Crônicas Detestáveis de Tomás IV - Ambiguidades

Aldir e Joice são um casal de um bom bairro central de uma capital. Vivem uma não tão feliz vida conjugal, que para ambos já se tornou mais uma espécie de empresa do que propriamente amor. No fundo eles sabem que são mais sócios do que amantes - aprenderam isto em uma sessão de coaching.

A rotina e a vida deste casal é interessante: acordam pela manhã e quando começam a tomar seu café sempre escutam uma vizinha da frente brigando com sua filha. Suzana (a vizinha da frente) berra muito alto com a filha e a desmoraliza das mais variadas formas. Ela também bate tão forte na criança que dá pra escutar os tapas, os berros e os choros da filha, que ecoam pelo prédio e por parte da vizinhança. Já virou rotina para eles assim como o convite para matear com Suzana nos dias de descanso e de sol.

Já no almoço eles escutam as brigas de Érico e Ana. Parecia brincadeira, mas era só colocar o feijão na boca que se escutavam as agressões e começava a pancadaria: ambos se agrediam muito, mas quem aparecia roxa era sempre Ana. Escutavam seus choros e lamentos e uma vez até ouviram Érico ameaçar ela com um revolver. Aldir e Joice se incomodam um pouco com essa situação e quando saem para almoçar com eles no domingo tentam não falar sobre isso e focar em coisas positivas (outra dica que eles leram em um livro sobre auto ajuda e empreendedorismo), pois acreditam que dessa forma podem tornar Ana mais feliz.

Quando chega a janta, Joice se retira um pouco para terminar coisas do trabalho e Aldir assume a cozinha, pois tem tentado desconstruir um pouco seu machismo. Enquanto ele prepara a janta é comum escutar Filomena com sua fala enrolada berrando com sua doméstica, a dona Rutinei. Ela chama Rutinei de preta incompetente que só quebra as coisas dela. Ela bate a porta e segue resmungando sozinha. Aldir fica meio chateado, mas entende a situação: Filomena tem um probleminha de ficar agressiva quando bebe e a pobre Rutinei, que já é idosa, de fato deixa escapar uma coisa ou outra da mão. "Tudo certo"- pensa ele.

No fim do dia eles gostam de ir para a sacada fumar e olhar o movimento. Eis que então observam um sujeito encapuzado pichando as paredes da rua em pleno início de madrugada. Joice arregala os olhos e berra da sacada: -"OLHA ESTE VAGABUNDO! VAGABUNDO! VAGABUNDOO!". Aldir também complementa: "SEU FILHO DA PUTA! VAI TRABALHAR VERME!". Assim que termina o berro ele começa a descer pela escadaria enquanto o pichador já era apanhado na rua por Érico. Somam-se na volta do jovem pichador todos os moradores, com exceção de Joice e Suzana que berram todo o tipo de impropério para o rapaz e sugerem que ele seja amarrado. Assim que chega em meio à muvuca, Aldir prontamente assume o papel de uma espécie de mestre de cerimônias e começa a interrogar o rapaz, lançando perguntas e olhando para a pequena massa ao seu redor, que aprova cada uma das perversas perguntas que deixam o jovem de olhos arregalados. Algumas pessoas sugerem espancar, outras sugerem amarrar e outras já estão cuspindo nele. Depois de pensarem, decidem pelo suplício: Aldir viu na TV que a polícia faz os jovens engolirem o bico de seus sprays. Ele dá um tapa no rapaz, pinta a sua roupa e manda ele engolir a tampinha. O rapaz, chorando e humilhado, prontamente engole a tampa e é solto pelo pequeno grupo de justiceiros urbanos. Os vizinhos comemoram a justiça feita e comentam o quanto o governo não garante nada e seria bom eles se cuidarem. Ao fim, marcam uma cerveja na casa de Érico.

Aldir retorna para a cama com Joice e por ela é recebido como um herói. Sentem-se aliviados por terem ajudado a limpar um problema social e se entregam ao sono com calma e serenidade. Na parede fica a mensagem: "+ amor, por favor".

Uma crônica de garis e de engravatados

Um sonhador estava dentro do ônibus indo trabalhar. Estava consumado pelo marasmo cotidiano e o cansaço de quem vende a força de trabalho: olhos fundos, olheiras grosseiras e expressão corporal caída. Tudo indicava que assim seria também o resto de seu dia. Iria descer, trabalhar e voltar pra casa com a mesma expressão. Estava desanimado com tudo: a democracia do próprio país em xeque, a arbitrariedade do poder policial e judiciário, a precarização das políticas públicas (e consequentemente do seu trabalho), a ausência de espaços para se organizar.... Tempos difíceis para ser contra a ordem das coisas.

O ônibus fez uma curva e passou na frente do Centro Administrativo Fernando Ferrari (CAFF) de Porto Alegre. Um raio de sol entrou em seus olhos e franziu a testa. Foi abrindo eles devagar e se deparando com as sinuosas curvas do edifício que sempre sonhou em "dropar" de skate. Mas desta vez desviou o olhar das curvas do edifício para a praça que há na frente do mesmo. Não pela praça em si, mas porque ela estava tomada por pessoas vestidas de laranja: haviam muitos garis na praça. E os garis não estavam limpando a praça. Por que é chocante ver vários garis em uma praça sem estar limpando ela?  Isso chamou sua atenção. Viu que estavam dispersos e fazendo diversas coisas: havia um número grande jogando futebol suados e alguns sem camisa; haviam outros namorando apaixonadamente; alguns davam risada bebendo um refrigerante; outros fumavam; outros circulavam pela praça e por fim um grupo de mulheres parecia compenetrado em uma conversa. A praça que estava sempre vazia ou no máximo ocupada por meia dúzia de gente branca e bem arrumada passeando com seus cães agora estava ocupada por certa vida e felicidade. Quando estava perto do ponto de ônibus nosso personagem viu algo inusitado: dois dos seguranças terceirizados do CAFF atravessaram correndo a rua em direção à praça. Nosso amigo pensou o pior: iria pedir pra acabar com a "bagunça" e resolveu também descer do ônibus.

