NOTAS SOBRE A RETOMADA POLÍTICA DOS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS

Os tempos andam ruins para os que lutam por direitos básicos e pela liberdade!  Da proibição ao direito da mulher impedir uma gestação indesejada a até as lutas por moradia ou educação, o que temos visto é que o terreno anda espinhoso no que se refere à garantia de direitos e violento no que se refere à luta nas ruas.

Com a saúde não tem sido diferente: desde a aprovação da abertura ao capital estrangeiro a até a privatização constante do SUS, como se dá com a EBSERH, temos nos deparado com uma conjuntura nada agradável no que se refere à consolidação de um sistema universal e verdadeiramente público de saúde. A questão mais recente diz respeito à nomeação de Valencius Wurch como coordenador nacional de saúde mental. Trata-se de um psiquiatra abertamente contra a reforma psiquiátrica e que dirigiu um hospício que tinha já em sua fundação a prerrogativa de "internar" pessoas desviantes - em especial as contra o regime ditatorial. Este lugar foi fechado no ano de 2000 devido às inúmeras violações de direitos humanos.

São duas as questões que gostaria de trazer à tona. A primeira diz respeito à argumentação que justifica a nomeação de um partidário da contrarreforma e que tem sido a palavra de ordem da psiquiatria e de parte da medicina para combater o que retira parte de seu poder: "isso não é ciência". Para Wurch e os adeptos da contrarreforma, a extinção dos manicômios não tem embasamento científico, apenas político e ideológico. Algo irônico vindo de alguém que foi indicado por ser um bom amigo do novo ministro e que não tem nenhuma produção científica na área da saúde mental, e no mínimo cínico da parte de alguém que coordenou uma instituição que teve que ter fechada justamente por não produzir e nem promover saúde. Mas Wurch não está de todo errado: a discussão da reforma psiquiátrica extrapola a exclusividade técnico-científica e sim, torna-se fundamentalmente política. O verdadeiro papel que o hospital psiquiátrico exerceu e exerce até hoje nunca foi o do compromisso com a saúde, mas sim o da manutenção de um determinado tipo de sociedade que impõe um modo de subjetivação e de vida, e que lança mão deste tipo de instituição para fazer valer seu ideário na marra visando sustentar o decadente e contraditório projeto democrático ocidental. Tendo esta função política do manicômio em mente, não devemos nos surpreender que junto do aumento da população de rua nas grandes metrópoles, do aumento da criminalidade, de fenômenos como a crackolândia, desemprego e uso abusivo de drogas, tenhamos justamente a retomada de políticas de encarceramento em massa, como a redução da maioridade penal e o resgate da internação compulsória em hospícios e comunidades terapêuticas. É a retomada da função política-ideológica (no sentido de alienação) deste tipo de instituição: individualizar e mascarar problemas sociais muito maiores, os quais, diga-se de passagem, a reforma psiquiátrica reconhece quando diz que o tratamento em saúde mental perpassa pela reinserção social e a retomada dos direitos fundamentais. Concomitante a isso é preciso sinalizar também a retomada do discurso liberal empreendedor, que visa com ações como a privatização dos presídios e o repasse de verbas do ministério da saúde para comunidades terapêuticas fazer verter dinheiro com as mazelas nacionais sem ter comprometimento com sua resolução. O que se esconde no combate "à epidemia do crack" e aos loucos (nas palavras do coordenador estadual de saúde mental do RS, também de uma gestão do PMDB) é a retomada da higienização e limpeza social como método resolutivo da atual crise. A guerra aos pobres. Portanto sim, a discussão é política!


A segunda e última questão é um alerta e uma autocrítica necessária. Nos últimos tempos a política institucional tem demonstrado sua completa falência. Não é apenas no circo armado no congresso nacional que isto se evidencia. É também na fracassada aposta de muitos lutadores e lutadoras sociais deste país de depositar em um partido e em cargos do Estado a garantia da efetivação de uma sociedade melhor, tendo como resultado um governo nada alinhado aos movimentos sociais e que acaba por aparelhar lideranças de boa parte dos mesmos, vindo em alguns momentos até mesmo a frea-los. Com mais este golpe direto em todo o ideário cada vez mais ameaçado do SUS devemos retomar uma velha lição política: o que sustenta e garante uma sociedade alternativa, baseada na liberdade e igualdade, não são cargos estatais: é o povo organizado - nada mais e nada menos. Nenhum passo atrás!

Fazer do estudo um ato político

Quando ouvi pela primeira vez a afirmação de Paulo freire à respeito de que estudar seria um ato político, não entendi. Estava na segunda fase da graduação e embora tenha achado a frase muito bonita, não absorvi seu verdadeiro conteúdo. O que ele queria, no entanto, era dar seguimento à ideia marxista de praxis.

Hoje resolvi ler de novo trechos do pequeno livro de Freire que se chama "A importância do ato de ler". Na página 13, deparei-me então com o seguinte:

"A um ponto, porém, referido várias vezes neste texto, gostaria de voltar, pela significação que tem para a compreensão critica do ato de ler e, conseqüentemente, para a proposta de alfabetização a que me consagrei. Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescreve-lo”, quer dizer, de transformá -lo através de nossa prática consciente."

No mesmo ritmo de  Paulo freire, Vladimir Safatle, em "A Esquerda que não teme dizer seu nome" (2012) apresenta ideia muito semelhante, quando ao resgatar a clássica marxista de que os filósofos dedicaram tempo demais a interpretar o mundo e não a mudá-lo, faz um adendo de Heiddegger: o pensamento age quando pensa.  Pois "ele é a única atividade que tem a força de modificar nossa compreensão do que é, de fato, um problema (p.17)", o que abriria brechas para a visualização da raiz dos problemas que nos deparamos, nos permitindo enxergar novas e infinitas possibilidades de resoluções. [1]

