Lembrete: A violência prisional não para no final do ano

           Em meu cotidiano percebo muitas pessoas preocupadas com o futuro do país e com a humanidade. Muitas destas pessoas reivindicam a necessidade de mais amor, solidariedade e paz entre os seres humanos. Algumas delas preocupam-se com as crianças, especialmente as africanas, palestinas, americanas... mas e as brasileiras? Não é intenção desmerecermos o sofrimento destes sujeitos, que são problemas reais e também são problemas sociais gravíssimos. Mas queria trazer uma reflexão a respeito deste final de ano que tive com uma ação próxima do presídio de são pedro de alcântara.

         Neste final de ano realizamos nossa última reunião do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade (GAFPPL), grupo o qual participo como membro e militante da Frente Antiprisional das Brigadas Populares. Neste dia tivemos a presença de dois papais noéis distribuindo presentes e falando com as crianças no local onde nos reunimos, nas proximidades do presídio. Esta ação já vêm sendo organizada desde o ano passado e tem a intenção de acolher as crianças que possuem parentes - principalmente pais- em regime de privação de liberdade. Ao final, um dos idealizadores desta ação fez uma fala a respeito do direito destas crianças se desenvolverem e contarem com o carinho e acolhimento dos adultos, principalmente com uma palavra de afeto e um presente de seus pais nestas datas especiais. Analisou também o lado do familiar preso que em datas especiais como estas não pode contar com a presença de sua família, nem com a chance de ser pai/mãe e poder oferecer ao seu filho um presente e um bom e significativo carinho nestas datas especiais, onde a maior parte de nós comemora e conta com o afago e aconchego do lar. Existe possibilidade de qualquer profissional psicólogo ou autoridade não preocupar-se com isto, nem que seja exclusivamente com o lado destas crianças?

          Hoje em nosso país são mais de 470 mil pessoas presas sendo em Santa Catarina um número próximo de 15.000. Quantas famílias e sujeitos sofrem com este tipo de situação? Quantas crianças hoje em nosso país submetem-se a tortura e a violência subjetiva de ver seus pais algemados e maltrapilhos na sua frente, quando não humilhados diretamente diante de seus olhos pelas autoridades (contava o organizador da ação natalina que uma criança questionava a mãe durante uma visita: “Por que estão algemando e removendo o papai?”)? Há quem pense que os presos devem pagar pelos seus erros e isto eles já fazem, inclusive sofrendo além da conta. Mas até que ponto a tortura e a violência do sistema prisional nacional tem o direito de se estender para cima de crianças e parentes de sujeitos em privação de liberdade? Diz-se por aí que as prisões servem para colocar o sujeito “na linha”. Servem para que se pague pelos erros cometidos e se aprenda a viver pacificamente em comunidade. Mentira. Não precisamos mais de alguns minutos de história, memória e um breve olhar para as cadeias para entendermos que estes lugares não são nada mais que fábricas de sofrimento e violência. Matadouros de seres humanos; fisicamente e subjetivamente. O presídio não cumpre mais sua função – e em um país dominado pela pobreza podemos nos questionar que talvez ele cumpra uma outra, que é a de conter a massa marginalizada, pobre e revoltada de nossa nação.

        Fica o convite a todos e todas a neste final de ano e aproximação de datas especiais a pensarem sobre o tema. Nós, seres humanos “normais”, “cultos” e “civilizados” paramos nestes últimos dias. O presídio não para. Não para lá dentro com sua violência e não para aqui fora, quando nas cerimônias e nas casas um filho pergunta sobre o pai e sua família fica constrangida no que responder. Ou quando uma mãe chora só e lamenta-se, colocando em si mesma a culpa de ter criado um criminoso que na verdade a sociedade própria ajudou a gestionar ao jogá-lo à sua própria margem. Aos psicólogos, cabe a convocação: o que faremos diante de todo este sofrimento? Não nos faltaram disciplinas sobre o desenvolvimento humano para entender os desdobramentos deste tipo de situação. É um dever ético e profissional entendermos a realidade prisional de nosso país e o quanto estas instituições ferem todos os dias, dentro dela e fora dela os direitos humanos mais básicos e fazem com que pessoas específicas paguem pelos problemas de toda uma sociedade.


Prólogo do livro "Além do bem e do mal" - Nietzche

Resolvi postar aqui na íntegra o prólogo do livro "Além do bem e do mal" do Nietzche. Pessoalmente, me agrada. Compartilho:

PRÓLOGO

  "    Supondo que a verdade seja uma mulher - não seria bem fundada a suspeita de que todos filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram meios inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não deixou conquistar - e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ainda está em pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas. Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes; e talvez esteja próximo o tempo em que se percebrá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram - alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da gramática, ou temerária generalização de fatos muito estreitos, muito pessoais, demasiado humanos. A filosofia dos dogmáticos foi, temos esperança, apenas uma promessa através dos milênios: assim como em época anterior a astrologia, a cujo serviço talvez se tenha aplicado mais dinheiro, trabalho, paciência perspicácia do que para qualquer ciência verdadeira até agora: a ela e suas pretensões "supraterrenas" deve-se o grande estilo da arquitetura na Ásia e no Egito. Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela Terra como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo na Europa, por exemplo.

     Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. Mas agora que está superado, agora que a Europa respira novamente após o pesadelo e pode ao menos gozar um sono mais sadio, somos nós, cuja tarefa é precisamente a vigília. os herdeiros de toda a força engendrada no combate a esse erro. Certamente significou pôr a verdade de ponta-cabeça e negar a perspectiva, a condição básica de toda vida, falar do espírito e do bem tal como fez Platão; sim, pode-se mesmo perguntar, como médico: "De onde vem essa enfermidade no mais belo rebento da Antiguidade em Platão? O malvado Sócrates o teria mesmo corrompido? Teria sido realmente Sócrates o corruptor da juventude? E teria então merecido a cicuta?" - Mas a luta contra Platão, ou, para dizê-lo de modo mais simples e para o "povo", a luta contra a pressão cristã-eclesiástica de milênios - pois cristianismo é platonismo para o "povo" - produziu na Europa uma magnífica tensão do espírito, como até então não havia na Terra: com um arco assim teso pode-se agora mirar nos alvos mais distantes. Sem dúvida o homem europeu sente essa tensão como uma miséria; e por duas vezes já se tentou em grande estilo distender o arco, a primeira com o jesuitismo, a segunda com a Ilustração democrática - a qual pôde realmente conseguir, com ajuda da liberdade de imprensa e da leitura de jornais, que o espírito não mais sentisse facilmente a si mesmo como "necessidade"! (os alemães inventaram a pólvora - todo o respeito!  - mas ficaram novamente quites: inventaram a imprensa.) Mas nós, que não somos jesuítas nem democratas, nem mesmo alemães o bastante, nós, bons europeus e espíritos livres, muito livres, nós ainda as temos, toda a necessidade do espírito e toda a tensão do seu arco! E talvez também a seta, a tarefa e, quem sabe? a meta...." 

Retirado do livro "Alem do bem e do mal", da editora companhia de bolso e do ano 2005. de F. Nietzche.

Funkeiro

http://youtu.be/dh3bleXWaCk?t=2m30s

Que doidera, viver.
Vivo
Não vivo.
Mas vivo
Como é bom
Como é ruim
Como é libertador
Como é repreensivo...

O tempo passou.
Eu vivi,
Eu vivo
A certeza da incerteza
A dor da magnitude do que somos
Com um gosto de funk.

A cada solo, cada verso
Cada vivência
Cada palavra

me coloquei ali
incerto, mas certo
de que a minha marca
ficou.

E assim sigo.


Da Democracia - O tolerante intolerante



                Viver em sociedade hoje custa caro e Freud já discorreu muito bem sobre isso. Juntar um monte de humanos em um espaço delimitado exige de nós muito esforço psíquico para que possamos viver de forma organizada e “pacífica”. A política passa a se tornar inevitável para a vida humana, uma vez que demarca o território “legal” e mais potencialmente criativo para o conflito dos diferentes modos de viver e pensar e de se resolver problemas individuais e coletivos.

                Não precisamos  voltar para a Grécia antiga nem para um resgate sobre as origens da palavra democracia. Esse termo vem sendo usado desde os gregos, passando pelas revoluções e chegando até ao século XXI como um ideal a ser ainda alcançado, um modelo perfeito de se viver em comunidade sob “um governo do povo”. Quem atua politicamente ou milita em seu cotidiano inevitavelmente cai em debates onde o plano de fundo se estrutura todo em cima de concepções a respeito de uma democracia, uma abstração que condensa uma série de valores e atitudes a serem adotadas por quem vive sob este regime como se fosse uma idéia universal e pronta, fechada e eterna. Porém já nos disse Foucault em seu texto “Nietzche, Freud e Marx”: "Os símbolos são justificações que tratam de justificar-se e não o inverso". A palavra democracia não está isenta disso e para mim inclusive é uma das mais impregnadas pela concepção política de cada um embora os demagogos insistam em tratá-la como se vestisse um véu de perfeição, neutralidade e de universalidade, sem se dar conta de que ao fazer isso também estão tentando impor democraticamente (frase paradoxal não?) sua concepção a respeito da organização política e relacional humana. Em diferentes épocas e lugares a democracia foi tratada de forma diferente e adequada a estes momentos:  desde a Grécia nada inclusiva com escravos e mulheres a até a “ditadura do proletariado” concebida por Lenin. Qual seja a época a democracia carregou porém sempre algo em comum, a qual retiro do texto “Socialismo e Democracia” de Ruy Mauro Marini: sempre carregou consigo a idéia do convencimento, a possibilidade de que eu imponha meu ponto de vista através da persuasão, da coerência, do diálogo.  O ideal democrático portanto sempre se construiu em cima do espaço do embate de idéias, a colocação sistemática e convincente de um ponto de vista sob um determinado tema em conflito com outro (ou outros), o qual é submetido a aprovação da maioria através do voto e da escolha. Um governo de maiorias, uma escolha de maiorias. Na democracia não há apenas a convivência mútua, há a necessidade real do posicionamento e da escolha para que seja efetivada de fato - ainda que as eleições florianopolitanas tenham colocado em cheque esta concepção. Ou tenham explicitado que de democrático nada tivemos em nosso regime eleitoral ilhéu.