Acompanhou secretamente os seguranças que, muito animados, se aproximaram dos garis e pediram pra jogar bola. "O dia tá pedindo uma pelada!" Falou um deles. "Chega junto" Falou o gari. Nosso sonhador ficou boquiaberto. Foi então que percebeu que alguns engravatados e bem arrumados começaram a atravessar a rua também. Pressupôs que viriam fazer o controle que os seguranças não fizeram. Mas para a surpresa do sonhador, eles se aproximaram meio envergonhados de um grupo de garis que assistiam a pelada. Pediram um isqueiro meio sem jeito e iniciaram uma conversa sobre o dia, mas depois estavam se queixando do trabalho deles e a sensação que não resolve porcaria nenhuma na vida das pessoas e que era melhor estar ali. O gari então se queixou do sistema de saúde. Por acaso um dos rapazes trabalhava no setor da saúde e então começaram a explicar sobre a gestão, concordando com as críticas do Gari e envolvendo muitos ali, ele inclusive,  no exercício de ver outras possibilidades. Então surge atravessando a rua  um sujeito de cabelos grisalhos e pançudo, bem arrumado. Alguns trabalhadores do CAFF começaram a ficar acuados e isso denunciou que se tratava de algum chefe. Ele chegou suando com o sol. Olhou sério para o grupo. Olhou sério para a "bagunça" da praça. Ficou certo silêncio. Cedeu para a realidade: "Vamos ou não vamos montar um time pra jogar? Eu é que não vou ficar sozinho no gabinete". Então os que assistiam e discutiam montaram um novo time. A pelada seguiu. A esta altura do acontecimento nosso personagem já estava em um êxtase de tamanha brasilidade em tão pouco espaço de tempo. Quando o jogo acabou resolveram sentar em roda pra combinar a próxima partida. Ficou definido que toda terça de quinze em quinze dias o trabalho seria na praça e ali jogariam bola, sendo que no restante do expediente poderiam falar sobre seus trabalhos com quem mais estivesse disposto. Nosso sonhador viu que era tarde e resolveu se retirar.


E de fato se retirou. Falei que se tratava de um sonhador. Voltou para o mundo real e para a vista que tinha da janela do ônibus que já se despedia da praça. E então viu que quem estava ali eram apenas os garis em tempo de lazer, enquanto as outras pessoas transeuntes se afastavam daquele monte de laranjinhas negros ocupando um espaço que provavelmente só visitam na posição de limpadores.

O TRABALHO COM QUEM LUTA INDAGA E AMPLIA O SABER-FAZER PSICOLÓGICO - EXPERIÊNCIA COM A OCUPAÇÃO URBANA LANCEIROS NEGROS EM PORTO ALEGRE

Estou escrevendo este texto para relatar um pouco da minha experiência ao leitor, mas também para pensarmos sobre os limites da profissão Psicólogo, enquanto observada apenas como a aplicação de uma técnica neutra. Ao mesmo tempo, mostrar que só nos constituímos como "psicólogas/psicólogos necessárias/necessários" na medida em que nos deixamos também afetar pela vida, sonhos e lutas daqueles a quem prestamos algum serviço.
1- BREVE RELATO
Nosso relato começa a partir de uma demanda que surge de uma ocupação urbana da cidade de Porto Alegre. Por ter pessoas conhecidas vivendo e se organizando nessa ocupação e por ter uma graduação em Psicologia, fui tomado como referência para auxiliar a ocupação em um "problema" com um jovem que lá vivia (tipo de demanda "clássica"). Este jovem estaria adotando condutas que colocavam em risco a conquista coletiva da ocupação e ele mesmo, visto que suas atitudes desobedeciam pactos coletivos e facilitavam o descrédito civil, abrindo brechas para o despejo. Houve uma entrevista e a tentativa de aproximação dele por parte de figuras de liderança do espaço, mas o seguimento do trabalho não foi possível e o desfecho acabou sendo a saída dele da ocupação. Meses depois, novo contato com nova demanda à respeito da conduta agressiva de um jovem que mora na ocupação. Desta vez, conversando com uma colega de profissão, tivemos a ideia de fazermos um grupo com estes jovens. Fizemos a leitura de que há alguma demanda destes jovens que não estava tendo devido espaço e que um trabalho coletivo também evitaria estigmatizações de "jovens problemáticos". A ocupação também concordou com a ideia, tanto por reconhecer a necessidade deste espaço como também se tornar um espaço aberto para atividades e oficinas para a sociedade.
Estruturamos o grupo alinhados ao modelo de sociedade e organização preconizado pela ocupação. Partimos da ideia de que os espaços coletivos muitas vezes se restringiam às discussões sobre organização política e os tensionamentos decorrentes de estarem em uma ocupação urbana visada pelo Estado. Debates muito maduros e necessários para a sustentação do espaço e do coletivo. Pensamos então eu e minha colega que a construção de uma sociedade mais justa perpassa, também, pela socialização afetiva e o espaço para falamos sobre cuidado, dificuldades, medos etc. Em suma: uma outra ética que diz do apoio mútuo também na dimensão afetiva. Também partimos da noção de que a adolescência é uma mescla entre vida adulta e infância, capturada por uma construção social que torna a adolescência ambígua e que desemboca muitas vezes em uma juventude que não é levada a sério e que não recebe a atenção que demanda e nem a liberdade que necessita. A partir disso elaborarmos um grupo que tomaria para si preceitos de autogestão e que se diferenciassem dos espaços de tomada de decisão política, visando a construção e afirmação de si como sujeitos e também como grupo.
O grupo ainda está acontecendo e nele tem emergido uma juventude sonhadora e responsável, mas que se estrutura psiquicamente em torno do medo da violência, da morte, da violência policial e do despejo. São filhos e filhas de trabalhadores, famílias embrutecidas pela marginalização decorrente de uma sociedade injusta. Estão ali na luta por moradia e por uma vida digna, mas também lutando para se formarem como adultos, que possuem seus sonhos pessoais e desejos de trabalho, diversão, família, casa etc. A retórica que trata ocupações urbanas como um antro de vadios ou de pessoas sem compromisso de forma alguma se aplica ao espaço e, recortando especificamente da juventude, teremos seres humanos em plena formação que tem direitos básicos negligenciados.
2-QUANDO A ÉTICA PROFISSIONAL TRANSBORDA QUALQUER TÉCNICA
Parte do mal estar e dos conflitos destes jovens está relacionado diretamente à questão da moradia e da violência nos bairros em que viviam (mortes familiares, assassinatos, medo de serem violentados pela Polícia ou pelo tráfico etc). No nosso dispositivo grupal tentamos criar um espaço seguro de escuta, elaboração, vivência e troca afetiva, bem como de sustentação da responsabilização por tarefas relacionadas ao grupo, seu funcionamento e seu registro em um diário. Na medida em que vamos tendo o privilégio de ouvir destas pessoas seu sofrimento e seus sonhos, vamos criando uma responsabilidade diante da conjuntura política em que vivem: a possibilidade de despejo, a volta para as ruas e a violência que não desejam. É aqui que a prática psicológica sofre uma espécie de baque e se depara com certa insuficiência: não pode bastar, para quem tem compromisso com a vida e a subjetividade destas pessoas, apenas a realização de espaços como este. Quando o laço entre subjetividade/sofrimento e realidade social fica escrachado e materializado no corpo daqueles que você presta algum serviço, a prática psicológica ganha um componente que é da dimensão política. A profissão e a prática psi só ganha sentido pleno quando fica evidente que para que haja real sucesso na sua intervenção é preciso que estas pessoas mantenham seus direitos básicos e sustentem sua ocupação. Torna-se portanto, a partir de nosso código de ética e da relação com estas pessoas,um compromisso que os coordenadores do grupo estejam ao seu lado evitando seu despejo. Que assumam em algum grau a luta destas pessoas também para si.
Tenho escrito sobre a elaboração de uma psicologia tupiniquim e aqui acredito que tenhamos um exemplo de um processo que pode ser instaurado já em nossas graduações, qual seja, o de uma prática que tenha relação com o povo e suas angústias, lutas, sonhos e desejos. Se há ainda descrença no que aqui está escrito, faço a provocação de que assistam o vídeo anexado ou que se proponham a ir visitar as ocupações e movimentos sociais da região em que se habita. Permitam-se ser tocados de verdade por estes sujeitos, para além de seus estigmas mentirosos produzidos propositalmente por uma elite tacanha para favorecer degeneração e esquecimento do povo. Façam de seus settings não as salas fechadas de laboratórios, mas os espaços e as rotinas em que essas pessoas vivem. Aí, talvez, estaremos nos transformando como psicólogos e como Psicologia.
No mais, deixo link para vídeo feito com os membros da Ocupação Lanceiros negros. Com a palavra, eles: https://www.youtube.com/watch?v=Y97fhAH7Cyc