É comum que, pela ânsia revolucionária, muitos de nós não façamos do estudo um ato político e revolucionário, olhando ele como uma espécie de etapa do processo da praxis, onde se seguiria a lógica de estudar para depois fazer. Talvez seja por esse tipo de leitura e a incompreensão de que o ato de estudar deve e pode ser em si um pensar-agir que tenhamos tantas leituras manualescas sobre a revolução comunista, que normalmente culminam em tentativas de reeditar modelos organizativos ou processos revolucionários de séculos passados em nosso tempo presente. O não uso da leitura ou da escrita como uma possibilidade de vermos nossa concepção de mundo e reeditá-la não leva à criação, mas a uma repetição desta mesma leitura ou à estagnação. Como ele mesmo alerta "estudar não é fácil porque é criar e recriar, é não repetir o que os outros dizem. Estudar é um dever revolucionário (p.33)". O estudo, portanto, deve nos servir justamente como uma oportunidade de olharmos seriamente para o mundo que carregamos dentro de nós mesmos. Um mundo que, como diz Gramsci, "é fruto de um processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário (1978, p.12)", ao qual então acrescenta que cabe a nós fazermos esse inventário; e que nesse processo de "conhecer a si mesmo" (como Paulo faz no início do texto com suas histórias pessoais) mora o início da elaboração crítica - reside o ato político.

Aos que carregam ainda os sonhos revolucionários dentro de si, façamos sempre do estudo um ato político!

Referências:
FREIRE, P. A importância do ato de ler em 3 artigos que se completam. Editora Cortez, 1989. [http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/paulofreire/paulo_freire_a_importancia_do_ato_de_ler.pdf]
GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História. Civilização Brasileira, 1978.
SAFATLE, V. A esquerda que não teme dizer seu nome. Três estrelas, 2012.



[1] Arrisco pontuar que essas formulações também nos dizem muito sobre o processo de elaboração psiquica que pode acontecer dentro da psicoterapia, mas deixemos isso como uma reflexão em aberto.

Crônicas Detestáveis de Tomás III

Érica acordou insatisfeita. Estava em um quarto escuro, onde a cortina não dava conta de tapar completamente a luz do sol que raiava e que a fazia despertar com os olhos entreabertos. Ao invés de ter preguiça só conseguia perceber que seu coração batia forte fazendo-a se sentir angustiada e ansiosa. Passou sua fina mão em seu peito, tentando acalmar seus sentimentos intensos e que a tomavam conta. Então veio em sua mente a clássica passagem freudiana: "Afinal, o que querem as mulheres?". Voltou para si a provocação: "O que eu quero?" pensou ela. Seu olhar fixou-se no teto.  Estava sentindo um vazio dentro de si, tinha falta de algo e queria que aquilo acabasse; queria ir embora. Tinha acabado de dormir com dois homens que conheceu em uma noite. Um era um rapaz negro muito bonito e o outro um homem mais velho, com uma barba em vias de ficar grisalha, mas que era desejado por um número considerável da outras garotas por todo seu appeal cult. Ambos também tinham uma mentalidade sobre sexualidade destas que acham espaço nos círculos libertários e de esquerda, dispostos à vivências de toda a sorte. Também desfrutavam de alta reputação em seus meios sociais. Fato é que foi bem servida toda a noite. Gozou muito. Mas ainda assim acordou com este pensamento. Tratou de ir embora logo, mesmo com a insistência e o carinho de um dos homens. Na verdade, sentiu certa repugnância daquelas carícias e essa ambivalência só a deixou mais confusa. Partiu com rapidez.

Aguardava um taxi já fora do ambiente angustiante, mas sua mente continuava ansiosa. Não queria sentir mais falta. Queria estar completa! Não lhe faltavam oportunidades. Era uma mulher jovem, bonita, intelectualizada e com um salário que lhe garantia grande independência.  Ao embarcar no veículo prontamente abriu seu smartphone e viu que em seu Whatsapp e seu Tinder possuía um diverso e verdadeiro cardápio de homens e mulheres. Mas a mensagem que ela queria ver ali não estava. Nenhum recado dele. Queria muito entender a si mesma. Queria saber porque estava desejando um sujeito tão simples diante de toda essa gama de possibilidades. Percebia que gostava de se sentir ansiosa por causa dele. Detestava o fato de amar a ambiguidade que ele lhe passava. Gostava de viver entre a certeza e a incerteza: tinha prazer com o desprazer da dúvida. Por um lado, ele lhe ofertava um afeto que lhe fazia sentir desejada e acima de tudo segura de si mesma e de que era amada, e sempre que pensava e sentia isso tinha uma sensação de plenitude que não sabia explicar. Por outro, certo descaso deste rapaz com seus próprios sentimentos,  mesclado com um desapego existencialista a faziam pensar que ela não era tão especial e que ele tinha outras prioridades. Não haveriam garantias e o pior de tudo é que isso transmitia a ela a angustiante ideia de que ele não sofreria em nada caso ela decidisse por romper com ele. Embarcava nessa montanha russa emocional novamente e vivenciava um gozo inexplicável, mas também doloroso.

Passou parte do dia obsessivamente pegando seu celular e verificando se recebera ou não uma mensagem dele. Sabia que o celular iria vibrar e tocar se isso acontecesse, mas mesmo sem acontecer, pegava e olhava de qualquer jeito. Queria era dizer isso tudo pra ele e que se danassem todas as consequências! Mas tinha um medo terrível de ser carente. Tinha dúvidas se realmente queria se sentir completa. Se estava "pronta" para essa entrega única, que é a dos nossos medos mais íntimos aos cuidados de quem se ama: um mostrar-se frágil e insuficiente, algo que uma sociedade burguesa pautada na ideia de self-made man tenta suprimir com todas as forças psiquiátricas e psicológicas. Sentia-se como prestes a pular de um bungee jump toda vez que pegava aquele celular e de alguma forma pensava em mandar alguma mensagem, mas logo sobrevinham todos esses pensamentos relacionados à ideia de "parecer auto suficiente". Queria ser como ele um pouco, que aparentemente doma seus sentimentos mais íntimos e os direciona para onde bem achar melhor. Mas ela não era assim. Era pura sensação.