                Dito isso podemos partir para a atualidade. Percebo hoje principalmente no campo universitário que existe uma concepção de certa forma generalizada a respeito da democracia enquanto a convivência de iguais, a aceitação de pontos de vista diferenciados.  Fica em voga a democracia como o regime da simples tolerância onde a diferença de opinião é tratada no nível da simples aceitação. Na concepção destes sujeitos “ser” democrático implica em apenas aceitar que existem opiniões diferentes e que essas opiniões todas devem ter seu espaço – estrutural e ideológico – dentro do Estado, que seria o lugar onde se organizariam as políticas nacionais. Não obstante estes sujeitos adeptos da tolerância (e não da diferença) normalmente consideram ofensivos muitos debates políticos quando realizados na arena conflituosa da política, por mais polidos e ricos que sejam; consideram a divergência de suas opiniões como algo inadmissível e pessoalmente ofensivo dentro da democracia brasileira vindo inclusive a ridicularizar ou dar as costas completas ao embate político (isto em seus termos porque ninguém na vida fica isento de posicionar-se e impor aos outros seu ponto de vista sobre algum tema), entendendo este como um absurdo ou uma afronta ditatorial dentro de um território democrático. Chamo estes sujeitos como os adeptos da tolerância, os tolerantes intolerantes. Os adeptos deste discurso reivindicam a diferença não enquanto exercício mas enquanto algo a ser simplesmente aceito ou tolerado. Em nome da democracia instituem para si e tentam colocar aos outros o quanto é errado a discordância e o quanto é correto aceitarmos pontos de vista diferenciados apenas demarcando à là Voltaire (“Não concordo com nada do que dizes mas defenderei até a morte o direito de dize-lo!”) um certo “respeito” pelo que é dito embora exista clara divergência. Os tolerantes intolerantes portanto acabam por ser os maiores agentes antidemocráticos da esfera política: primeiro pois ao instituir o ideal da tolerância em nome da harmonia (utópica) entre seres humanos negam o exercício da diferença através de sua expressão política, que é naturalmente embativa, e em segundo negam o exercício efetivamente democrático que é justamente o da decisão da maioria por alguma coisa, mas que alguma coisa uma vez que se deve apenas tolerar e evitar  embate político? Como escolher, posicionar-se, demarcar-se como sujeito no mundo se lhe é colocado exaustivamente por estas pessoas que só lhe resta aceitar opiniões diferentes? Não satisfeitos com isto, os tolerantes intolerantes são ainda desonestos consigo e com os outros pois ao se apropriarem da democracia desta forma estão adotando um ponto de vista e impondo-o as pessoas, ou seja: exercem sua opinião politicamente mas no seu discurso impedem que os outros dele discordem uma vez que isso é absurdo. Enganam a si e aos outros com uma idéia de neutralidade e tolerância dos diferentes. São os sujeitos mais intolerantes da política, os menos democráticos uma vez que menos dispostos a debaterem e submeterem as opiniões a escolha mas ao mesmo tempo os mais propensos a militarem ativamente por esse posicionamento político – tudo isso regado as maiores boas intenções e não quero soar irônico com isto. Mas não seria isso uma atitude ditatorial? Há uma contradição direta entre este discurso completamente liberal e a formação de sujeitos democráticos. A idéia da escolha e da votação em espaço comum sempre implicará no convencimento de uma maioria que impõe sob uma minoria discordante, sendo o real diferencial disto tudo o processo, a possibilidade do convencimento e da expressão individual no campo coletivo e de se acatar ativamente as decisões tomadas pelo grupo humano no qual estamos inseridos. Isto é consciência e atuação política. O posicionamento dos tolerantes intolerantes nega essa formação do sujeito por completo pois o poda de sua ação política – impondo-lhe suas idéias de conciliação e aceitação. É um joguete político interessante, muitas vezes inconsciente pois ao não haver conflito não há possibilidade de uma reflexão através do outro, mas que não é democrático uma vez que não proporciona a possibilidade do enfrentamento contrário ao discurso que se dá.

                Penso que a crise política instaurada hoje em nosso país é gravíssima, é dialeticamente causa e efeito da nossa condição histórica de subserviência e dependência enquanto nação de outros lugares. Vejo que a superação de uma posição política como a do tolerante intolerante seja fundamental e uma das vias de sairmos da situação política em que nos encontramos. Para isso há de se justamente romper com este posicionamento, sairmos de nossa zona de conforto e exercermos mais, democraticamente e respeitosamente, nos espaços legítimos pra isso, nossos posicionamentos e ideais. Eu acredito na construção de um país mais democrático mas este só poderá ser efetivado através de sujeitos em exercício.

Cabe a nós! - Reflexão sobre a obediência estudantil

     Por que ficamos tão passivos diante do que achamos “incorreto” ou absurdo? O que faz com que grupos inteiros se submetam completamente à ordem e se disponham a engolir as situações mais aversivas o possível?


     Vou falar de meu contexto, isto é: o contexto universitário. No Centro de Filosofia e Ciências Humanas estudamos as mais variadas linhas críticas que elencam de forma magistral uma reflexão a respeito da função das mais variadas instituições e normas culturais. Temos estudado na 7ª fase do curso a função da escola e como seu surgimento se dá ligado diretamente a ideia de “inserção” no mundo adulto, como uma forma de “treino” para a realidade – no nosso caso a do trabalho assalariado. Em meados do século XVIII, onde o trabalho assalariado passa a hegemonizar a mediação da relação trabalho-trabalhador, a escola começa a beber diretamente das fontes de conhecimento sobre disciplina e ordem oriundas especialmente dos exércitos e monastérios. Aos poucos, a escola passa a transformar-se em todos seus aspectos, do arquitetônico ao organizativo e estrutural, em uma instituição de disciplinarização: estipula horários para todas as atividades de seus alunos e empregados, autoriza determinadas atividades ou não, estabelece seu cronograma, realiza suas cobranças, estipula políticas de punição aos indisciplinados e desviantes, ensina e promove o respeito ao mestre/autoridade, hierarquiza seus alunos e profissionais, obriga o aluno a decorar seu hino, etc... Em suma, transforma a educação dos jovens em uma ação preparatória e continuada para o que Foucault denomina de “docilidade”: através de suas rotinas e regras estimula e potencializa a absorção da disciplina e da norma nos corpos dos sujeitos; introjeta neles toda uma totalidade de ideias e valores que servem para a geração de subserviência e passividade diante da ordem e suas várias formas – dos professores ao próprio Estado. Acredito eu que no sistema universitário não se passa diferente, ainda que com seus discursos se pretenda superar tais condições ao se pretender mudar a sociedade. Vejamos.

    Hoje, jovens adultos, ingressamos na universidade. Aqui, diz-se por aí, é o lugar do mais alto conhecimento, da autonomia, da crítica e da liberdade de se pensar. Um lugar onde estamos cada um por mérito e por si e cabe a nós a responsabilidade de nosso futuro profissional e de nossas atitudes perante nossas obrigações (veja só, de tal forma podemos até ir ao banheiro sem pedir autorização!). É aqui, neste lugar quase que sagrado, que aprendemos a quebrar oportunamente com o senso comum para passarmos a entrar na produção e na reflexão sistemática que extrapola as aparência e começa a investigar as essências/causas dos fenômenos dentro de suas minúcias e sua complexidade. Neste contexto acabamos por estudar as instituições, as relações de poder e as formas de controle social e individual. Mas, ainda que com o acesso a este tipo de conhecimento, o que faz com que diante de seminários mecanizados claramente inúteis e sem sentido; aulas que beiram a insignificância para quase turmas inteiras seja pelo seu não-vínculo com qualquer vivência real do sujeito ou pela didática horrenda advinda de formas pedagógicas e avaliativas contemporâneas do período neolítico; enfim, o que faz com que turmas inteiras de jovens dispostos e estudiosos de nível superior, críticos ávidos da pedagogia, da institucionalização, do sistema e da racionalidade se submetam de forma excepcional – e até mais obedientes e dóceis que uma criança indefesa – a essa situação altamente contraditória com seus estudos? O que leva a conivência diante dessa ordem, ainda que profundamente insatisfeitos? Não obstante essa (já grande) contradição prática, esses estudiosos e críticos da sociedade mesmo detendo todo este arcabouço teórico ao submeterem-se ao que lhes é imposto acabam por outro lado, pela aceitação, caíndo em outra contradição que é posteriormente reproduzir estas formas de dominação em seu ambiente de trabalho. Como alerta Tragtenberg¹ estes são os futuros “colarinhos brancos” que rumo às usinas, escritórios, ONG's e dependências ministeriais assumem o cargo de gestores e fiscalizadores da ordem, seja pela burocracia ou pelo assistencialismo paternalista (muitas vezes quase que como forma de extravio de uma certa culpa por ter dinheiro ou oportunidades na vida). Tornam-se agentes diretos da reprodução e instauração disciplinar e normativa. Nada mais conivente e interessante ao então sistema amplamente criticado.
     