PROVOCAÇÕES NO DIA DO PSICÓLOGO


O dia 27 de Agosto é tido como o "dia do psicólogo". A escolha deste dia se deu devido ao fato de que foi em 27 de Agosto de 1962 que a profissão foi regulamentada através da lei 4.119, o que nos daria meros 54 anos de existência oficial no país. Uma profissão jovem, mas que tem ganhado espaço e tem amadurecido através de suas controversas. Ainda assim, em meio à psicólogas/psicólogos que defendem a cura gay, a pena de morte e a exploração dos trabalhadores através de leis "flexíveis" temos que olhar atentamente para nossa história e nos perguntarmos que psicologia estamos desenvolvendo pelas terras tupiniquins!

 Sei que soa pessimista ao leitor. Deveria eu estar exaltando a categoria? Poderia sim. Há coisas boas de fato. Mas tenho em mim um espírito inquieto e sei que os que partilham desse sentimento não se sentirão incomodados com as colocações. Iniciei meu texto perguntando que psicologia estamos desenvolvendo por estar tendo alguns conflitos com minha prática profissional, que envolve majoritariamente neste momento aquilo que Jessé Souza chama de "ralé brasileira", tendo eu operado diretamente com seus recortes sociais caricatos de loucos, drogados, pobres, criminosos, putas etc. constituídos majoritariamente por negros e negras.

E que conflitos seriam estes? Vejam bem: a faculdade me ensinou muitas técnicas e através de uma número insignificante de professores e um número significativo de espaços de troca entre colegas também me proporcionou uma formação crítica, alinhadas à preceitos considerados de esquerda. Supunha eu que era um tanto "desconstruído" e com uma mentalidade não hegemônica, o que nos leva muitas vezes a crer que nosso fazer é automaticamente libertador e crítico, resquícios talvez de uma vaidade acadêmica e burguesa. Mas não é bem assim! O que dispara esta escrita tem a ver com meu exercício de trabalhar em grupos em espaços institucionais e também voluntários, onde atendo estas pessoas que mencionei acima. E é na medida que tento olhar para minha prática e minha teoria, balizado por algumas insuficiências, que cheguei à conclusão de que ainda continuo sendo um psicólogo que atua em algum grau com técnicas e referenciais que foram feitas para um ideal de homem branco, "civilizado", ocidental, obediente, "do bem", contido e culto. E que a maioria das produções sobre o dispositivo grupal ainda são produzidas em cima de saberes que foram feitos por e para este ideal de homem. A maioria das coisas que aprendemos, mesmo as mais "progressistas" ainda são insuficientes e conflitivas com a realidade social do subdesenvolvimento brasileiro. Operar com essas teorias com pessoas onde a subjetivação se dá pela violência e o desamparo nos leva a, no mínimo, nos frustrarmos e vermos o quanto ainda estamos distantes de criar dispositivos que consigam nos colocar em uma relação que dialogue com a vida destes sujeitos. Em suma: ainda temos muito o que avançar na construção de uma Psicologia genuinamente brasileira.

Ainda assim, em passos lerdos, temos tido contribuições técnicas significativas. Jorge  e Emilia Broide, Neusa Santos Souza e as contribuições do Diga Aí Maré são algumas contribuições técnicas que têm me ajudado no trabalho com o povo e que demonstram um esforço de uma práxis que tenta fazer do impacto de um saber ocidentalizado e branco com a realidade social do país um motor para a criação de uma Psicologia brasileira.


Neste dia então quero comemorar aqueles da categoria que se arriscam a serem pioneiros e que estão dispostos todos os dias, diante de tantas dificuldades, a colocarem seus corpos e seu aporte teórico "na roda", dispostos a se permitrem transformar através do encontro físico e real com aqueles que a sociedade insiste até hoje em excluir e violentar. Se há um bom rumo para nós é este. E um piso salarial decente, claro... para não perder o humor.

Uma experiência de autogestão pedagógica - Coletivo Acadêmico Interdisciplinar da Saúde (CAIS)

Este é um texto que gostaria de dedicar, acima de tudo, aos estudantes e jovens. Eles conseguem, melhor do que qualquer outra categoria, se guiarem conscientemente e inconscientemente pelos preceitos libertários, revolucionários e criativos - são demasiado humanos e saudavelmente desobedientes. Este é um texto sobre um grupo de estudantes que decidiu se reunir pra estudar o que queria, já que a formação medíocre deles não dava conta de uma formação que tivesse um compromisso com as necessidades dos trabalhadores brasileiros.