O dia passou. Olhou para a caixa de medicamentos ansiolíticos que havia conseguido em uma consulta. Talvez fosse hora de admitir que precisava deles. O celular vibrou. Largou tudo e viu que era uma mensagem dele. Pensou se aguardava alguns minutos, para parecer ocupada. Que nada. Logo respondeu e logo estava se preparando para recebê-lo em casa, saltitante e feliz. Os remédios, por hora, ficariam de lado.

Encontros Urbanos

Uma das temáticas que vamos explorar na residência é o tema da infância. Um dos textos que abre as aulas sobre tal tema apresenta o conceito de "devir-criança". Resumindo de forma grosseira, este conceito tenta explicitar como a criança se coloca em um estado de "permanência aberta dos processos de subjetivação". O devir criança é a entrega à alteridade e ao acoplamento constante às sensações e a outros seres humanos. Uma tendência a exploração, que leva a uma potente capacidade de criar linhas de fuga diante dos modos de subjetivação instituídos. O texto também provoca com a ideia do devir-criança como uma fagulha de resistência que se sobressai nos adultos e que nos permite novamente retomar a espontaneidade e a abertura a novas possibilidades criativas de relação com o mundo."Muito bonito", pensei eu mesmo enquanto lia. Concordei com a reflexão e pensei como seria positivo que eu próprio me deixasse ser um pouco "devir-criança".

No entanto, antes mesmo de entrar no trem para ir para casa já estava retirando de minha mochila um livro e me preparando para me adequar ao que dizem as regras sociais: o trem não é um lugar pertinente para qualquer outra coisa que não se fechar em uma bolha. Nada de encarar pessoas ou falar com elas. Tudo nos perfeitos ditames neuróticos básicos. Mas a vida me guardava um breve encontro com um ser de 10 meses chamado Sofia.

Quando entrei no trem acabei ficando em pé, segurando meu longo guarda chuva entre as pernas e carregando minha mochila de forma invertida, ficando ela voltada para minha frente. Senti que meu guarda-chuva estava se mexendo um pouco demais e tive um estranhamento, mas a mochila não me permitia enxergar meus próprios pés. E foi enquanto fazia o esforço para ver o que estava acontecendo em minhas pernas que cruzei meu olhar com o de Sofia, que surgia debaixo de minha mochila. Sofia não me deu oi. Ela me olhou um tempo e voltou a querer tocar meu guarda chuva. Influenciado pela Psicologia e pelas leituras sobre alteridade, cedi rapidamente para sua brincadeira, de forma que a cada vez que ela tocava em meu guarda chuva fechado eu o girava, sempre de acordo com a intensidade que ela o puxava. Ficamos "conversando" assim. Depois decidiu pisar em meus tênis e ficar tocando neles. Sua curiosidade era tamanha, que ela resolveu então puxar alguns cordões da minha mochila. Fui levado por sua onda, chegando ao ponto de em pleno trem ficar me agachando e levantando para provocá-la a pegar na corda, vindo ela eventualmente a mordê-la. Ela prosseguiu explorando todos sujeitos próximos no vagão. E quando seu pai se propunha a pegá-la no colo para cessar com seu comportamento, ela logo chorava e esperneava, bastando colocá-la novamente em pé no chão para que parasse e retomasse suas atividades. Recusava-se ser capturada pela ordem! Queria era caminhar e se relacionar. Em pleno trem me peguei rindo, brincando e conversando com pelo menos 5 ou 6 estranhos que, após um dia cansativo, se permitiam através de sua relação com Sofia conversar trivialidades e cuidar dela ao mesmo tempo. A viagem passou rápido, mas no instante que sentei me vi pegando o livro novamente. Diferentemente de Sofia, fui facilmente recapturado à norma sem nenhuma resistência, até que ela ressurge em minha frente. Seu pai então pede que ela se despeça. Nos despedimos e eu me permito novamente fechar o livro e sorrir para ela e os outros, me despedindo.

Acredito que este breve encontro com Sofia me ensina, através de uma relação, justamente o que o texto tenta explicar. A relação que Sofia estabeleceu comigo ao fazer uso de seu devir criança fez com que eu me colocasse em seu lugar e também vivesse um pouco deste devir normalmente reprimido dentro de nós. Ela suscitou a fagulha de resistência. Brinquei e conversei com estranhos dentro de um trem. Demos risadas. Trocamos coisas da vida. Sofia nos ajudou a estabelecer linhas de fuga - participando deste processo ela própria também. Com um suspiro de agradecimento, finalizo a reflexão esperando que Sofia tenha aprendido algo de relevante pra ela também. 

REFERÊNCIA: CECCIM, Ricardo Burg  e  PALOMBINI, Analice de Lima. Imagens da infância, devir-criança e uma formulação à educação do cuidado. Psicol. Soc. [online]. 2009, vol.21, n.3, pp. 301-312 . Disponível em: .

Crônicas Detestáveis de Tomás II


Tomás vestia sua casaca surrada, seus tênis rasgados e seus jeans desgastados enquanto empurrava pessoas para sentar no metrô. Atraiu olhares de desgosto, mas naquele momento, só conseguia pensar que todos fossem se foder - queria mesmo é sentar. Sacou de seu bolso um exemplar de um livro, destes clássicos de bolso que ele já havia lido e que queria buscar frases de efeito. Observou o quanto adorava ler quando sentia raiva.

Suspirou profundamente e refletiu que o livro nada mais era que uma mediação suave, que o retirava do mundo e o colocava em um contato íntimo consigo mesmo. Concluiu que estes objetos sempre foram excelentes companhias. Sempre fora seduzido por livros. Escorregar por suas palavras e pela fantasia era algo que o fazia sentir bem, um gozo diferente. Quando abriu o livro atrás das marcações que fez nele, deparou-se com uma pequena ficha com um número. Provavelmente pegara em alguma loja ou farmácia para entrar na fila de atendimento. Surpreendeu-se diante deste pequeno fato, com o quanto sua relação com seus livros diziam muito sobre seus percursos da vida. Verdadeiras companhias. Escreveu em seu caderno:

"E então cheguei ao nível de tratar meus livros exatamente como faço com memórias de romances passados: gosto de ir até eles nos momentos oportunos e ver as marcas que eles me deixaram e que eu deixei neles, os símbolos de nossas trocas: presentes, cartas, fotos; riscados, sublinhados e frases. Hoje voltei a um deles e encontrei uma senha destas que você pega para entrar nas filas de lojas. Tentei lembrar de onde era e aos poucos aquele livro me mostrou parte dos meus percursos por esta vida. Percursos que eles dividiram comigo: lugares que passei e coisas que vivenciei."