    Surge então a pergunta: para que está servindo nosso conhecimento “crítico” afinal, senão para um fetiche pessoal ou a clássica e pomposa masturbação academicista? De que adianta saber se não há intenção ou não há interesse em de fato aplicá-lo para mudar as situações que contribuem para que o sistema mantenha-se em seu lugar ? – situações essas as quais conhecemos bem as origens, as formas, função, mecanismos e especificidades. Sobre isso já nos disse o “comedor de crianças” Karl Marx quando atentou em suas “Teses sobre Feuerbach”: “Os filósofos dedicaram-se somente a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é transformá-lo”; e igualmente preciso foi Freud quando ao trabalhar o psiquismo humano e a dinâmica inconsciente atentou a facilidade que temos de observar nossos próprios problemas e negatividades nos outros (os analistas de plantão prontamente irão rir ao ler isso) como forma de alívio psíquico, o que nem sempre acarreta em mudanças. Acaba por ser preferível lavar nossas mãos através de vias fáceis e ilusórias do que fazer o enfrentamento profundo necessário para a superação dos problemas que vivemos e sentimos. Há de ser assim? Será este então nosso papel? Repito aqui a astúcia argumentativa de Álvaro Vieira Pinto na “Questão da Universidade”: a universidade de tal forma acaba por, na verdade, cumprir bem sua função real: a de acabar por ser um instrumento de ordenação e não modificação social. Trabalha de forma a não sermos educados para agir e mudar a ordem e tão pouco passamos a nos interessar por compreendê-la em sua minuciosidade e profundidade, uma vez que isso a nada nos serve senão muito mais a angústia e insatisfação pessoal diante da realidade. Melhor esquecer ou atenuar!


     Mas o que se pode fazer para mudar tal situação? Como pode a universidade cumprir aquilo a que outrora foi idealizada a ser e passar a promover e educar sujeitos dispostos à transformação social de sua nação – tal qual como ela burocraticamente se propõe com seu tripé mágico (ensino-pesquisa-extensão)? Diante da cultura e da política da disciplina a palavra de ordem acaba sempre sendo o medo. O receio e a ansiedade diante do ímpeto transformador são menos fruto de uma “deficiência” neuroquímica ou cerebral de cada um mas sim resultantes de todo um processo de construção da autoridade do mandante e da mediocridade do sujeito quando em conflito direto com a ordem vigente. Não há nunca setor mais capaz e mais disposto para pensar uma alternativa ao opressor do que o próprio oprimido, quando este não se curvou de vez a introjetar a opressão. No caso da escola e da universidade trata-se da juventude estudantil. Não o estudante enquanto sujeito em ações isoladas de resistência (que são também imprescindíveis) mas enquanto coletividade, que se identifica com os vetos ao livre pensar e ao novo e se põe a agir conjuntamente na superação dos mais variados mecanismos disciplinadores e dispositivos da ordem. Resgato novamente Freud: lembremos que para que o Pai da horda primeva fosse por vez morto, e acabasse com seu reinado individual e restringente para todos os seus filhos, foi preciso que estes últimos se juntassem para o matar de vez (uma vez que grande) e junto disso acordassem mutuamente em coletivizar a vitória e a angústia de quebrar com um regime de opressão e segurança e ingressar em uma nova forma societária de igualdade, justiça e agora incertezas, uma vez que dependente grandemente do compromisso de cada um com a manutenção desta comunidade e da felicidade/segurança de todos. Só assim existe possibilidade da efetivação do novo.


     Penso que toda ação micropolítica tem sua validez. O movimento acontece em suas minúcias especialmente dentro das salas de aula. Mas são em espaços como os da avaliação coletiva por exemplo que ganha força e significado ainda mais amplo e geral a indignação e a sede de mudança de cada um. As provas estão aí: chegamos ao ponto de mudar nosso próprio currículo. O próximo passo qual será?

Ps: não quis fazer apologia ao assassinato de professores ou figuras de poder. (rs)

¹. Trecho do texto “Delinquência Acadêmica” de Maurício Tragtenberg.

“Vênus engana os amantes com simulacros.”


“Vênus engana os amantes com simulacros”. Podemos trocar “Vênus” por “Afrodite”, sua representação grega. Ouvi essa frase enquanto conversava com meus amigos no bosque do CFH. O que você acha dela?

Essa frase me marcou de forma excepcional. Achei que ela, assim mesmo, isolada do texto todo original representa muita coisa e de certa forma é verdadeira. Desde tempos antigos o ser humano parece estar marcado pelas paixões que vive ao longo de sua vida e se põe a refletir sobre elas, buscando uma explicação para isso, talvez como uma forma de alento e de ilusão de controlar algo que jamais estará sob um controle pleno. Fato é porém que todos nós desde os momentos mais antigos de nossas vidas vivemos sob o jugo do amor: primeiro por nós e depois aos poucos com a capacidade de estendê-lo a objetos, vindo a amá-los como se fossemos nós mesmos.

É daí que comecei a pensar a ideia do simulacro. Na frase tal habilidade é incumbida a um terceiro, uma Deusa do amor, quando na verdade se trata de algo realizado por nós próprios. A metáfora porém é válida: a paixão é essa relação com um simulacro. Apaixonados, envolvemos a nós mesmos em uma simulação, um ideal, uma fantasia de perfeição, harmonia e excepcionalidade. É inconcebível nos darmos conta de que na verdade se trata de um ser humano como qualquer outro, com seus valores, crenças, qualidades e defeitos. Mas não! Envolvemos nosso objeto amado com esta capa de amor e tornamos ele uma perfeição, uma admiração, uma beleza sem igual e incomparável. Não há nada mais delirante do que estar apaixonado – e não estou aqui usando delírante com uma conotação negativa. Este simulacro é tão forte que no desejo intenso por ter este objeto por perto (normalmente o tempo todo) para nos dar prazer chegamos ao ponto de incorporá-lo a nós mesmos. Na impossibilidade material de haver uma fusão esse objeto amado e carregá-lo conosco nosso inconsciente age de forma perspicaz e tentar dar conta disso : adquirimos trejeitos, vocabulários, imitamos habilidades... enfim, passamos a nos tornar aquilo que estamos amando de forma que possamos carregar ele conosco o máximo possível. A imitação de alguns gestos e jeitos de nossos pais não é fruto do acaso ou da genética. Pessoalmente acho esta nossa habilidade um tanto impressionante por sua sutileza. O psiquismo humano age de tal forma que não nos damos conta dessa nossa fragilidade e necessidade de carregarmos esse amor para nos sentirmos bem, e não quero aqui parecer contrário a isto, afinal, é um grande motor para nosso desenvolvimento subjetivo e pessoal.

A outra faceta é quando esse simulacro acaba. Quando removemos, ou temos ele removido, nos vemos em situação inusitada pois tudo aquilo que passamos a carregar dentro de nós passa a ser por vezes indesejável. No desespero de nos livrarmos de um prazer que agora se torna dor nos mutilamos e nos tratamos como um lixo – confundindo que na verdade o que estamos desmerecendo é aquilo que era de outro e agora está mesclado em nós mesmos. O simulacro ao ir embora tem as mais variadas características e fins, mas deixa sempre trapos e fiapos em nós, que normalmente nos constituem e servem de material para que esse movimento continue ao longo de nossas vidas.

Não há nada mais humano que este movimento. Nada para mim representa melhor nossa condição do que nosso comportamento quando envolvidos pelo amor em uma saga pessoal de prazer, fantasia e dor. Peço a ti então Vênus: não nos abandone jamais! E nos envolva em mais e mais simulacros, dos mais variados tipos, para que possamos desfrutar de muito de nossa vida que a racionalidade cotidiana e capitalista por vezes impede e nos afasta cada vez mais, fazendo com que essa busca pela perfeição deixe de ser feita na relação humana e passe a ser buscada e reduzida a relação com mercadorias e coisas.

Trecho original do livro "História da Eternidade" de Jorge Luís Borges:

"Como o sequioso que no sonho queria beber, e esgota formas de água que não se sacia e morre abrasado pela sede no meio de um rio: assim Vénus engana os amantes com simulacros, e a visão de um corpo não lhes dá fartura, e nada podem soltar ou guardar, embora as mãos indecisas e mútuas percorram todo o corpo. Por fim, quando nos corpos há presságio de venturas e Vénus está a ponto de semear os campos da mulher, os amantes apertam-se com ansiedade, dente amoroso contra dente; absolutamente em vão, dado que não chegam a perder-se no outro nem a ser um mesmo ser." 