Entrei para o curso de Psicologia em 2009, na Universidade Federal de Santa Catarina. Naquele momento minha cabeça estava engessada em apenas uma perspectiva de Psicologia: a clínica clássica. Foi ao longo do primeiro semestre que pude ter contato com outras perspectivas, mas uma me chamou atenção: a da psicologia dentro da saúde pública. O que me atraiu para este tipo de trabalho não foi nenhum conhecimento técnico, apenas um desejo genuíno de trabalhar com a população. Foi na medida que desenvolvia meu interesse por estudar Sistema Único de Saúde (SUS) que tive contato com uma veterana que também gostava de SUS. Na época nosso currículo não tinha nenhuma disciplina sobre o mesmo - o que o deixava a mercê do interesse particular de algum professor ensiná-lo. Ela me chamou para uma reunião que acontecia no Centro de Ciências da Saúde, pois queria que eu conhecesse outros alunos que tinham os mesmos interesses intelectuais e políticos que a gente e que se encontravam para conversar sobre isso. Não pensei duas vezes e fui.
Chegando neste espaço me deparei com estudantes de outros cursos: enfermagem, odontologia, medicina, nutrição e farmácia. Em nossas reuniões filosofávamos sobre SUS, sociedade e Brasil por um viés crítico ao capitalismo. Quanto mais conversávamos sobre isto, mais forte ficava dentro de nós a ideia de que nossa formação não dava conta disto que desejávamos. Que ela era atrasada e que seguia moldes rígidos, que impossibilitavam a formação também política dos alunos.  Nos reuníamos sempre no final da tarde, por volta das 18 horas. Não lembro de me sentir cansado dentro deste espaço! Na verdade era revigorante: ali havia uma aprendizagem significativa.

Nosso laço se dava através deste compromisso político. Aos poucos fomos nos estruturando como coletivo, organizando nossos horários de encontro, lugar e dia da semana. Nós decidíamos o que iríamos ler/assistir/conversar. Algumas vezes era um colega que organizava o espaço e trazia alguma discussão, outras vezes chamávamos pessoas de fora para ter um momento de conversa com a gente. Essa última opção era a menos utilizada, ficando a troca de saberes, práticas e afetos mais ao encargo do coletivo. Estávamos fazendo aquilo não só porque queríamos, mas porque entendíamos que este conteúdo era imprescindível em uma formação bancada com o dinheiro da população, que em sua maioria depende do SUS - e por isso precisa de profissionais qualificados e alinhados com o mesmo. O espaço era nosso e não havia hierarquia: apenas a horizontalidade estudantil. Nas reuniões dávamos conta de nosso próprio lanche e cuidado: fazíamos dinâmicas de grupo, chás, dividíamos comida e quase sempre após o espaço fazíamos algum momento de descontração que ia desde beber e dançar a até tocar com instrumentos dos Centros Acadêmicos ou Atléticas.

Dado certo acúmulo do grupo, percebemos que não nos bastava só estudar e que era necessário intervir em nossos cursos. Já que não haviam espaços mais democráticos e politicamente comprometidos com o SUS na universidade, decidimos criá-los! Realizamos debates e filmes em espaços que denominamos "círculos de saúde". Fizemos inclusive uma Jornada da Saúde, que mal teve apoio da universidade: só cedendo um auditório. Nós que fizemos os materiais de divulgação, organização do espaço, metodologia etc. Forjamos espaços políticos e educativos dentro da universidade. Eventualmente nosso coletivo cresceu, incorporando pessoas de cursos como Economia, Ciências Sociais etc.
O CAIS perdurou por algum tempo e mantivemos nossa auto formação e compromisso político. Desdobrou posteriormente em uma organização para os Centros Acadêmicos da Saúde, o que fez com que gradativamente ele perdesse seu teor auto gestionário e educativo e passasse a ter um formato mais rígido de organização e disputas políticas externas e internas. Também fortaleceu pautas de reformas curriculares nos cursos.
Por algum tempo fomos criticados por sermos acadêmicos. Bobagem. Nosso compromisso era político e tinha relação direta com os trabalhadores, o SUS e a própria universidade. Naquele espaço coordenamos nossa própria formação sem depender de professores. Pensamos nossas próprias intervenções e tentamos atrair a comunidade para dentro da universidade. Tudo o que sei sobre SUS hoje é por causa da base que tive tendo trocas diretas com meus colegas.


Quero com esse relato saudar meus antigos colegas, mas principalmente dizer ao estudante: organize-se independente da sua faculdade! Forme com seus colegas espaços de troca e de aprendizagem. Professores não são obrigatórios para aprendermos! Exerçam a autonomia e a desobediência, façam organizações paralelas e construam de fato sua própria formação e compromisso político crítico. Dêem sua cara a estes espaços e não reproduzam a mesquinharia autoritária e verticalizante como pregam ideologias empreendedoras ou pautadas na meritocracia. Vamos construir outra perspectiva de educação via uma práxis libertária, como é o verdadeiro espírito humano e das classes subalternas!

BREVE ESCRITO SOBRE VANGUARDA


O conceito de vanguarda é muito caro para toda a esquerda, seja pelo viés de sua afirmação ou seja pelo viés de criticar sua existência e/ou a operação da mobilização política utilizando-a. Eu gosto de admitir a existência de uma vanguarda, apesar de não acreditar que essa posição se sustenta por muito tempo com determinado grupo.
Estou escrevendo isto por estar vivenciando a intensa conjuntura de lutas em andamento em Porto Alegre. Só esta semana foram diversos atos, ocupações, piquetes, mobilizações e eventos voltados à reivindicação e difusão de pautas que envolvem direitos sociais: habitação, emprego, salário, educação etc... Não são poucos os trabalhadores e estudantes se mobilizando e indo para a rua - e definitivamente não se tratam de meia dúzia de arruaceiros ou vadios. É nesse imenso caldeirão de luta social que vou então em um espaço seleto de pessoas, com o intuito de organizar um movimento mais firme em torno da saúde. Neste espaço somos intelectuais e trabalhadores em sua maioria. Hoje é muito claro que o movimento em torno da saúde anda desmobilizado e, especificamente falando agora do Sul, tem uma falta de organicidade causada em parte pelo intenso aparelhamento que esta última década de governo petista realizou em suas bases sociais.
Neste espaço tentamos nos reorganizar e surgem em algumas falas a ideia de que somos ali uma vanguarda e que nossas atitudes serão de vanguarda, pois iremos reativar na população o ideario do SUS e sua história. Tive de discordar. Conheço esse vício, que normalmente é fomentado dentro de organizações políticas onde se aprende a olhar pro próprio umbigo do que ao redor. Se há uma vanguarda hoje em Porto Alegre é o movimento dos secundaristas e os das ocupações urbanas, como a Lanceiros Negros. São movimentos que nos tocam e que não estão ali necessariamente querendo ser vanguarda, mas que hoje estão articulando em torno de si mais de uma pauta e tipos diferentes de pessoas. Qualquer pessoa, movimento ou organização que preste precisa abrir mão de se ver como detentor de alto saber e olhar para os fatos, para surfar na onda levantada por esta gente e aí sim construir não só discursivamente, mas praticamente, uma unidade.
Ontem marchei com os secundas. Faziam críticas à traição da UBES. QUeria muito estar ali com mais gente, com cartazes e faixas defendendo o SUS e a reforma psiquiátrica. Pra mim, ali era um lugar necessário de estar com nossas bandeiras, bem como construindo nas escolas lugares de debate sobre saúde, SUS e sua relação intrínseca com o direito à educação. E não, isto não anula a necessidade de continuarmos nos reunindo.