Optou por terminar com suas romantizações aleatórias, estas que de súbito ocupam algumas mentes. Achou e leu as frases que procurava. Após a leitura, fechou os olhos e sorriu. Então olhou para as pessoas e decidiu oferecer seu lugar a uma moça cheia de sacolas. Deixou seu livro na mochila e correu para visitar a sessão de clássicos de uma livraria. Mas desta vez sem empurrar ninguém!

MANICÔMIO: PRIMEIRO COMO TRAGÉDIA, DEPOIS COMO FARSA!


No dia 29 de abril ocorreu, na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, uma audiência pública na qual foi pautada a atual política de saúde mental. Nela foi possível ver claramente dois projetos em disputa: os militantes da reforma psiquiátrica, em sua maioria usuários e profissionais de saúde, e os militantes da contrarreforma, em sua maioria trabalhadores que possuem respaldo da categoria médica e das comunidades terapêuticas. E como estes setores tem argumentado?

Parte da argumentação é a de que atualmente os hospitais psiquiátricos estão modernizados em suas tecnologias tanto de cuidado quanto de estrutura. Sua principal manifestação se dá pela tentativa de diferenciar manicômio de hospital psiquiátrico. O primeiro não seria um espaço multiprofissional e iluminado pela ciência, enquanto o último seria a expressão de um hospital de ponta, mas com o foco em saúde mental. Por exemplo: não temos mais eletrochoque, mas sim Eletroconvulsoterapia (ECT). Joguetes semânticos como esses evidenciam a tentativa de retomada do hospital psiquiátrico através da afirmação de que hoje em dia ele não é mais tão "feio" quanto antes; "está mais bonito", inclusive nas nomenclaturas. Apresentam os manicômios  com uma “roupa nova”, "humanizados", como dizia um cartaz na audiência: "O São Pedro tem tratamento". Sustenta-se também na naturalização do modelo hospitalocêntrico, visto que se argumentou que em todos os lugares do mundo existem hospitais psiquiátricos. Por fim, há a linha argumentativa que alega a existência de uma enorme demanda de internações para os desassistidos, problema supostamente criado pelo fato de que a rede substitutiva não conseguiu se consolidar; que a reforma falhou e liberou loucos sem assistência. Foi enfatizado pelo próprio coordenador estadual de saúde mental de que essa demanda está especialmente em adictos e moradores de rua, vítimas de uma "epidemia de drogas" - citada pelo coordenador -que merece ser combatida. Chegou a invocar a égide da verdade bíblica para sustentar sua cruzada contra a doença mental.

É importante deixar claro que ambas argumentações são falaciosas; é a tragédia que ressurge como farsa. No que se refere à demanda por internações devido a não consolidação da rede, temos aí um problema real, em parte, mas que de forma alguma tem como solução a reativação de manicômios. Sabemos que  a precarização do SUS e seu sucateamento é uma prática comum de governantes que possuem envolvimento com qualquer setor que lucra com a saúde, seja de planos de saúde, de laboratórios ou de comunidades terapêuticas - setores que, vale citar, financiam muitos candidatos. Fazer com que o Estado não cumpra sua função e criar um vácuo para que o privado possa parasitá-lo é algo que não é novidade e têm acontecido já há décadas. Um governo que diante de uma rede desfalcada e da argumentação de corte de gastos estabelece como prioridade fechar residenciais terapêuticos e enfraquecer a rede, enquanto ao mesmo tempo opta por reativar os hospitais psiquiátricos, evidencia que não se trata de um problema meramente de gestão; não é um grupo que pensa a saúde de forma estritamente técnica, como se quis dar a entender nas falas do coordenador e de um dos membros da casa. Não! Trata-se justamente de uma decisão política. Culpar a reforma psiquiatrica por problemas que foram criados por governantes como estes é não só um erro, mas também outra manobra política. Por que a solução é necessariamente mais manicômios ao invés de mais leitos em hospitais gerais para internação, mais CAPS e mais rede? (a qual, vale lembrar, vai para além de dispositivos de saúde).

Quanto à suposta atualização das práticas manicomiais, peguemos como exemplo a própria postura dos partidários do manicômio na audiência. Ela evidencia a prática manicomial: vaiaram e desmereceram o breve teatro que se propos a intervir sobre a temática (houve enorme rebuliço porque os atores subiram na mesa), se recusaram a mudar de lugar para ampliar a participação social na audiência e sugeriram a um usuário que foi falar no microfone que ele se internasse, por mais lúcida que fosse sua fala. Estas posturas demonstram bem as características que historicamente acompanham e sempre vão acompanhar o método asilar de cuidado: repúdio à diferença ou qualquer sinal de rompimento com a ordem, antidemocratismo e rebaixamento constante daquele que é "tratado", sempre reduzido ao transtorno e  suas potencialidades reduzidas a sintomas. Mas a verdadeira função do manicômio, que o acompanhou e acompanha desde seu nascimento, não é a questão da cura. Esta a rede dá conta. Trata-se de sua função como dispositivo de controle moral e social, novamente: uma questão política.

Quando o Coordenador Estadual de Saúde Mental associa e prioriza a necessidade de se construir manicômios como um remédio para as drogas e para atender a população prisional e a de rua, ele demonstra justamente a função do manicômio como a da "limpeza social dos desviantes". Evidencia como o manicômio tem imbricado em si uma questão de classe e de cor: ele precisa existir para internar pobres, que em nosso país são em maioria negros. A redução de um problema socioeconômico muito maior e abrangente à ótica do desvio individual e, pior, à cura dessas pessoas prioritariamente através da internação, é só outra evidência da função política do manicômio em nossa sociedade: limpar as ruas dos "doentes", além de uma função ideológica, pois mascara contradições socioeconômicas na medida em que reduz a vida nas ruas e o uso de drogas apenas à sanidade mental.