Devaneio sobre arte urbana


Ultimamente tenho me aproximando de forma mais íntima do universo que intitulamos “arte”. Vez ou outra decido por abrir um ou outro livro de poesia e ler uma ou duas das obras ali contidas e elas suscitam em mim os pensamentos mais diversos. Hoje não foi diferente, comecei a pensar a respeito da arte urbana.

Antes de mais nada, é evidente que a arte é o que é pois significa algo para toda a humanidade. Não se resume apenas a uma atividade. Ela encerra e articula em si mesma uma série de conteúdos individuais, coletivos, sociais (e portanto históricos), econômicos, culturais, etc... Além disso, a arte em sí é prazer em qualquer forma que adote. Não são poucos os motivos para apelarmos a ela vez ou outra. É o negócio perfeito para nós mesmos. Isso pra quem a realiza, mas ela extrapola esses limites e chega também a aquele que de alguma forma a contempla. Para o contemplador da arte, há também um prazer envolvido, mesclado com os mais diversos sentimentos. O fato é que paramos para olhar, pensar e sentir quando é possível. De onde vem esse “mistério”? Quando um ser humano opta por realizar algum tipo de arte ele está expressando ali algo além do ato ou de uma mensagem específica, está também realizando seus próprios desejos e alcançando a superação de suas próprias frustrações na medida em que as expressa em uma nova forma que ultrapassa os limites da racionalidade. No campo artístico podemos expressar as ideias mais dificultosas e os pensamentos mais íntimos sem todos os bloqueios racionais de uma linguagem estrutural ou as repressões momentâneas que a razão implica ao ser evocada. Existe uma permissividade (e dependendo da situação incentivo) para a expressão artística que aliada a esse “boicote” à racionalidade possibilita ser uma via muito útil de escoamento pulsional do sujeito. Não obstante, a expressão artística não burla a racionalidade exclusivamente daquele que a produz, mas também daquele que a contempla, de forma que neste sujeito também há uma economia de esforços racionais e de superação dos bloqueios que essa implica, poupando ele de ter de realizar qualquer grande raciocínio para expressar seus sentimentos a respeito da vida ou de temas/objetos específicos alí tratados, abrindo vias de expressão e alívio pulsional para esses desejos ou vontades interiores que de alguma forma são impedidos ou carecem de material ou possibilidade de se realizarem no cotidiano através, por exemplo, da fala.

Com isso em mente podemos adentrar no tema da arte urbana. Não é de hoje que a realidade é dificultosa de ser percebida em sua forma totalizante. A enorme e caótica sobreposição das mais diversificadas especificidades, todas em uma grande trama de relações não é nada fácil de ser concebida e exige esforços que vão além de um indivíduo, necessitando de tempo e elaboração contínuas para que possam ser compreendidas dentro de todo o sistema. Ainda assim, viver na cidade brasileira dentro do subdesenvolvimento implica nos mais diversos sentimentos e significações que por mais íntimas e específicas que sejam carregam sempre vestígios de um todo disposto a ser descoberto por uma reflexão mais minuciosa e sistemática. O simples fato de existir nesse contexto já nos deixa impregnados e de frente com toda série de contradições que ele carrega mas estas ficam muito mais evidenciadas para aqueles setores da população brasileira que estão dentro da categoria de “marginalizados” ou “oprimidos”. Os setores sociais que enfrentam cotidianamente a grande contradição de existir com tão pouco sabendo que existe “tão muito”, somada aos fatos práticos que distanciam cada vez mais o sujeito do sonho de uma vida minimamente digna colocam de uma forma muito mais crua e direta o que significa viver no subdesenvolvimento. Por mais que as estatísticas provenientes de nossos saudosos departamentos de ensino superior e os noticiários da rede televisiva hegemônica os tratem simplesmente como números o fato é que são todos seres humanos que tem um sentimento e uma opinião a respeito de tudo isso que vivem e sentem na pele. A totalidade do problema porém, como falei anteriormente, não se mostra facilmente e muitas vezes estas pessoas carecem dos métodos para seu entendimento organizado, da mesma forma que o intelectual de classe média carece de uma vivência prática que demonstre as condições da maioria do povo brasileiro – e estes, ainda assim, mesmo com força, nem sempre conseguem conceber e expressar sua indignação e sofrimento com a situação. O fato de estas pessoas estarem expostas frequentemente ao desconforto e a dor que é existir dentro da pobreza e do endividamento as deixa muito mais sensibilizadas com as contradições de nosso país e culmina no belo movimento da arte urbana.

A arte urbana proveniente dos setores marginalizados consegue ser a via de expressão que rompe com os limites não apenas psiquicos mas também geográficos e socioeconômicos que separam os cidadães das cidades brasileiras. Por ser advinda quase que puramente do sentimento de um sujeito que vivencia a opressão e a exclusão ela consegue traduzir este sentimento e consequentemente levar em seus simbolismos as contradições vivenciadas por estas pessoas, que com esse instrumento não apelam para grandes categorias e conceitos mas sim as emoções e o simbolismo para explicar e extravasar aquilo que vivem e sentem em seu cotidiano. A grande frequência com que são expostas as contradições da vida urbana possibilita que estas estejam muito bem enraizadas na maior parte destas obras, que as carregam direto do ser para a arte. Da mesma forma que o artista urbano coloca essas contradições na forma de arte, aquele que contempla esta arte vê ali de forma mais facilitada uma explicação ou sentido para aquilo que sente e percebe em seu cotidiano: seja na forma de concordância ou em uma total forma de desprezo pela estética o fato é que aquilo ali expressa muito do que se quer dizer ou do que se pensa a respeito da frustração que é viver na cidade mas não tem espaço para ser expresso ou explicado. A vida suburbana sai de seu isolamento e passa a ocupar espaço na cidade e na mente daqueles que se encontram com ela. Não é a toa que ela é uma contradição (um incômodo, um dedinho numa ferida): ela carrega em si toda uma soma do que significa viver na urbanização brasileira.

Esta arte portanto é imprescindível (por mais que os higienistas discordem) para que consigamos superar a atual condição desgraçosa em que se encontram as pessoas que vivem nas cidades de nosso país. Elas auxiliam a todos nós a nos esclarecermos a respeito da grande loucura em que vivemos mas nos recusamos a (ou não conseguimos) refletir. Ela carrega de uma forma acessível e disparadora muitos dos problemas que nos deparamos mas não sabemos explicar ou não temos condições de conceber. Ela abre espaço para enxergarmos de forma mais ampla aquilo que nos cerca no cotidiano. Não a toa, aqueles que não visualizam quase nada das dificuldades nacionais (normalmente os mais abastados que se encontram longe de tudo isso) se sentem muito pouco ou nada representados pelas transgressões que a arte urbana implica e expressa, normalmente desprezando-a ou fazendo o possível para que cesse. Os mais oportunos a transformam simplesmente em uma mercadoria para ser consumida, afastando-a de suas origens nas contradições sociais e aproximando-a do mercado (algo que não estabelece nada senão uma relação utilitária com as misérias urbanas nacionais). Prestemos atenção nos muros e nos versos provenientes destes brasileiros e brasileiras. Eles carregam muito daquilo que os intelectuais almejam ver e sentir e o que o cidadão comum vive mas não consegue explicar – mas através do sentimento gerado passa a compreender e sensibilizar-se.

Pensando com Brecht

Nada mais terapêutico do que identificar-se na arte:

Acabou a peça
Acabou a peça. Cometeu-se o espetáculo. Lentamente
Esvazia-se o teatro, um intestino relaxado. Nos camarins
Os ágeis vendedores de mímica improvisada e retórica
rançosa
Lavam o suor e a maquiagem. Finalmente
Apagam-se as luzes que puseram à vista o triste trabalho, e
Deixam na penumbra o belo vazio do palco maltratado.
Na platéia sem espectadores, ainda com leves aromas
Senta-se o pobre autor de peças, e insaciado procura
Lembrar-se.

Bertold Brecht

Após a leitura, eu me pergunto: Até quando será insaciável esse movimento de lembrar-se, celebrar a peça passada e escrever uma nova, apenas para - novamente- lembrar-se?

Meu consolo está em saber que nossa própria dinâmica mental incorpora tal funcionamento e portanto não há nada mais humano que isso.

Sonha(dor)

Incomodado, acordei
Será que queria?
Mais um sonho eu tive.
Não sei se motivo de tristeza ou de alegria

Enxaguei o rosto
Pensei: mas sonhei com isso de novo?
Essa repetição
representa um prazer ou um estorvo?

Lavei a louça.
Indaguei: Mas será preciso ser tão dicotômico?
Pode ser as duas coisas!
Meu sentimento não se resume a nem um nem outro

Fui ao centro.
Descoberta: Acho que sei do que se trata!
É um desejo que vem
Mas a censura sempre mata!

Voltei de ônibus
Uma luz: Acho que sei como resolver o dilema
Basta realizar isso que me surge
E adeus ao problema

Escovei os dentes
A razão berra: Estou louco, isso é fora de cogitação!
concretizar esse dilema
Ah, mas não sairá da imaginação!

