (como o caso do HU e a EBSERH)? Os currículos promovem em seus espaços lugares de prática e de aprendizagem que dêem conta de uma formação crítica e responsável como deveria ser para um profissional de ensino superior brasileiro? Apostaria minha singela quantidade de trabalho alienada neste gostoso pão integral que estou comendo que a resposta para a maioria destas perguntas tenha sido “não” ou tenha sido incerta porque existem alguns elementos que fazem esse tipo de esforço mas são uma minoria grotesca. A universidade, enquanto saudosa casa do saber deveria promover muitas das repostas e possíveis caminhos para as mudanças necessárias em nosso país. Mas na prática o que temos é uma universidade que se propõe a ser neutra às questões políticas nacionais, uma universidade técnica, pragmática, com um objetivo simples: formar para o mercado de trabalho. Formar para que se entre onde querem que entremos: na circulação livre de mercadorias (no caso nós próprios) e tenhamos a gentileza de não interferir nesse fluxo de forma alguma. Consolida-se assim então a nossa casa do saber com uma função que é a negação da que apontei acima: a função da reprodução da ordem hegemônica – no caso a implementação da doutrina neoliberal e a manutenção do status quo e da apatia política; um reflexo, uma atitude passiva e submissa a programas externos. Quando a instituição não nos ensina a intervir e refletir sobre a vida em nosso país, quando nossos professores nos ensinam o valor do controle social mas não nos levam em um conselho ou não nos estimulam a fazer um debate político estão nos oferecendo uma educação bancária, baseada na informação, no simples repasse e somente um domínio teórico e técnico abstrato, que confrontado com a realidade exige um extenso esforço de síntese ao qual não somos preparados na graduação a fazermos sozinhos.
Se a situação do país ainda é caótica e exige cada vez mais sujeitos que consigam formular e intervir em problemas que tem em sua gênese não apenas o imediato mas aspectos anteriores e maiores, faz-se necessário que se façam mudanças sérias na nossa instituição. No caso da saúde cada vez mais os profissionais devem sair preparados com a técnica e a competência, mas também com a clareza dos valores do Sistema Único de Saúde, não enquanto abstrações mas enquanto direitos aprendidos e esclarecidos em uma prática educativa-política (a separação é didática pois pra mim educar implica necessariamente também na formação política), de forma que não apenas detenham aí uma enorme clareza de seu papel profissional mas também repassem isso através do ensino àqueles que ficam de fora da reflexão intelectual promovida pela universidade e sujeitos a opinião de uma mídia enganosa, podendo assim questioná-la e elaborar por sí suas soluções e opiniões.

Mas como essa mudança é possível? Como fazer isso? Compactuo com Darcy Ribeiro e Álvaro Vieira Pinto. A mudança de fato só virá externamente, apenas com uma revolução social significativa em nosso país. O que não quer dizer que nada devamos fazer dentro da universidade, mas pelo contrário, desde já, atuar nela mesma e inserir dentro dela própria uma parte dos germens da mudança. A primeira coisa que deve ser feita é fortalecer a atuação estudantil. Não existem elementos mais preparados e progressistas dentro da universidade do que os estudantes de graduação. Estes ainda detém seus sonhos, não estão amarrados na instituição nem com suas regras internalizadas e também sabem mais que ninguém as contradições da universidade pois são os que mais sofrem com suas insuficiências. Não devem nada a ninguém dentro da universidade e portanto nada ou pouco tem a perder em sua luta. Cabe aos estudantes fomentar debates, levantar críticas, elaborar propostas e reivindicar de forma massiva seus sonhos e projetos pra universidade. Apenas com isso, e com a luta por seu espaço representativo adequado na tomada de decisões da universidade seriam possíveis mudanças internas. O segundo ponto é a derrubada dos muros simbólicos da universidade. A universidade deve desde já deixar de ser o espaço exclusivo dos erúditos, dos sábios e dos iluminados. Deve ser mais um dos espaços do povo e para o povo brasileiro. Deve estimular sua entrada nos campus, aproximá-lo dos debates e das reflexões, trazer sua cultura e ficar impregnada pelas suas cores, cheiros e angústias. Dessa forma a universidade sai do alto de seu pequeno Olimpo e pode novamente, ao respirar a realidade nacional, ter as condições necessárias para pensá-la e modificá-la. De nada adiantam os finais de semana fechados, os espaços ociosos, as salas alocadas para concursos e os espaços públicos abandonados. A universidade deve pintar-se com as cores daqueles que a sustentam com seu trabalho e existência. Não é um movimento exclusivo da instituição, mas em sua dialética exige também da população a mobilização e a reivindicação da universidade enquanto sua. Assim se promoverá o avanço necessário dentro de nossa instituição e ela poderá finalmente pensar de forma autônoma e vinculada não mais aos programas externos nela implementados mas sim às contradições da nação, únicas detentoras das soluções e das verdades que precisamos.

Vamos juntos nisso!

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