É neste terreno que acontece a disputa central: enquanto algumas pessoas pensam o cuidados a partir de práticas fascistas e higienistas, outras acreditam na promoção da diversidade, na aceitação das diferenças e principalmente nas liberdades individuais. Uma ótica de exclusão contra uma ótica de inclusão. O tratamento fechado versus o tratamento em liberdade. Não nos interessa se na Suiça ou em Cuba existem manicômios. Nos interessa valorizar essa rica produção nacional, que é a extinção dos hospícios, a tentativa de desmontar o estigma da loucura e o desafio de cuidar em liberdade e, acima de tudo, em rede. Nenhum passo atrás!

Coletivo de Residentes EducaSaúde/UFRGS

Vamos rescindir com o Hospital Psiquiátrico São Pedro?

Visitar o Hospital Psiquiátrico São Pedro é sempre uma experiência no mínimo incômoda. Semana passada regressei  a este lugar e de novo passei a ouvir ecos e ver imagens de um passado próximo, mas que ainda tenta persistir no presente.

Foi minha terceira visita ao São Pedro. Fui conhecer as moradias e projetos que lá existem, como parte da itinerância pelos campos da residência multiprofissional. Elas infelizmente são muito próximas ao São Pedro, mas ainda assim se mostraram espaços fundamentais e de maior liberdade para os usuários. Para chegar nelas passei por dentro do manicômio e neste percurso escutava gritos reais de pessoas em crise. Mas em meu imaginário também vinham imagens e gritos de dor e sofrimento. O "Holocausto Brasileiro", como coloca Daniela Arbex, ressuscitava em minha cabeça e gerava um tremendo mal estar. "Quanta dor se acumulou ali?", me questionei. Não conseguia aceitar que aquele hospital continuava existindo, pelo menos não enquanto um dispositivo de "saúde mental".

Passados alguns dias, este sentimento negativo retornou. Peguei em mãos a nota do governo anunciando que estaria rescindindo o aluguel de 3 serviços residenciais terapêuticos. Na nota a justificativa é a de que eles não eram usados e desviavam de suas funções. Não se problematiza o porquê disto ocorrer, apenas se conclui que por causa destes motivos os contratos não existirão mais. Prossegue com uma abstração sobre a RAPS e finaliza elogiando a importância do São Pedro por ele possuir uma diversidade de especialistas médicos. Ainda antes desta notícia houveram outras: a da reativação do hospital colônia de Itapuã e a declaração do novo coordenador estadual de saúde mental de que a intenção do governo é a de reativar o São Pedro como uma referência em saúde mental não só para usuários como também para a formação de profissionais, de forma que a Escola de Saúde Pública foi convocada a tornar o manicômio um dos lugares privilegiados de formação, indo na contramão de toda a reforma psiquiátrica.

Diante disto é inevitável não pensar que o velho argumento do corte de gastos espirra agora na saúde mental gaúcha. A justificativa pragmática dada pela gestão (não eram usados) surge apenas como uma forma de tangenciar o fato de que se por um lado cortamos esses serviços alternativos, por outro se tenta reativar e modernizar o manicômio. Seguindo a lógica da gestão, fica a provocação: Por que não rescindimos com o São Pedro? Há muito tempo ele deixou de cumprir sua função. Há muito tempo ele sequer é admitido pela legislação como lugar privilegiado e prioritário de saúde mental. O movimento deveria ser justamente o contrário: o de cortar contratos com São Pedro na medida em que os que lá moram deixam aquele lugar, direcionar seus leitos para Hospitais Gerais e aumentar a rede de atenção psicossocial, preconizando o tratamento em liberdade e pautado pela integralidade com a rede. Esta última, inclusive, não só é rica em especialistas médicos como também em outros núcleos profissionais e diversidade de serviços.

O desserviço que a lógica manicomial fez para muitas famílias e pessoas ecoa até hoje, de forma que é difícil acreditar que os residenciais não possuem utilidade, pois certamente não faltam pessoas dentro da rede que fariam o devido uso deles. Esta recisão não é meramente uma operação de corte de gastos como se quer fazer parecer, mas acima de tudo mais uma evidência de um projeto de saúde mental onde se privilegia tornar centrais o manicômio e a vacilante psiquiatria em detrimento do aprimoramento da rede. A mobilização se faz precisa.


¹Foto tirada em um dos muros próximo das moradas do São Pedro.

Qual é a surpresa?

Tenho visto pessoas surpresas nessas últimas semanas. Como se as recentes marchas fossem algo inédito. Como se fosse algo novo uma elite brasileira defendendo retrocessos ou operando na base do ódio e do terror, reduzindo a política à moralidade.

O romancismo residual de 2013 e a polarização falsa das eleições precisam ser deixados de lado. O MPL e outros movimentos de esquerda entraram nas ruas apanhando e saíram apanhando - se removeram das manifestações. Apanharam inclusive desta direita que arrancava bandeiras, elogiava a polícia e ficava feliz em "purificar" os protestos dos partidos, da esquerda e dos "vândalos". No caos de 2013, embora a esquerda tenha sido protagonista, isto de forma alguma fez dos protestos algo revolucionário. Pelo contrário, setores mais reacionários e combativos como os fascistas e outros partidos de direita também somaram às ruas já querendo combater "o esquerdismo" e o PT, que pra eles é um símbolo da esquerda. Não saíram nas ruas pelo passe livre. Saíram pra exaltar Joaquim Barbosa e pra pedir o retorno da ditadura, redução da maioridade penal, combate ao gayzismo e o kit gay, contra o aborto, pela privatização, contra a "ilegalidade" da Lei maria da Penha etc... Para não mencionar a jogada da mídia (simbolizada pelas desculpas de Jabor) de estímulo ao protesto, ao invés da clássica demonização deste tipo de exercício democrático.