Deito na cama.
Penso por fim: acho que sei porque evito realizá-lo
Não tenho certeza se é pela dor
Ou pelo prazer de mantê-lo ao sonhá-lo

Prazer e o simbólico: simples reflexão sobre os chistes e a arte/dança



    Recentemente finalizei a leitura do livro “Os Chistes e sua relação com o inconsciente”, de Sigmund Freud. Devo dizer que a leitura deste livro representou para mim mais um grande acordo e aproximação com esta teoria, especialmente por representar aquilo que no campo psicanalítico mais me chama atenção: o significado que damos as coisas. Longe de mim fazer o fichamento do livro nesta postagem. A intenção está bem longe de ser isso, queria apenas fazer algumas divagações sobre o que este livro suscitou em mim.

    Primeiro o fato consagrado: a busca pelo prazer e a evitação do desprazer. Estamos sempre buscando dar vazão para as pulsões, de preferência da forma mais rápida e imediata o possível. Queremos sempre concretizar nosso desejo e nos livrarmos o máximo possível daquilo que nos causa qualquer tipo de desconforto ou insatisfação. Se parar para pensar, acredito que muitos dos leitores concordariam mas fariam o seguinte adendo: “Está correto. Mas hoje não somos selvagens, não sairei por aí fazendo o que eu quero pois é errado”. De fato somos muito “avançados” e para que possamos viver de forma coletiva pactuamos uma série de contratos sociais que em parte dão conta de segurar toda a impulsividade e violência contida em nossas vontades mais primitivas, de tal forma que chega a ser um espanto nos imaginarmos vivendo juntos se não déssemos conta de segurá-las. Ainda assim, por mais que estejamos devidamente domesticados a viver de forma minimamente “civilizada”, não significa que ao segurar todos nossas vontades mais íntimas estamos nos livrando delas. Bem, de fato nos livramos delas pelo menos no plano consciente. Mas aquilo que foge de nossa consciência não o faz ao acaso e também não deixa necessariamente de existir. Aquilo que damos conta de “nos livrar”, inclusive de formas muito sutis e até mesmo inconscientes acha seu lugar no plano do Inconsciente. Neste plano estas pulsões podem existir, refugiadas de qualquer limite que lhes é imposto aguardando a forma mais oportuna de aparecerem e garantir que sejam extravasados da melhor forma possível. Recordo tudo isso apenas para atentar o quão astuciosa é a forma de funcionamento do psiquismo humano, especialmente do inconsciente, a ponto de enganar a nós mesmos a respeito do que queremos mas nos direcionando ao cumprimento de tais vontades das mais diversificadas formas, supostamente nada relacionadas ao que de fato gostaríamos de fazer ou extravasar.
Entramos então no plano do simbolismo. Tão astuciosa é essa forma de realizarmos nossas vontades que encontra através de algo tão cotidiano como a fala formas extremamente elaboradas de dar vazão as pulsões mais sexuais ou agressivas existentes. Astuciosa de tal forma que apropria-se das mais inocentes ou absurdas ligações de palavras e na formação delas realiza uma frase que expressa em poucas palavras aquilo que gostaríamos de dizer ou vivenciar, isto quando não o faz através de uma simples palavra que carrega em si todo material inconsciente que deseja aparecer e que nos enche de satisfação quando proferida. No caso do livro lido, Freud trata dos chistes, jogos de palavras que em determinados contextos sociais dão conta da vazão pulsional. Quando fazemos piadas, alusões, replicamos com absurdos ou até sentenças sem nenhum sentido e temos de volta por parte do outro uma reação como a explosão de risadas temos então um chiste. O chiste é uma forma socialmente aceitável de darmos vazão a nossos desejos (isto, é claro, depende também do contexto cultural, histórico e até mesmo político, um chiste que trata da religião por exemplo pode ser ofensivo a religiosos e não fazê-los rir). Não apenas é uma forma de vazão, como também uma forma altamente econômica e inteligível, de forma que em poucas sentenças expressa coisas que (em tese) necessitariam de uma longa linha de raciocínio muitas vezes custosa e que leva a desistência de sua expressão. O prazer do chiste consiste portanto destas duas coisas: a primeira é que o sujeito que o realiza através dele burla bloqueios sociais e individuais e permite que se expresse algo que de outra forma talvez fosse dificultoso, vergonhoso ou horrível de ser dito/feito e a segunda é que consegue desarmar qualquer grande elaboração racional sobre o tema, expressando em muito pouco, através até mesmo de um nonsense, todo conteúdo que desejávamos nos livrar e que se fosse seguir as vias da racionalidade ficaria impregnado pela mesma vindo inclusive a perder seu caráter de riso. Porém, isto caracteriza o chiste pela via única de quem o expressa e tenho que resgatar aqui melhor o fator do riso. Quem expressa o chiste normalmente não ri e inclusive a ausência de uma reação por parte de quem o diz se faz necessária para que de fato o que foi dito seja um chiste e desencadeie em risadas. Para que o chiste se complete é necessário que existam mais dois elementos na relação: o segundo, o ouvinte, que vai dar risadas e um terceiro que serve como um bode expiatório, como o alvo do chiste em questão e que não precisa necessariamente ser uma pessoa física ou uma presença no momento podendo ser representado simbolicamente por via da fala, da mesma forma que levando em conta a realidade virtual de hoje, quem escuta ou vê o chiste também não precisa estar presente de carne e osso, ainda que precise expressar alguma resposta. Mas voltando: por que o ouvinte dá risadas descontroladas de um chiste? O chiste como falado anteriormente é uma forma astuciosa de vivenciarmos nossas pulsões e ele possibilita isto através de uma esquiva destes bloqueios ao adquirir a forma de um jogo de palavras expresso de uma forma em um determinado contexto. Pois bem, quando ouvimos este jogo de palavras e logo caímos na risada tal fenômeno acontece pois ao ouvirmos esta “malandragem” do chiste de outra pessoa tem ela sob nós o mesmo efeito: gozamos pela vazão de pulsões que por algum motivo estavam inviabilizadas por algum estanque ou bloqueio e que agora, através desta “malandragem”, veem a oportunidade de vazarem, e obviamente o fazem pois de tal forma age o inconsciente. Não pensamos sobre esta “malandragem”, primeiro caímos na risada e então o autor do chiste também fica autorizado a rir-se e completa de vez o gozo que intencionava. A rapidez com que formulamos um chiste ou que rimos apenas conota o caráter inconsciente deste processo que visa justamente esquivar-se da racionalidade por um breve momento e abrir brecha para que saiam essas pulsões, de tal forma que um chiste que é repetido em sequencia ou é vítima da racionalidade perde sua graça. Da mesma forma sempre que lembramos e vemos a oportunidade de falar um chiste que criamos ou que ouvimos o fazemos, para que outra pessoa ao dar risadas permita esse gozo completo a mim também, pois dele necessito e se o fizer de forma antecipada corro o risco de roubar o caráter engraçado do próprio chiste e consequentemente a risada do outro.
    Vejo este fenômeno como algo surpreendente. Adquirimos a capacidade de gozar pela nossa própria fala e sempre através de um outro. Tal forma elevada e complexa de satisfação não me surpreende de existir pois só existe devido os intensos bloqueios sociais e culturais contemporâneos que forçam o inconsciente a expressar-se dessa forma (e de forma alguma isso é uma espécie de elogio pois sabemos também os males que essa sociedade também traz).

    O que fico refletindo posteriormente é uma espécie de “transposição” da nuclearidade deste processo simbólico para outras ações. A racionalidade em excesso de fato não dá conta da expressão de nossas pulsões. Por vezes, tende justamente a dificultá-la e por ser o campo de todas as repressões repassa estas ao que gostaríamos que fosse expresso ou vivenciado, sendo além de um processo custoso e cansativo uma transfiguração que não nos satisfaz completamente no final e que tende a nos desviar completamente ou em parte da intencionalidade que tínhamos. Passamos então a outras formas de gozar que realizam esse mesmo trabalho: uma esquiva da racionalidade e uma economia na forma de expressão, reduzindo a coisas “simples” (mas obviamente ao mesmo tempo complexas) a complexidade pulsional e sua diretividade mas sem necessariamente deixar de escoá-la por completo. Refiro-me por exemplo aos sonhos mas também ao processo sublimatório, como a dança ou a arte no geral. A utilização metafórica, a expressão corporal intensa, por gestos ou símbolos ausentes de uma linguagem racionalizada e formal que dão conta de sintetizar e expressar de forma muito mais satisfatória nossos desejos íntimos, sem rompermos também qualquer bloqueio social ou cultural colocado para nós: um gozo inaceitável de forma aceitável – a fórmula perfeita para a civilização moralizada. Pegando o exemplo da dança: quando observo a expressão corporal de um outro ou outros e consigo sentir prazer e a intensidade disso (embora muitas vezes não consigamos dizer de cara o “porquê” e não à toa propositalmente evitamos dar sentido a isto no momento pois arriscaríamos cessar esse prazer), não estou vivenciando nada mais do que algo semelhante ao que ocorre nos chistes: uma possibilidade de escape pulsional individual, dotado de seu sentido único mas que encontra naquela situação oportunidade para ser consumado de alguma forma, não sem deixar seu rastro emotivo e prazeroso. Não é a toa que nos vemos desejosos de estar em ou visualizar peças ou apresentações para vivenciarmos essa experiência “catártica”, especialmente em momentos onde estamos assolados por sentimentos que nos causam desconforto.