BREVE CRÔNICA SOBRE O DIA DO GOLPE


Com este escrito tenho a simples pretensão de relatar como foi que passei o dia 12/05/2016. Não o faço para lermos no nosso tempo, mas para que fique jogado por aí um registro simples de como foi o dia do golpe pra um sujeito comum.

Iniciei a quinta feira trabalhando. Acordei cedo e logo fui pegar o ônibus. Na noite anterior encerrou-se, por conta do passar da hora, a sessão do senado que colocaria o ponto final no impedimento da presidenta Dilma, com a intenção de que se reiniciasse e se finalizasse a votação na quinta pela manhã. Foi estranho ver que um dia tão marcante como este estava sendo na verdade um dia comum. No ônibus estavam todos com as mesmas caras neutras, com fones de ouvido ou simplesmente imersos em si mesmos. Fazia frio e era cedo. Pela janela via as pessoas em seus carros irem trabalhar com as mesmas caras. Nas ruas operários agasalhados davam seguimentos às obras. Garis varriam as ruas. Moradores de rua bebiam ou mendigavam. Nos bares os trabalhadores tomavam seus cafés. Nas esquinas algumas pessoas agasalhadas papeavam com as mãos nos bolso. Neste trajeto não vi bandeiras nem buzinassos. Não vi nem ouvi marchas. Ninguém no ônibus comentava sobre isso. Estávamos ali, todos brasileiros, trabalhadores e ocupados. Sem se falar sobre um descarado golpe que ocorria naquele dia. Com a mesma apatia cotidiana. Logo cedo já havia sido confirmado o impedimento da presidenta e ainda assim nada. Nem risos ou lágrimas: só motores roncando e o barulho da catraca.

Neste dia iria para um município do interior realizar uma ação de educação permanente com trabalhadores da saúde. Entrando na instituição fui saudado pelos guardas, que davam risada e falavam coisas da vida. Um deles cerrou a cara quando me viu, pois não me conhecia. Avisei que iria aguardar pela equipe e ele, ainda desconfiado, disse para que eu esperasse sentado. Voltaram então para seu papo particular. Logo que entrei na sala da equipe conheci o motorista da prefeitura da cidade do interior. Era alto, magro e falava com sotaque "gringo", comum da serra. Vestia um boné e roupas simples. Ficamos esperando o resto da equipe na sala e trocamos algumas palavras, mas nada sobre a política. Na verdade, conversamos como se fosse um dia trivial. Meus colegas de equipe logo chegaram e demos início à viagem. Do começo ao fim falamos detalhadamente de memórias infantis, animais de estimação, relação com irmãos, época escolar etc. Menos ou muito pouco sobre o golpe. Pela janela do carro também via as pessoas tocando suas vidas normalmente. Ninguém com camisa do Brasil ou bandeiras vermelhas. Na verdade todos apressados e agasalhados, olhando para o chão caminhando. A viagem foi tranquila e fiquei surpreso com a forte cerração na estrada. No whatsapp vi, em um grupo de amigos, algumas piadas acontecendo com a Dilma. No meio virtual as pessoas alardeavam em primeira mão tudo. Mas na vida real não via ninguém surpreso ou se mobilizando.

Chegamos na hora do almoço. No pequeno município vi as ruas vazias. Não vi pessoas animadas ou indignadas. Mas vi bandeiras... da Itália! Em uns 5 ou 6 estabelecimentos. Nenhuma do Brasil. Nenhuma vermelha. No restaurante passava na televisão a saída e o discurso de Dilma. Ninguém, nem nós, prestava atenção. Almoçavam ali pessoas simples e alguns esfarrapados. Ninguém comentava sobre o ocorrido. Vi aqui e ali uma menção ou outra, mais à TV do que ao fato em si, mas não passou disso e em nada alterou o ânimo das pessoas presentes. Também quando realizamos a atividade com os trabalhadores em momento algum surgiu o tema. Pelo contrário: lemos literatura, fizemos poesias e houveram afetações sobre a valorização do trabalhador. Nada sobre Dilma. E com esse nada sobre Dilma prossegui o restante do dia e também na viagem de regresso. Também, novamente, não vi nada demais nas ruas. Sei que houveram nas grandes metrópoles algumas passeatas ou atos, mas nelas estavam setores governistas e/ou movimentos já organizados ou uma massa reacionária composta por dondocas que vivem da herança de seus pais, jovens adultos que nunca trabalharam e que chamam trabalhadores de vagabundos e adultos pequeno empresários ou que ganham seus 3000 reais e acham que são da elite.

E assim foi o dia que assume a presidência Michel Temer, um ficha suja comprovado, amparado por parte da população reacionária ou imbecilizada pela grande mídia, que tinha como sua principal bandeira a corrupção. E que em menos de 24 horas conseguiu extinguir ministérios como o da cultura e também a controladoria geral da união, elegendo pessoas igualmente corruptas para a maioria de seus ministérios e gabinetes contando com um silêncio sepulcral da grande mídia e dos que saíram nas ruas de verde e amarelo.


O café fica amargo.

O DIA QUE NÃO DANCEI COM A NAU DA LIBERDADE


Mental Tchê 2016. Frio. Estou pela segunda vez participando deste encontro e ao contrário do ano passado, onde Luiz Coronel, um autoritário de 1ª linha, assumia a coordenação estadual de Saúde Mental discursando abertamente contra a reforma, a conjuntura consegue ser pior!

Vivemos um golpe descarado e de 5ª categoria, com uma presidenta impedida por motivos os quais todos seus acusadores já foram acusados, se não fizeram comprovadamente coisas piores. Em parte a culpa é de um governo petista, que vendeu a alma e inclusive o SUS para governar um país. Mas para além disto, em especial na Luta Antimanicomial, fez questão de seduzir lideranças com cargos estatais e empregos, desencadeando no aparelhamento de um movimento que tem justamente em sua essência a liberdade.

E aqui estou, diante de todo este caos e de uma clara desmobilização, vendo velhos quadros da luta, petistas filiados ou de linha política, jogando em um encontro sua linha de ação que envolve retomar a fé nos "representantes do povo", estes que nas últimas semanas demonstraram claramente a decadência sem recuperação do sistema representativo que os sustenta, sejam eles de esquerda ou não. Lançam sua linha política (muitos com a maior boa vontade) em um dos espaços centrais do curto encontro, fazendo uma sucessão de falas que corroboram com sua linha de ação sem a possibilidade de que se possa criticar publicamente sua fé em uma frente parlamentar para resolver nossos problemas e "nos proteger" dos retrocessos. Um dia estas frentes já foram fundamentais e imediatas, mas hoje já perderam sentido. Fico me perguntando quem que ouviu os discursos proclamados defendendo a necessidade dela e que saiu defendendo a mesma. Ninguém. E é aqui, neste ponto, que estamos sendo aparelhados. Não estamos sendo convocados por estas pessoas para retomarmos nossa militância de base, autônoma. Não estamos sendo estimulados a retirar estes velhos quadros de seus lugares para dar espaço a uma nova geração a qual ela, e só ela, pode dar o gás e a criatividade necessários para retomar aqui que estes velhos militantes outrora fizeram muito bem, mas que hoje esqueceram para se ocuparem do Estado e dele até hoje se ocupam. Vamos retomar nossas associações, reforçar os movimentos já existentes. Vamos tomar esta luta para nós e não relegar ela aos nossos representantes!