Estes seus familiares exaltados e amigos ou amigas que nunca saíram pra protestar pra nada e resolveram sair no dia 15 sempre foram adeptos deste campo. Eles nunca simpatizaram em nada pela luta por direitos. Desde antes sempre foram aqueles sujeitos que faziam uso das frases clássicas como "direito dos manos",  que o Bolsa Família é um absurdo, que acham que comunistas são vagabundos, que protestar é vadiagem ou que a criminalidade é um problema exclusivamente moral. Desde antes não apoiavam "os vermelhos" e o PT - para eles Maria do Rosário e Dilma sempre foram vacas imbecis. É por isso que existe a atenção seletiva destas pessoas para com determinados fatos políticos: é a luta de classes; a luta política, em suma, guerra. A racionalidade é justamente a de fortalecer a si e enfraquecer o inimigo. Que existem pessoas que só estão "#cansadas" do PT e de repente possuem uma mente progressista também é verdade, mas estas aí são a ressaca de 2013 que foi abocanhada pela direita e sua tática de centralizar na Dilma e no PT os problemas do país.

Que a insatisfação da direita é altamente questionável é fato, mas por outro lado também é legítimo que a ela esteja organizada e tenha a coragem de falar publicamente. Ela também tem a sua cara e precisa mostrá-la. Por hora, todo tipo de movimento de direita está junto vestindo a bandeira do Brasil. Integralistas estão andando de mãos dadas com liberais contra o comunismo e contra a esquerda, ainda que mascarando seus interesses específicos atrás do tema da "corrupção", tema este que definitivamente não é o divisor de água entre pessoas que foram e não foram no dia 15.


Esta é a conformação da organização mais explícita da direita nacional. Nada de novo. O que fica em aberto é: A) Onde está a organização da esquerda? e B) Por quanto tempo a corrupção e o PT vão servir pra ludibriar as pessoas de que se trata de um movimento puro e pela mudança do país.

Entre um impeachment e um sintoma

Desde as eleições, grupos políticos específicos tem constantemente inserido em pauta o impeachment da atual presidenta. Embora esta palavra tenha a magia de misturar toda uma gama de diversas insatisfações reais que o governo do Partido dos Trabalhadores(PT) criou, é perceptível que o pilar central deste pedido se baseia na corrupção do PT e os escândalos decorrentes disso. Discurso não tão velho e que, na verdade, fazia também parte principal da queda de Collor há pouco mais de 20 anos. Mera coincidência?

A insistência no retorno do impeachment e nas comparações com Collor ("Dillma") é uma repetição que merece ser explorada, pois acaba por se tornar um recurso ilusório que impede a exposição radical de suas causas e, mais importante, bloqueia novas medidas diante delas. Apliquemos uma ferramenta fundamental tanto na análise econômica como na psíquica: a recordação histórica. Lembremos que Collor sofreu o impeachment majoritariamente por causa da comoção em torno da corrupção e desvio de dinheiro público. A história que aprendemos é a de Collor e Paulo César Farias roubando o dinheiro da população e sendo depostos por uma massa de estudantes caras pintadas. Então se conclui que o que removeu Collor de seu posto foi sua corrupção e sua imoralidade como presidente, quase como que seus confiscos autoritários tivessem sido justos caso não tivessem sido desviados para o bolso de corruptos. Não é costumeiro comentar, porém, toda uma outra série de medidas neoliberais completamente destrutivas de direitos sociais e trabalhistas que ele intencionava fazer/fez em prol do capital financeiro internacional e do FMI, que iam desde os cortes no setor de serviços a até privatização das universidades[1]. Estes elementos pouco aparecem nas justificativas gerais de seu impeachment, embora tivessem impacto na vida econômica do país e das pessoas. Mas a história anda e o Brasil se viu satisfeito pelo seu exercício democrático contra governadores corruptos.

No entanto, passaram os anos e estamos diante de um mesmo quadro geral: continuam os problemas com os serviços (decorrência das medidas que foram aplicadas por Collor e seus sucessores até hoje), continua a privatização, continua cessão ao capital estrangeiro (a saúde pública aberta ao mesmo é o caso mais recente), continua a destruição de direitos trabalhistas e continuam sendo usados boa parte de nossos impostos para juros da dívida externa. Continua também a imoralidade política. Com este pano de fundo chegamos a outro ápice de insatisfação generalizada[2] , simbolizada em especial por Junho de 2013. O desejo por mudança volta ainda mais radical e sedento por ser satisfeito, pois as medidas anteriores de sua resolução, em especial as alternâncias de governos, se mostraram insuficientes. No entanto, os setores reacionários e moderados da sociedade prontamente levantam sua barreira repressiva contra tal ensejo, reprimindo-o e principalmente o cindindo em um lado mal (os "vândalos") e um lado "bom" ("cidadão de bem"). Entre a vontade radical e visceral de mudar o país e os muros erigidos por uma ideologia apaziguadora, acontece um impasse. Incapaz de se renovar e se realizar por completo, esse impulso de mudança é reprimido. De forma semelhante à libido, regride e posteriormente associa-se às fantasias relacionadas ao antigo impeachment, catexizado em nossa história pela função aliviadora que cumpriu.

É aqui começa a fazer sentido a famosa frase marxista: a história se repete como tragédia e depois como farsa. Se por um lado o impeachment de Collor se apresentou como uma tragédia e escandalizou o povo, mostrando que a corrupção se incrusta até o mais alto escalão do governo, por outro se apresenta agora como farsa - pois não foi retirando uma figura do poder que se resolveram os problemas do país, nem sequer a tal da corrupção que havia sido o carro chefe de seu impeachment. A tentativa atual, pois, é nada mais e nada menos que uma repetição farsante. É uma solução que serve para conciliar a necessidade real e radical de mudanças no país por parte do protagonismo da população com um apassivamento e uma resignação estratosférica ao status quo. A redução dos problemas atuais à figura presidencial e à corrupção (deslocamento), seguida da condensação no impeachment obedece aos mesmos mecanismos da formação de sintomas neuróticos histéricos freudianos. E de forma semelhante a um sintoma, atua justamente como uma adaptação/sujeição do desejo de mudança e não no direcionamento deste à mudança de fato; acaba por ludibriar de forma obediente a vontade radical de transformação. Temos uma ação que tem em seu fim uma não ação. Que é na verdade apenas a manutenção de um desejo que temos tido há tempos em relação ao progresso nacional.