    A minha conclusão é contemplativa da riqueza desta linha teórica. Ela evidencia para mim a fragilidade e a riqueza da existência humana, a simplicidade e a complexidade de nossos desejos e as metamorfoses que eles sofrem, uma concepção que é certamente dialética e se sustenta nos conflitos internos e externos do sujeito. No campo objetivo ela abre escopo para que eu possa pensar os efeitos dos bloqueios criados pela humanidade na psique, suas decorrências e como determinam muito da existência humana, podendo desta forma pensar maneiras não apenas da resolução individual de seus mais variados efeitos no sujeito mas fazer parte da criação de mudanças na forma cultural e política que nos organizamos, tendo muito mais ferramentas para uma análise profunda da humanidade e todo seu patrimônio cultural.

Que seja: vadias



Algo em minha mente me fez pensar a questão do sexo feminino. Além de uma série de argumentos e notícias por parte de minhas companheiras suspeito que também há um aspecto emocional e especialmente de vivência histórica que me faz enxergar o que vejo hoje. Certo estou, porém, que nada falarei de novo além da repetição do evidente. Ainda assim, assumo o risco de ser talvez um machista hipócrita sob os olhos daquelas do sexo feminino que tem muito mais capacidade de perceber as contradições de gênero de nossa sociedade: destas, peço especialmente a contribuição para que possa avançar em meus erros (e de forma propositalmente cretina peço ao seu carinho na hora de exporem esses erros de forma pedagógica).

O tema da sexualidade feminina sempre vem e tem estado à tona e, evidentemente, não é ao acaso. Não só nos meios acadêmicos formais e “informais” (entre aspas pois a informalidade destes especialmente em espaços de militância está diretamente permeada por uma série de regras e micro-tratados que não me interessa dissecar agora), especialmente nos momentos de descontração. Refiro-me com a palavra “descontração” às famosas “rodinhas masculinas”, onde nós homens nos encontramos e temos muito mais liberdade e chance (ó, a ironia!) de discutir o sexo feminino do que com as próprias mulheres. A bizarrice e a contradição disto, bem como a forma chistosa que nós homens arranjamos de lidar com isso deixo aos textos de Freud, pois não é minha intenção aprofundar e o que me interessa agora é meramente um post pseudo-filosófico e “simples”.
Estamos nós homens todo tempo a reivindicar nossa liberdade sexual. Argumentamos, com frequência, que sexo se trata de sexo. Quer dizer, não há necessariamente um envolvimento: é o prazer pelo prazer e de tal forma jamais traímos o sentimento de nossas companheiras, afinal, como nos ensinam, os sentimentos femininos estão muito além de nossa compreensão e portanto devemos prezar pela intensidade e verdade que eles carregam. Por prezarmos e “compreendermos” a “profundidade” da sexualidade feminina nos ofendemos quando vemos elas reivindicando seus corpos e seus desejos, uma vez que a mulher ama de forma “intensa” e incontrolável à razão (e se isso for verdade seria isso um problema?) e portanto, ao transar ou ter qualquer tipo de relação sexual , por mais “tênue” que seja (se é que isso é possível) está a trair quem ela “ama” e geralmente o faz de forma “burra”. Outra lógica recorrente é a de um excelente artifício masculino e social contemporâneo: o de colocar a mulher como o pilar central e responsável pela manutenção de um relacionamento, sendo a depositária de maior parte da culpa de qualquer deslize ou insucesso de uma relação (“é óbvio que a culpa da traição é exclusivamente daquela safada, mesmo eu sendo um infeliz com ela na cama ou um pé no saco controlador!”, e me questiono até que ponto é culpa de um ou de outro, dos dois ou da forma doentia que somos ensinados a lidar com isso). Não só isso como além do depositório da culpa deve ser também quem proporciona a DESculpa ao homem, por sua compreensão pelo “incontrolável” desejo masculino. Por fim não podemos esquecer de mencionar a boa e velha posse, sempre presente e sempre repassada a nós homens: as vezes travestida de orgulho e outras vezes travestida da culpa mencionada anteriormente. Fato é que o objeto mulher sempre vem à tona de forma obscura à consciência, enquanto mais uma posse/direito que os homens tem de controlar e/ou dar fins e o direcionamento que bem entenderem. Nós em imensa maioria assim agimos, como se estivéssemos dotados não só da razão como também de um acordo tratado não sei quando e não sei onde, que justifica que possamos agir assim e possamos reprimir abertamente quem se rebela ou quem questiona esta forma quase que divina de tratar com o outro.
Mas não deixa de ser uma grande contradição? Justamente pelo apego a esse amor ou ao seu respeito que se faça questão de mantê-lo e protegê-lo independente dos meios para isso. “De boas intenções o inferno está cheio”. Mas será que precisamos mesmo protegê-lo? Será que precisamos contê-lo e guardá-lo de tal forma e nos apoderarmos dos mais diversos métodos de convencimento e coerção para sustentar o absurdo da possessão do amor de outro ser? Me surpreende que preferimos optar pelo absurdo da coerção e/ou enganação da mulher que amamos do que pela colocação direta (que nós homens tanto reivindicamos) de nossos desejos e pretensões para com elas, que não se dá mais pelo oferecimento de algo mas sim pela provável cessão disso e as vezes por um acordo mascarado a respeito dos desejos de um e de outro.
Ainda assim, estamos na vantagem. Podemos abertamente burlar esse protocolo. O fazemos de formas diretas ou de formas mais sutis e a cultura machista auxilia na retirada da culpa do homem mais pio e zeloso que rompe esse acordo fiel entre ele e sua mulher. As prostitutas que nos digam e tenho certeza que não nos faltam relatos de homens que para elas desabafam. Mas ainda assim direta ou indiretamente lidar com o “incontrolável desejo masculino” não tem sido um problema para nós. De fato, é até gostoso, pois somos concebidos dos mais excelentes argumentos para contornarmos os tratos matrimoniais monogâmicos acordados entre duas pessoas e quando o fazemos corremos ainda o risco de sermos ovacionados pela malandragem e/ou pelo alto nível de masculinidade ao adotar a figura do “machão” que ao mesmo tempo que desfruta várias fêmeas e mantém em suas rédeas uma mulher que lhe deve um amor verdadeiro. Isso tudo é digno, “faz parte” da vida de um homem.

Eis então que esse homem, devidamente capitalista e portanto defensor da liberdade e da democracia depara-se por alguns instantes em sua relação ou em sua vida com expressões sexuais de sua companheira ou com a revolta do sexo feminino diante deste tipo de repressão. Depara-se com as mais diversas expressões dessa “rebelião” sejam elas físicas, artísticas ou ideológicas. Depara-se com a realidade: que todo ser humano deseja intensamente desfrutar o prazer e evitar o desprazer. Mas ao enxergar essa realidade na mulher, trata logo de desferir os mais variados golpes ,muitas vezes físicos mas especialmente aqueles que são os mais sutis mas que nos marcam profundamente: os culturais. Nesse campo sexual onde o homem floresce e se depara de forma quase honesta com o que quer, depara-se da mesma forma a mulher. Mas diferente do homem, que vê nesse campo alguma oportunidade de liberdade, vê a mulher a oportunidade de sentir-se ainda mais culpada pelos seus desejos através dos diversos mecanismos utilizados não apenas por seu companheiro mas também pelo meio social em que está inserida para segurá-la bem onde está. Aliena-se nesse processo de si mesma, seus desejos e seu corpo. Suas vontades não deixam de ser nada além de bobas fantasias e as vezes seus corpos nada mais que instrumentos para o cotidiano. Felizmente rebela-se a mulher. Tal como é o inconsciente, onde há a brecha há o escape daquilo que pulsa. Fazem (e historicamente têm feito) de formas sutis e ficam os homens sem saber e, ao saber, indi guinam-se diante da astúcia social da mulher e sua “mesquinhez mentirosa”. O fazem também, felizmente, de forma direta: queimam sutiãs, marcham pelas ruas, mostram seus corpos, assumem suas fantasias e romances. E prontamente, independente de estarem sendo livres e expressando sua opinião, o homem abre sua boca e solta logo “Vadia”, na esperança normalmente egoísta devidamente sustentada em cima do amor garantido de seu objeto, promessa cultural pactuada em algum momento.

Eu vivo nesse campo livre. Vejo como é confortável para o sexo masculino ter qualquer espécie de comportamento infiel ou sexual: certamente não será a maioria da sociedade que vai me punir por agir de tal forma. Não é ainda o ideal, mas já facilita muito o desfrute do prazer. Por que não desejar este benefício para quem se mais gosta ou para todo o próximo? Ainda estou para escutar qualquer argumento dotado de lógica ou racionalidade que justifique a liberdade sexual masculina em detrimento da feminina. Se reivindicar seu corpo, seus desejos e suas vontades de forma aberta e ampla caracteriza uma mulher vadia ouso dizer: Que sejam todas vadias! Inclusive para nosso bem!