E enquanto escutava estas falas e tinha em meu âmago estes pensamentos, eis que se encerra o espaço e entra a Nau da Liberdade. Fazem sua magnífica apresentação, sem relação nenhuma com o espaço anterior: estão apenas apresentando sua obra. Como ninguém, tocam todos e estimulam as pessoas a dançarem junto deles. Sou também convocado, mas não consigo. Não porque não gosto deles, mas porque se tornou impossível viver esta "amorosidade" depois de tamanho e descarado aparelhamento; depois de ver gente ressurgir com falas inflamadas apenas porque é Temer que está no governo e não seu candidato falas que nunca surgiam durante o governo petista que também desmontou o SUS. Saí e fui escrever este texto. E que nenhum reacionário se engane de usar este texto para deslegitimar a Nau, o Mental Tchê ou a reforma psiquiátrica, pois sei muito bem que foi com vocês que este câncer da nossa democracia chamado "governabilidade" foi gestado e pode se agravar.


Seguimos na luta e mais do que nunca precisamos deixar de contemplá-la e assumi-la firmemente em nossas vidas.

PSICOLOGIA E A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

Um dos lugares onde tenho o prazer de trabalhar, apesar do descaso governamental, é no Centro Pop. Este é um dispositivo da Assistência Social que é especializado em atender quem está em situação de rua. Foi inserido na Política Nacional de Assistência Social há pouco mais de uma década, com forte participação do movimento organizado destas pessoas. Você sabia que a Psicologia tem lugar neste espaço?
Dentre várias de nossas atribuições no Centro Pop, uma delas com certeza é a de desfazer o preconceito e uma série de falácias que se criam em relação a estes sujeitos. Se eu fosse contar as histórias que escuto destas pessoas, com certeza o leitor ficaria boquiaberto com os infinitos motivos que levaram pessoas a ficar em situação de rua - a maioria, com certeza, não condiz com o mito da "vadiagem", pois são trabalhadores! Muitas vezes por azar ou até mesmo assaltos, pessoas se encontram em situação de rua. Muitas vezes por causa do crime organizado ou até mesmo por culpa do Estado, que despeja pessoas sem casa nas ruas com o braço da polícia ou promessas vazias. Assim sendo, uma de nossas maiores contribuições certamente é a de fazer emergir a história e singularidade destas pessoas, e conjuntamente com o restante da equipe pensar vias de garantir direitos e construir projetos de vida junto com estas pessoas, baseado no que elas vislumbram e no nosso saber técnico referente às leis e a rede socioassitencial e psicossocial.
Com esta simples postagem, quero apenas mostrar aos que seguem a página um dos campos mais potentes para nossa atuação e que com certeza dialoga diretamente com uma das necessidades sociais mais gritantes do país. Sensibilize-se, escute e vamos construir junto destas pessoas tanto serviços melhores como profissionais ligados ao povo e coerentes com o que o Brasil precisa!
Para saber mais sobre este dispositivo:
Política Nacional de Assistencial Social (Ver proteção especializada):http://www.mds.gov.br/…/assistencia…/Normativas/PNAS2004.pdf
Orientações técnicas para o Centro Pop: http://www.mds.gov.br/…/assistencia_social/Cadernos/orienta…


DESABAFO CONTRA A MENTALIDADE COLONIZADA

Hoje tive feriadão. Por cada vez estar próximo de ser mais proletário do que qualquer outra coisa, dada a rotina de trabalho e merreca salarial, os feriados como este acabam sendo aqueles dias preciosos que você finalmente tem tempo pra arranjar as burocracias que a vida te exige, ja que poucas coisas funcionam depois do seu expediente de 40 horas mais o transalado em transpprte publico.
Pois bem! Hoje resolvi ir na minha agencia bancária que fica dentro do tribunal de justiça. Por viver em um país tropical eu naturalmente saí de bermuda, como qualquer pessoa faria em dias quentes e quando se sabe que se vai caminhar pelas ruas. Chegando lá prontamente sou barrado pelo segurança. Ele diz que a entrada de bermuda é proibida. Explico que nem vou circular pelo predio e que pretendo apenas ir na agência. Ele fala que é proibido e se essa fosse minha agencia eu ja deveria saber dessa regra. Fico frustrado e digo a ele um desabafo: vergonha deste país. Ele fa zum ok, ri d minha cara e debocha abertamente do meu desabafo.
Assim como eu e de forma até mais radical, o povo desse pais, que é coerente com a vida nele e anda de bermuda, é excluído todos os dias das estruturas materiais e simbólicas que sao erguidas com o próprio trabalho que realiza. Quantos são impedidos de seus direitos e circulação pelo salário, pelas roupas, pela cor ou pela jornada de trabalho abusiva?
Tristee dia em que nos tornamos mais europeus do que africanos ou indígenas. Lamento a mentalidade colonizada e saúdo os que pensam em construir um país que se faça em todos os campos e instituições de acordo com o que ele próprio necessita.