Acredito que a insatisfação precisa ser radical. Buscar em sua própria história suas raízes. E a partir delas transformar-se em força criadora. Que não se sabota em um ritual de tentar reviver o passado, mas intenta se efetivar na construção um país diferente. Que "o impeachment de Dillma", por sua insistência em se repetir, nos mostre nas entrelinhas o que na verdade ele é: a definição latente das insuficiências de nosso regime democrático.  




[1] Curiosamente, boa parte destas denúncias eram protagonizadas pelo PT e outros partidos e movimentos de esquerda. Ver Martuscelli [http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-62762010000200010&script=sci_arttext] e Arantes [http://grabois.org.br/portal/cdm/revista.int.php?id_sessao=50&id_publicacao=115&id_indice=398]
[2] Uma espécie de um retorno do reprimido; "O gigante acordou". Que gigante seria esse?

Contra o capital estrangeiro na saúde pública

[Há spoiler do filme "Jardineiro Fiel no segundo parágrafo, cuidado]

No dia 19 de Janeiro a saúde pública recebeu mais um duro golpe. Refiro-me à sanção da Lei 13.097 pela presidência da república. Tal lei modificou a famosa lei nº 8080 e abriu enormes portas para a entrada do capital estrangeiro na exploração da saúde pública. Mais uma das evidências de que há uma pretensão de cada vez mais privatizar nosso direito à saúde, quando não contorcê-lo e usá-lo como moeda de troca para negociatas com empresas privadas.

Assim que li a notícia recordei-me do filme "O jardineiro fiel", que por acaso foi dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. Como pano de fundo desta obra temos uma operação ilegal de uma multinacional farmacêutica que com a desculpa de combater a AIDS na África, realizava testagens ilícitas de um de seus medicamentos na população que atendia, acompanhando através da saúde pública as decorrências e efeitos colaterais de seus medicamentos. A trama segue com o jardineiro descobrindo como os interesses de mercado e de lucro se embrenhavam com a estrutura pública e local, criando toda uma rede de corrupção e sustentação do esquema, bem como de violação de direitos e até assassinatos. Se há um aspecto romântico demais neste filme, certamente é o de que a empresa acaba por ser desmascarada no final.

A obra de Meirelles nos serve como material para refletirmos o que significa de fato a privatização da saúde pública e, neste caso, sua submissão aos interesses estrangeiros. Pensemos: Por que um grupo americano voltado a financiamentos diversos (capital financeiro) no valor de 203 bilhões de dólares em ações, empresas e convênios em diversas partes do mundo teria interesse em comprar parte de uma rede hospitalar brasileira e abrir seu próprio serviço; ou até melhor: REDE orgânica de serviços clínicos em terras tupiniquins?[1] Será pela sua preocupação com o oferecimento de um serviço de qualidade e as necessidades de saúde de um país subdesenvolvido ou pela preocupação com os interesses de seus acionistas de diversas partes do globo? O que será que influencia os convênios e ética desta empresa-hospital: trabalhadores qualificados e a saúde de seus pacientes ou o lucro e uma outra série de vantagens que se pode retirar disso? Como a relação capital x trabalho influencia na qualidade e produção do serviço? Não podemos também esquecer que o campo da prática é, em especial na saúde pública onde oficialmente se privilegia isso, um espaço prioritário para a formação de quadros e a formulação teórica que orienta as práticas de saúde do país. A absorção do acúmulo da prática desses profissionais nesses lugares vai se dar de que forma? Que tipo de ensino e pesquisa em saúde estes lugares promovem (voltamos ao capital x trabalho) - como isso dialoga com as necessidades sociais em saúde de nosso povo? Na verdade, não dialoga. Não há diálogo entre necessidades de mercado e necessidades sociais em saúde. Enquanto o primeiro tem suas exigências particulares (e nesse caso, por se tratar de capital estrangeiro, elas extrapolam os limites locais), o segundo tem outras que não exigem superespecializações, máquinas e complexos hospitalares em massa.

Quando a lei nº8080 foi criada, ela abriu brechas para que o sistema particular entrasse como complementar à rede pública, o que desde então permitiu que o Estado, em conjunto com investidores e empresários da saúde, entrassem em constantes acordos para que cada vez mais o primeiro cedesse espaço para o segundo. Para garantir este processo, se incorreu sempre à associação com a mídia burguesa e hegemônica, que se dedicou décadas a praticar uma espécie de terrorismo com a saúde pública, assentando as bases das justificativas de sempre: o Estado não sabe gerir, tem muita corrupção, o serviço é ruim porque é público e voilà : privatiza! Este jogo já manjado sempre serviu para esconder a única e verdadeira ineficiência: a ineficiência política de um governo que investiu sempre muito pouco na saúde da população; que produz uma saúde ineficiente propositalmente. Com este decreto, chegamos em seu ponto extremo, que é cedermos a saúde de uma nação para ser explorada ao capital estrangeiro.

A aprovação desta nova modificação na lei coloca a saúde de um povo à venda. Antagoniza radicalmente com a idéia de um sistema universal, público e de qualidade, que existe para dialogar com os nossos problemas socioeconômicos. Um sistema que é pra ser verde e amarelo, ter um coração que bate junto de quem trabalha e vive nesse país e não pra ser regulado pelo tinir de moedas no bolso de uma minoria. Eu estou, diferentemente do governo, junto com os trabalhadores, usuários(as), a Conferência Nacional de Saúde e a Conferência Nacional de Saúde Mental - Intersetorial: contra a privatização na saúde.



[1] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/205118-investidores-estrangeiros-assediam-hospitais-no-pais.shtml

Crônicas detestáveis de Tomás

Tomás tinha amigos, embora não muitos. O que o leitor irá descobrir é que embora verdadeiros amigos, todos os amigos de Tomás, sem exceção, tinham características as quais escondiam uns dos outros. O primeiro destes tipos que vamos apresentar é Jonas Carvalho.