Crianças




Ultimamente tenho parado para prestar mais atenção nas crianças. Não sei se pelo fato de fazer psicologia ou por algum prazer nostálgico, o fato é que quando as observo além da graça e do prazer em si descubro muitas coisas relacionadas a mim mesmo, ao ser humano e a sociedade.

Em uma dessas situações estava eu aguardando algumas horas pelo meu próximo ônibus em dos “magníficos” terminais integrados de Florianópolis. Enquanto estava reclamando para mim mesmo do frio que fazia em santo antônio observei uma pequena garotinha, talvez nos seus 4 ou 5 anos. Ela era loira e sorridente, caminhava e corria de forma semelhante a de um pinguim com sua mãe. Ela olhava para os horários dos ônibus, olhava para sua mãe ,recebia sua aprovação pelo olhar, e sorria. Aventurava-se alguns passos longe dela e então voltava correndo, dando risadas e gritinhos em uma forma de linguagem que ao mesmo tempo que era compreensível também era incompreensível. Resolveu então sentar-se. Em poucos minutos uma outra garotinha entrou em cena, talvez com seus 6 anos. Era morena e tinha um cabelo longo e encaracolado de dar inveja a muitas mulheres. Visivelmente tinha uma destreza mais trabalhada que a outra menininha pois corria com muita facilidade e certa graça. Sua brincadeira era correr alguns metros longe até os quadros dos horários, bater lá e voltar dando risadas e gritinhos. Por volta talvez da 10 repetição deste processo ela já tinha levantado a atenção de boa parte das pessoas que assim como eu aguardavam um ônibus para seu destino, arrancando sorrisos singelos e tímidos de muitas delas. Não demorou muito para que quando ela regressasse encontrasse em sua frente parada a garotinha menor. Ficaram uma de frente para a outra por talvez um pouco mais que 1 minuto, sem nada falar. Uma delas resolveu sorrir, a outra respondeu e em questão de pouquíssimos minutos elas estavam correndo uma atrás da outra dando gritinhos por todo o terminal. A maior corria na frente e a pequena com seus passos de pinguim, a qualquer momento sujeita a uma queda, a perseguia. A brincadeira era ir até um banco, sentar e voltar (a pequena não conseguia subir no banco mas ela tocava nele e voltava a ficar atrás da maior). As mamães estavam sentadas em um banco aparentemente tranquilas, conversando. Em pouco tempo a alegria daqueles pequenos seres com seus corpos pulsantes de energia e felicidade contagiava boa parte dos adultos carrancudos e chateados em sua volta. As pessoas as olhavam em sua graça simples e inocente, aqui avaliando inocência como simplicidade na forma de ser.

Então primeiro olhei a mim mesmo. Além da graça que ali estava posta pela forma que as menininhas agiam percebi que o prazer que sentia não era apenas pela graça de suas atitudes. Também havia um prazer no que ver aquelas crianças agindo de forma livre e alegre significa para mim: memórias de um passado. Era evidente para mim que aquelas crianças resgatavam em mim memórias de um tempo estimado, onde supostamente era um ser mais feliz e tranquilo, sem muitas responsabilidades e relativamente livre para ser feliz sem me preocupar com nada. Essas memórias surgiram, me apeguei nelas por algum tempo revivendo um prazer anterior. Sorri sozinho quanto a isso e quando me dei conta do que fazia e decidi então observar os outros adultos que as observavam. Eles também dirigiam olhares alegres e vez ou outra desviavam seus olhos para alguma direção, alguns apresentando um olhar vago. Não teria muito medo de arriscar que talvez estivessem também passando por um pequeno momento nostálgico. O fato é que tiraram os olhos de seus relógios e revistas, do caminho por onde surgiriam os ônibus, alguns descruzaram os braços e voltaram-se por alguns instantes para a pequena bagunça no terminal. Um dos adultos arriscou-se dialogar com elas, arrancou delas algumas risadas e depois voltou para a espera de seu ônibus. Eu próprio tive vontade de correr também mas logo percebi que isso certamente pegaria mal, e aí outra coisa me veio a cabeça...

Outra ideia que estas crianças despertaram em mim foi uma pequena indignação com nossas regras sociais. Fiquei pensando a imensa facilidade que estes dois seres tiveram de virarem amigas e passarem a aproveitar o momento juntas. Isso definitivamente não é algo normal no mundo adulto. Dificilmente encontraria um desconhecido no terminal e o convidaria para qualquer tipo de atividade ou iniciaria qualquer tipo de conversa que rompesse com a bolha impessoal que criamos em espaços públicos. Bolha essa devidamente conservada por todos nós, que provavelmente também nos sentiríamos incomodados ou receosos com qualquer proposta ou ação invasiva relacionada ao nosso ser – por mais amistosas que fossem. Poderia divagar aqui as origens disso mas deixaria esse texto longo, mas apontaria de forma superficial a maneira que nossa rotina (neurótica) está institucionalizada (a ponto de ser um perigo rompê-la), a nossa própria repressão sexual devidamente ensinada e colocada como doutrina que nos impede de expressar diversos desejos e é claro a eterna sensação de medo, incerteza e desconfiança que estamos sujeitos a viver quando se trata de estranhos e as ruas.

Por fim, senti uma ponta de inveja das crianças. Enquanto estávamos todos nós adultos enrijecidos em nossos corpos tentando nos proteger do frio, dos olhares e de qualquer distração estavam lá duas crianças aproveitando seus corpos regadas a sorriso e diversão. Parei para contar como são poucos os momentos em que faço isso, menores ainda os de forma coletiva. É duro o que a civilização fez com a gente: ao mesmo tempo que algumas de suas regras se tornaram necessárias para avanços significativos na forma de existirmos e nos reproduzirmos também trouxe junto com estes avanços certos regressos e dores, as quais muitos de nós se defrontam e alguns tem dificuldades em lidar.

“Eu gosto de crianças”, conclui, como sempre. E tratei de entrar em meu ônibus afinal não queria perder mais tempo esperando um ônibus no frio.

Ensaio psicanalítico: desamparo, ansiedade e tristeza no capitalismo



     Não é de hoje que trato o mundo de forma pessimista. Talvez a materialidade que impera em meu pensamento apenas enraíze a minha ideia de que o mundo “é como é” e que nos vale, tal como dizia Freud, nos despirmos de ilusões ou fantasias a respeito da vida e aprendermos a vivê-la enquanto o caos, a incerteza e a finitude que é e se constitui, de forma consciente de nossos desejos e dores.
                                                                                                                                                                        Desta forma, para mim tem sido cada vez mais evidente que o século XXI para os brasileiros tem se constituído cada vez mais como o século do sofrimento, do desespero, da depressão e da ansiedade. Conforme consta na epidemiologia de saúde mental brasileira elaborada por Mello e Kohn em 2007, os transtornos mais diagnosticados em adultos brasileiros são: transtornos de ansiedade, fóbicos, depressivos e abuso de substâncias (principalmente álcool). Ainda que considere a forma de diagnósticos utilizada questionável são dados que nos dão um chão para pisarmos, pois nos mostra que daquela parte que busca ajuda no SUS existe uma predominância da ansiedade e tristeza no discurso, condições vinculadas a todos os transtornos colocados acima. E acredito que não nos é necessário consultar livros ou irmos muito além para constatarmos a situação. Nos basta uma noite cercado de pessoas a simples vivência e escuta cotidiana para avaliarmos como a incerteza e a tristeza estão presentes em todos espaços, não necessariamente de forma patológica mas ainda assim como condição imperante na maior parte daqueles e daquelas que lutam por sua existência nas severidades e injustiças do sistema capitalista. Tudo isto materializa-se não somente nas queixas mas também no abuso de substâncias, nos sumiços repentinos, em exposições exageradas (poderia dizer histéricas) nas redes sociais e nos desesperos periódicos que ocorrem entre as quatro paredes de apartamentos e casas, longe dos olhos dos outros. O que se coloca para mim então é o seguinte questionamento: porque devemos viver neste estado de medo? Por que a vida se constitui hoje de forma exageradamente triste ou incerta para a maioria de nós? O que torna nossas vidas tão penosas?