QUANDO A INTOLERÂNCIA IMPERA: A NEGAÇÃO DO ATENDIMENTO A UMA CRIANÇA POR PARTE DE UMA PEDIATRA

É possível que o leitor já tenha entrado em contato com a notícia de uma pediatra que se negou a atender a filha de uma pessoa filiada ao PT. Aqueles com bom senso certamente se indignaram ou pelo menos questionaram esta atitude. Não foi o caso do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS), algo que não nos surpreende dadas suas manifestações anteriores no mínimo preconceituosas, pra não dizer retrógradas. ¹
Quanto ao caso, penso que seja importante primeiro falarmos de um ethos que permeia o trabalho com a saúde em um país que entende ela como um direito do cidadão e depois adentrarmos na situação política do país, que ajuda a contextualizar a atitude. Iniciemos de modo simples: para trabalhar com a saúde das pessoas nosso olhar não pode ser atravessado por uma perspectiva moral.
Na nossa constituição a saúde é um direito, isto significa que quem com ela opera também opera, naturalmente, com a garantia de um direito. Se a isso somarmos que se trata de uma criança, que sequer tem a ver com as escolhas partidárias da mãe, podemos pensar no próprio Estatuto da Criança e Adolescente e vermos que há aí algo mais grave, que é a negligência com a infância. No entanto, diante de dados tão factuais como estes, há aqueles mais descabidos que acreditam que o liberalismo econômico pode a tudo ser aplicado e aplicam a lógica liberal de forma selvagem e acrítica em uma realidade que não é a da mão invisível e sim a de uma sociedade democrática constituída de direitos básicos. Estes, que acham que um profissional da saúde pode ser regido pelo próprio umbigo e as vontades particulares, e, pior ainda, que pode se dar o luxo de não se questionar o porquê que atender uma pessoa com as características X, Y ou B os incomodam, correm o sério risco de reproduzir práticas preconceituosas - imaginemos um profissional que não "se sente confortável" em atender um judeu e não vê problema nisso, na verdade sente até orgulho de "não pactuar" com judeus! Pois é.
Portanto, não há nada de louvável na atitude de uma médica que nega atendimento por uma questão política e partidária. Aos que veem algo de positivo nisso é recomendável o exercício de olhar pra si e se perguntar o que anda ficando em primeiro plano: as pessoas que confiam em nosso trabalho e de nós dependem ou opiniões pessoais tranquilamente questionáveis - como não pactuar com uma sigla partidária que por acaso um parente do paciente é filiado. Em suma: para nós, trabalhadores da saúde, acima de qualquer coisa deve estar o ser humano e suas potências, independente do lugar político, social e econômico que ocupa - e se não é possível oferecer isso a todos, precisamos sempre nos perguntar os motivos e lutar para que se modifiquem.
É igualmente importante olharmos para as mobilizações nacionais. Temos na atitude dessa médica mais que uma conduta particular questionável, mas sim um desdobramento gravíssimo das demonstrações de intolerância política para com determinadas cores ou siglas. Algo que diz do empobrecimento do debate político e sua substituição pura pelo ódio e o desgosto. Vale a pena (nos) acabarmos por um sistema falido e por políticos que estão todos, quase sem exceção, comprometidos com qualquer coisa que menos nossos interesses? O que esta criança tem a ver com os problemas do país e com as causas dos mesmos (as quais ela supõe que seja o PT, algo facilmente questionável) ?
Por fim, recomendo a todos, inclusive os que pactuam com a atitude da médica, que assistam o filme "Um Skinhead no Divã". Trata-se da história de um psiquiatra/psicanalista judeu que resolve atender um skinhead nazista. Aprendamos com a 7ª arte!
¹Vide o posicionamento deles diante da Caminhada da Loucura, onde consideravam os loucos seres incapazes de ter posição política, emiti-la e fazer sua luta por direitos. <http://www.amrigs.org.br/gerenciadorwebsit…/…/5976347947.peg>

CARTA AOS QUE ENCONTREI NOS CAPS

Caros e caras,
A universidade tem a incrível habilidade de nos transformar de estudantes em especialistas. Através de um diploma ela nos autoriza a vestir esta estranha carapuça que nos investe de uma força que nos autoriza a olhar a vocês e lhes dizer o que é bom ou ruim pra suas vidas, ou o que você é ou tem "na cabeça". Isto nos torna muitas vezes vaidosos e confiantes de que temos um leque tão vasto de leituras e ferramentas, que podemos dar respostas para praticamente todos os problemas que surgirem. Este vício nos deixa tão impregnados, que muitas vezes quando não temos a resposta tratamos de criá-la - processo que muitas vezes ignora o que vocês nos dizem. É muito fácil sermos seduzidos por nossa formação profissional e nos custa muito pouco assumirmos o posto de "doutores", vindo de forma muito cômoda a nos encerrarmos neste lugar que denuncio.
Minha formação me deu muitos livros e leituras. Dotou-me de conceitos e termos complexos. Colocou-me esta carapuça e fez eu achar que já sabia o bastante sobre saúde mental. Mas então conheci cada um de vocês! Uns mais e outros menos. E vocês me mostraram pelas falas, olhares, histórias, emoções, lágrimas e risadas, que a saúde mental não se opera só com conceitos clínicos ou diagnósticos! Eu havia lido sobre isso, mas foi só depois de encontrar com vocês que eu senti isso - e então de verdade aprendi. Aprendi que a saúde mental se faz com o vínculo e com a troca sincera. Vocês me mostraram que é possível ser um terapeuta fora de uma sala fechada. Ensinaram-me que quando saímos juntos nas ruas em uma passeata em defesa de nossos direitos ou que tocando gaita e violão, estamos fazendo saúde mental. Quando me deram a honra de me considerarem seu amigo, me mostraram que isso não é necessariamente um problema para o terapeuta, que não estraga esse lugar e que em alguns casos é muito mais relevante para vosso bem estar do que pomposas interpretações analíticas ou explicações extensas sobre as "doenças" que possuem. Quando se deram a liberdade de fazer piadas ou quando mexeram comigo de alguma forma cômica, me ajudaram a ver com mais leveza este lugar de técnico e aprender que a convivência, as risadas e as bobagens também nos aproximam e muitas vezes permitem que vocês se sintam à vontade de expor histórias e conflitos. Mostraram-me que em nada interfere, senão para o melhor, sentar com vocês para papear por uma tarde jogando xadrez ou lanchando. Mas também me mostraram nas crises e nos conflitos a necessidade da firmeza e dos contratos, e que nosso lugar também implica na responsabilidade de sermos, às vezes, "chatos" com vocês. A cada PTS revisto, me ensinaram que a saúde mental não é estática e que para que o CAPS não seja um outro manicômio, precisa ser flexível e disposto à construção conjunta. Vocês me mostraram que saúde mental se faz com humildade e uma profunda abertura a todo o material que vocês se permitem expor.
Falei tudo isto para lhes agradecer do fundo do coração. Vocês mexeram comigo de uma forma muito positiva, assim como espero ter mexido com vocês. Vocês me auxiliaram na minha formação quando me ajudaram a sair deste lugar de "formado" para adentrar no de parceiro, terapeuta e, por que não, amigo. Sentirei muitas saudades e desejo a vocês muitas felicidades.
-Luís Giorgis Dias - Residente UFRGS - 2016

COLOCAÇÕES SOBRE MEU PRIMEIRO ANO COMO PSICÓLOGO

Completei o curso de Psicologia em Agosto de 2014. Cerca de 2 meses depois retirei minha carteira de Psicólogo. Neste fim ciclo acredito que seja pertinente um escrito sobre como foi este meu primeiro ano atuando como Psicólogo, para partilhar com meus futuros colegas e já colegas de profissão um pouco do nosso fazer. Saliento também que falarei mais da experiência clínica e da riqueza desta dentro da atenção psicossocial e com as pessoas que dela dependem, mas acredito que a abrangência deste nosso fazer faz com que o que aqui escrevo possa servir para outros campos em que atuamos.