Jonas era mais velho que Tomás, estando na faixa de seus 32 anos. Estudou em uma boa universidade federal e conseguiu fazer uma pós-graduação nos Estados Unidos. Conheceram-se em uma despedida de solteiro de um outro amigo de ambos e entre porres, putas e risadas acabaram simpatizando um com o outro. Jonas tinha voltado a pouco tempo dos Estados Unidos e tinha muito a contar, enquanto Tomás tinha regressado de si mesmo e tinha muito a ouvir. Dentre suas características principais, o cabelo escovinha para trás tentando disfarçar sua leve calvície e uma levíssima corcunda se destacam. Trouxe dos EUA o costume de usar uma pochete, o que o torna estranho aos olhares contemporâneos e o faz parecer mais velho e desinteressante do que realmente é. Fala com rapidez, parece sempre elétrico e trabalha com sistemas de informação de uma grande empresa nacional, embora seja originalmente engenheiro. O porquê de o interesse por computadores acabar por gerar uma infinidade de estereótipos de Jonas por aí é algo que deixo para outras pessoas explicarem. Para todos, Jonas é um sujeito responsável e que as vezes, por tentar agradar demais, acaba por sem querer sendo desagradável. Mas nenhum de seus bons amigos se incomodam mais com isso e se sentem livres para censurá-lo nos excessos.

Em seu íntimo, porém, Jonas se dedicava a hábitos os quais propositalmente escondia e nunca falava sobre. Ao menos 3 horas por dia se dedicava a navegar anonimamente na internet. Nesta madrugada ficou vendo vídeos de pessoas sendo mutiladas, intercalando com vídeos de animaizinhos. Quando cansou, foi debater política em fóruns anônimos. Este sim era sua atividade predileta, talvez mais que tudo em sua vida, embora não admitisse. Tal era seu interesse em debater anonimamente na internet, que as vezes se olhava no espelho e se via como um intelectual ou político de grande porte. Adquiriu o hábito de vestir algum adorno antes de debater e se debater em seu teclado: uma gravata, um chapéu, um anel.. precisava vestir algo. Acreditava verdadeiramente que era um sujeito acima da média de inteligência e gastava boa parte de sua madrugada se referenciando em websites, vídeos do Youtube e citações de origem duvidosas para refutar seus adversários em debates longos. Secretamente se regozijava a ponto de comemorar internamente (externamente, quando sozinho) quando suas idéias recebiam algum "Curtir" ou eram aceitas por algum outro participante da discussão. Orgulhava-se internamente por nunca ter arredado o pé em nenhuma discussão virtual, coisa que o fazia se estender por toda madrugada se fosse preciso, sacrificando seu sono em prol de sua vitória - ele sempre era o vitorioso. Passou a se sentir poderoso e consentiu consigo mesmo de que, para não estragar suas relações pessoais, não iria debater pessoalmente com as pessoas, visto que seu vasto domínio cultural e político, junto de sagacidade argumentativa, poderia estragar suas relações.

No outro dia encontrou Tomás e outros amigos no seu gabinete. Estava com as olheiras costumeiras. Foi inquirido por um dos colegas sobre estas últimas, ao passo de que respondeu "Trabalhei toda a madrugada". Discutiam sobre um novo governador e o impacto que aquilo poderia ter em leis trabalhistas. Jonas se segurou fortemente para não falar nada. Seus dedos começaram a mexer como se estivesse teclando e quando perguntaram o que ele achava respondeu enquanto engolia seu café, meio vacilante no tom de voz: "Não gosto de política".


Logo mais Jonas e sua idéia de superioridade estariam prestes a achar novas vazões, quando Tomás iria lhe apresentar um novo aplicativo.

Um surfista e um garoto de 11 anos

E lá se foi outra vida. Dessa vez a de um atleta. Ia ficar calado, mas é evidente que os ânimos fizeram as pessoas se manifestarem, dentre as quais as que mais me chamam atenção são as dos setores tradicionalmente defensores da existência de uma corporação militarizada como encarregada da segurança pública e contato com civis.
A estas pessoas normalmente passa batido uma série de atitudes muito semelhantes e cotidianas protagonizadas pela Polícia Militar, mas que como acontecem com sujeitos desviantes do padrão ético-estético-político do "cidadão de bem", tranquilamente são moralmente flexibilizadas e em alguns casos, no máximo alvos uma leve lástima ou até de exaltação - menos um mau elemento no mundo. O recente caso do garoto carioca de 11 anos que foi executado pela Polícia está aí pra provar isso: enquanto neste último a grande maioria não duvida que ele tenha culpa e que era um bandido (segundo relato da PM ele possuía armas e atirava, já presentes e os pais disseram o contrário), no caso do surfista logo não se tem dúvida alguma que a versão do policial certamente é exagerada. Aqui se adequa a expressão "dois pesos, duas medidas" - ou melhor: "dois autos de resistência, duas medidas". Ninguém duvida que nosso atleta (eu incluso) não foi agressivo ou ameaçador com o policial. Mas já esse favelado de 11 anos...  esse sim com certeza fez coisa!  Sobre este último, nem um lamento dos moralistas.

Seja quem for: cor, sexo, idade... a PM mata. Ela é feita pra ser assim. Dado o passado do policial militar que executou o surfista fica óbvio que ele com certeza já tinha um histórico pessoal de agressividade e abuso de poder. Coisa que de forma alguma é incomum dentro da corporação. Ela cria gente assim. A única via de se passar a reduzir esse tipo de caso é desmilitarizando a polícia. Há quem ache isso uma medida "esquerdista" ou que implicaria em uma desobediência civil ainda maior. Puro ato reacionário. É muito mais conveniente uma polícia imbricada e unida ao povo, baseada na conscientização e no amor por este do que uma que se coloca acima do bem e do mal e muitas vezes anseia oprimir "vagabundos".
Eu não quero que mais pessoas, sejam elas surfistas, faveladas ou manifestantes, morram por causa de uma corporação completamente incompatível com a civilização democrática e civil contemporânea.
PS: Eu sei que existem Policiais Militares que não se enquadram nisso e que inclusive questionam tais ações. É pensando até nestes que eu escrevo a crítica - não dirigida a eles, mas em solidarização a eles e as críticas que eles fazem ou são impedidos de fazer.