    Fazendo um resgate a Freud chama-me atenção duas coisas: a contradição eterna entre o indivíduo e a sociedade e também o desamparo. Primeiramente, temos o desamparo enquanto situação presente no ser humano desde seus primórdios de existência. Sendo o bebê humano uma das criaturas mais frágeis e carentes de cuidado e atenção nascemos sujeitos a dependência de outros que possam nos atender e acolher, impedindo pelo cuidado que nossa vida seja tomada por forças naturais fora de nosso controle. Porém, esta fragilidade perpetua-se em nosso íntimo psíquico, mesmo quando atingimos a idade adulta. Ainda que com corpos mais formados e adaptáveis às situações, a necessidade de segurança se mantém no homem e só pode ser suprida através da relação com o outro ou através de fantasias que consigam tornar nossa frágil existência no mundo mais tênue e agradável. Freud aponta que desta necessidade e do estado de ansiedade decorrente da sensação de ansiedade (desamparo) surge uma das maiores criações do ser humano: a religião. A religião tem como características primordiais a “Humanização” das forças da natureza que fugiam a explicação e o controle do homem (tal mecanismo de defesa tem por objetivo a aproximação e identificação com aquilo que tememos através de uma projeção), que posteriormente por estarem diretamente associadas ao modo de ser e a estética humana foram questionados enquanto ideais de segurança e poder, vindo a ser condensados numa ideia de um ente super-poderoso na forma de um grande Pai cuidador e justo, zeloso por suas criaturas e que nos oferece uma série de garantias como a vida em paz nos céus, a concretização da ilusão da imortalidade através de uma vida após a morte ou a certeza de um destino feliz. Há de se convir que tal aconchego de primeira impressão é extremamente sedutor a qualquer um de nós, de forma que os céticos rapidamente se colocam a questionar se isso seria possível. De qualquer forma, é através de Deus que o homem cria uma forma de lidar com seu estado desamparado jogando-se aos braços e certezas deste ser magnífico. Aponta Freud em seus textos que surgirá um dia em que a humanidade irá conseguir romper de vez com esta dependência de um ser fantasioso para lidar com sua condição desamparada e irá, através da ciência, percorrer um caminho mais “claro” (no caso, consciente é a palavra), que o guiará através da compreensão de sua situação frágil no mundo de forma não mais vinculada a uma fantasia mas sim através da aceitação de sua condição como ponto de partida para qualquer resolução que surja. É visível em nosso país que há uma grande massa de pessoas ainda apegadas à crenças e valores religiosos, criando algumas das situações mais espantosas frequentemente colocadas de forma crítica na mídia, especialmente as relacionadas aos dízimos e doações (paga-se o que não se tem pela proteção do Pai). Este fenômeno não acontece à toa, mas é certamente um sintoma do desamparo vivido principalmente pelos setores mais marginalizados da população.
       Em contraponto com o que Freud havia colocado a respeito da ciência, podemos também perceber que até mesmo dentro dos setores mais “aculturados” de nossa sociedade (estudiosos, filósofos e cientístas) também nos deparamos com a dúvida e a incerteza. Refiro-me a “onda pós-moderna”, que ao tratar todos aspectos da realidade como “fluidos” e de intensa “volatilidade” caem na negação eterna de tudo que surge, apostando e sustentando-se na fragilidade do saber humano, questionando-o eternamente não encontrando nem através da ciência um caminho que a humanidade poderia seguir nos rumos de sua emancipação psicológica e consciente em relação ao desamparo. O apego com afinco a essa postura, que é essencial mas assim posta é péssima, pode acabar por agravar a situação desamparada através da eterna incerteza de tudo que se cria ou se faz. Se vive no efêmero. Persiste portanto a situação desamparada, não podendo mais nos segurarmos nem mais na ciência. No que confiar? Quais as soluções para este dilema? Carpe diem? Narcisismo? Análise para o resto da vida? Viver exclusivamente do devir? Para mim, a solução vem a partir da consciência de nosso estado e situação nos colocarmos em nosso devido lugar e pensar formas, através de nosso conhecimento sobre nossa condição, buscar sua resolução. É preciso dizer aqui que não nego algo como o devir, pois certamente é fruto de uma aceitação da condição. Mas isso pode abster o ser humano de tomar o papel ativo na realização de seus desejos. Embora não acredite que se estabeleça aí uma relação causal acredito que existe uma tendência a passividade em tal postura.
De mãos dadas com o desamparo temos ainda condições sempre em diálogo com este e que acaba por aprofundar a tristeza e a insatisfação humana: as normas sociais. Criadas para tornar possível uma vida sem a barbárie trazem elas consigo uma série de limitações para nossos desejos mais íntimos. Não posso matar a quem nutro grande ódio, não posso berrar em determinados lugares por mais que eu queira, preciso defecar em locais específicos, não posso ter ou em alguns momentos sequer desejar ter contato com um outro a quem desejo, etc... São todas uma série de convenções que inicialmente se colocam para possibilitar de forma mínima nossa convivência mas que, com as vicissitudes do modo de produção passam a modificar-se e agravar cada vez mais a situação de desamparo e a insatisfação humana. Refiro-me ao individualismo exacerbado do capitalismo, que através de seus mecanismos de dominação introjeta em cada um de nós um conjunto de valores que acaba por impedir o exercício de uma coletividade e amparo. Como se dá este processo está devidamente trabalhado na obra de Marx e chama-se “fetichismo da mercadoria”, que embaça a visão do homem e o impede de ver e consequentemente ter de admitir sua dependência – que não apenas é psíquica mas também material através do trabalho, sendo este, quando exercido de forma coletivizada, condicionante também da possibilidade de se ver e aceitar a dependência e a resposta de muitos problemas em nossos semelhantes. Esta condição alienante (a do fetichismo), cada vez mais bem elaborada e evoluída, só torna a vida mais insuportável e incerta e acaba por legitimar uma outra fantasia criada para se suportar a dura existência neste sistema doentio. Faço alusão aqui a uma resposta digna do Capital ao sofrimento humano:o mito robinsoniano contemporâneo (americano) do “Self-made man”, que no ápice do individualismo e na crença em si resolve todos seus problemas pessoais e materiais sozinho, pois é forte, determinado e um exímio empreendedor em sua vida pessoal e profissional, o que nada mais é além de outra fantasia que nos impede de nos colocarmos na situação de seres conscientes dos determinantes de nossa condição de sofrimento, tal qual como deveria ser o processo de superação individual de cada um.
       A eterna contradição entre o que eu quero e o que nos é permitido leva todos a um grau de insatisfação, o que conduz o sujeito a uma revolta para com a sociedade e suas normas, de forma que passamos a quebrá-las tamanho é o sentimento insuportável de conciliá-las com minhas vontades de forma sucessiva. Sabe-se que a desigualdade social em nosso país é gritante, o que agrava o grau de revolta dos sujeitos que vivem as contradições sociais de forma violenta pois a medida que a fruição sexual mais intensa fica restrita a uma parcela menor da sociedade (sendo essas normalmente as classes que tem maior acúmulo de riquezas) aumenta também o sentimento de hostilidade para com essa injustiça da sociedade, criando as condições para que suas regras e preceitos percam seu sentido e que da parte dos oprimidos se negue de se internalizá-las. Se há uma resposta para questões como a da violência e da corrupção em países dependentes e em subdesenvolvimento certamente encontra-se nas condições alarmantes e tristes da vida agravadas pela condição capitalista. Um rompimento radical com os preceitos mais básicos estabelecidos para nossa vida em forma livre, igual e fraterna como não matar/violentar/prejudicar o outro são postos de lado pela revolta, que acha por uma solução individual e talvez infantil uma forma de lidar com o desamparo criado pela situação de insatisfação e intenso e recorrente medo de andar pelas ruas sabendo-se que a qualquer momento estas regras podem ser quebradas e fazer um sem número de vítimas, incluindo o Eu. Destaco a solução individual novamente, pois na incerteza e na descrença de tudo, na impossibilidade do estabelecimento de vínculos seguros com a “vida lá fora” resta talvez um narcicismo de certa forma selvagem e um recalque sem precedentes, senão a formação de diversos sintomas patológicos, sendo essa retração a única forma segura da maioria dos indivíduos poder lidar com suas pulsões. Um caminho que nos dá soluções mas ao mesmo tempo pode ser condicionante e agravante do problema, levando em conta suas decorrências sociais e pessoais.

      Arma-se então o palco para a tragédia da vida no século XXI: a incerteza de tudo, até mesmo de nossos acordos mais básicos, que podem ser quebrados a qualquer hora e nos coloca em uma vida de intensa ansiedade e tristeza, dominada pelo medo. Cria e nos aprofunda na situação do desamparo, nos levando as soluções mais diversificadas e negativas o possível bem como a recorrência a um sem número de fantasias sejam elas de origens mitológicas ou contemporâneas; qualquer coisa para suportar o fardo da existência.

     Isto me faz crer que o movimento criado por Freud ao redor do desamparo não teve um desfecho tal qual como queria, tornando esta condição consciente de forma massificada. Ao invés de termos caminhado nessa direção nos afundamos cada vez mais em nossas fantasias, nos impedindo de ver nossa situação. Temos ferramentas para este progresso: a análise, as diversas teorias críticas de todos os campos sociais e culturais e um olhar atento a vida cotidiana. AO invés de nos darmos pela volatilidade da vida e de que nada nos adianta fazer devemos nos esforçar sempre na compreensão deste fenômeno e sua relação com aspectos maiores da vida, visto que é visível em todos nós (sendo causador de muita dor e aflição), e a partir disto podermos elaborar como sairmos, enquanto espécie humana, desta condição lastimável em que todos nos encontramos nos mais diversos graus. E que a certeza e a segurança se mostrem em nossos horizontes, através da consciência e da retomada de nossa condição de “assassinos do pai”, divisores da culpa e compromissados, pelo reconhecimento de nosso trabalho conjunto, a criar e manter cada um a liberdade sua e do outro.


Texto dedicado aos meus queridos colegas Ana Raquel, Maria Luíza, Márcio Jibrin, Paula e Luiza. Embora possa estar equivocado ou divergente de algumas coisas, foi trabalhando com vocês que essa reflexão se tornou possível e me marcará enquanto futuro psicólogo.