Antes de tudo, uma constatação objetiva a partilhar. Consegui sair da graduação e ingressar direto no trabalho através da aprovação em uma residência multiprofissional em saúde mental. Importante dizer que não acredito que isso represente a maioria de nossa categoria hoje. Não vejo colegas que saem da graduação e logo emendam algum tipo de emprego. Percebo que a concorrência dentro da Psicologia está grande (muitos candidatos por vaga) e que há de fato um número considerável de pessoas já formadas e ainda na labuta por um trabalho – muitas vezes ou quase sempre mal remunerado e sem recursos. Eis questões que propositalmente deixo em aberto e que merecem a atenção dos novos profissionais e de reflexões pertinentes por parte da categoria.

Dadas estas considerações, sigamos! Neste primeiro ano como profissional tive a oportunidade de trabalhar em um CAPS AD III e um CAPS II, dois dispositivos tidos hoje como centrais dentro das políticas públicas de saúde e da consolidação da reforma psiquiátrica. Afirmo-vos: a transição do mundo universitário para o trabalho com a população é problemática. Isso acontece por uma infinidade de motivos, mas quero focar em um que considero mais palpável: a universidade não prepara para a realidade que vive nosso povo. Seu distanciamento das necessidades sociais e do próprio povo leva a um foco em pesquisas sem sentido e de um ensino e extensão importados ou alienígenas, desencadeando em uma formação que não instrumentaliza para os desafios práticos que surgem tanto do contato com o elemento popular e marginalizado quanto o de construir a profissão Psicólogo brasileiro. Longe de mim achar que a formação dá conta de produzir um profissional perfeito, não é disso que se trata minha reflexão. Trata-se de apontar uma formação como um intelectual orgânico, ou seja, alguém que sai com uma bagagem teórica e prática muito alinhada com a ideologia dominante e voltada para um determinado tipo de sujeito, o que tende a produzir um profissional que não dialoga com o elemento popular, mas tenta sempre de alguma forma ou tutelá-lo ou enquadrá-lo em um conhecimento muitas vezes produzido alhures. Por mais crítico e “humanizado” que tenha sido meu percurso teórico e prático, deparei-me comigo mesmo agindo dentro de uma caixinha; aprendi na faculdade a escutar, mas não a me encontrar com pessoas de forma genuína. Penso que isso não é nada mais que um desdobramento da petulância acadêmica que nos envolve e que faz com frequência que nos coloquemos no patamar de alguém que sabe diante de um outro que não sabe. Dentro do curso de psicologia e mesmo em espaços alternativos vi muito sobre escuta e sintomas, mas pouco sobre alteridade e pensamento – e tenho certeza que os poucos bons professores que trabalham isso não se sentiriam ofendidos com isto que digo. Foi amparado em um poema de Bretch (“Nada é impossível de mudar...”) e em reflexões psicanalíticas (não aquelas que discutem se “é ou não é psicanálise”) sobre a centralidade da clínica no (re)fazer profissional que fiz esforço para transitar deste lugar para algum outro.

Esta deformação foi acontecendo na medida em que me vi realizando coisas inusitadas e inesperadas pela clínica convencional, mas tendo melhores resultados que as tentativas clássicas e ambulatoriais. Quando, por exemplo, convidar um usuário “refratário” para me ensinar a receita de um bolo de laranja desencadeou em um acolhimento muito melhor e mais detalhado, com nenhuma resistência para ser atendido e eventual aproximação do CAPS. Ou quando ser convocado a dançar durante a atividade de convivência desconstruiu em ato o estigma de incapaz de uma usuária tida como “inadequada pro CAPS” e causou muito mais aproximação, relatos de vida e emoções através das músicas, entre ela e todos da casa; quando através de uma gaita de boca pude me aproximar profundamente de projetos de vida e de histórias; ou quando fui chamado de amigo por usuários que nunca “atendi” e não achei isso problemático, na medida em que eles próprios indicaram o quanto isso era muito mais eficaz e fazia bem para eles do que outras abordagens – todos eles, ao longo das conversas, falaram dos percursos com o uso abusivo de substâncias, tudo isso sentados em um banco, na sombra, embaixo de uma árvore. A clássica frase de Jung, sujeito que sempre considerei místico demais, se fez finalmente entender para mim de fato. Diz ele: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. É possível ter um entendimento superficial e banal desta grande colocação, mas foi lapidado pela prática, pelos sorrisos, pelas trocas, pelas emoções – pelos encontros - que percebi que, mais do que “interpretaços” ou uma supremacia intelectual-acadêmica, é no campo do encontro e do afeto que se produz saúde mental. Entendi que além da práxis precisamos estar munidos da poiesis, esta arte de fabricar/criar coisas. Nenhum livro ou teoria nos tornará de antemão necessariamente preparados ou aptos para o cuidado com alguém – estão aí para provar isto muitos técnicos “de fora” da saúde e da faculdade, como profissionais da limpeza e da segurança, que “cuidam” e são considerados mais terapeutas que gente bem formada.

Este esforço foi sendo e está sendo feito. Tive a oportunidade de atender os mais diversos segmentos, de famílias de renda mediana a gente sem moradia e sem família. Crianças, adolescentes, adultos e idosos – inclusive todos juntos e misturados. Pude ter o privilégio de discutir casos com as mais variadas formações e visões. Foi o impacto academia x população que possibilitou e ainda possibilita a formação e a fabricação de uma clínica que dialogue com o sofrimento de quem vive no subdesenvolvimento. Precisamos nos aproximar mais deste contato, para além dos questionários e pesquisas formais, mas fazer do cotidiano brasileiro campo primordial do ensino na psicologia e lugar privilegiado da construção de nossa profissão[1]. Eis aí uma preparação digna para nosso trabalho.

Por fim, uma última colocação política: a crise de nosso sistema representativo e a constante liberalização do nosso Estado está cada vez mais evidente. Não é só a reforma psiquiátrica que entra em xeque todos os dias, mas sim direitos que foram conquistados com suor e sangue por brasileiros em luta. É também a abertura para com as pessoas que dependem e se beneficiam até hoje mais diretamente destas garantias que se adquire uma formação ética e comprometida com o fazer político, com a luta. São os vínculos com estas pessoas e suas histórias que contribuem para a “humanização” e criam terreno fértil para a formação de psicólogos e profissionais comprometidos com a cidadania, democracia e direitos humanos. Da minha parte, posso dizer que estes caminhos produzirão os resultados que se fazem urgentes para nosso país.






[1] Do “Consultório na rua” para a “Sala de aula na rua”! Mais atenção aos estudantes secundaristas que ocuparam escolas! Dizem muito sobre ensino.