Por isso, tenho me dedicado a escrever crônicas sobre o que tem acontecido no país em tempos de golpe. Gostaria de deixar alguns registros fugidios sobre como se viveu diante de um país em plena crise institucional e de ascensão de forças conservadoras e neoliberais em aliança. Quero fugir um pouco das leituras de vanguarda as quais eu muito já fiz, ao mesmo tempo em que lanço registros políticos que possam ajudar a tornar mais complexas essas análises, que muitas vezes estão mais direcionadas a sustentar determinado movimento ou linha política do que instaurar o questionamento.
O que segue então é um breve escrito sobre nossa 2ª greve geral do ano de 2017, que aconteceu no dia 30 de Junho. A primeira greve teve amplo chamado e adesão, vindo a surpreender mesmo a direita nacional. Foi um dia em que quase tudo parou sem a presença do grande proletariado fazendo circular as mercadorias. Sob esta grande sombra, o dia 30 teve seu início.
Assim que acordei já me deparei com a notícia de que os ônibus de Porto Alegre iriam funcionar normalmente, pois o sindicato não teria aderido à proposta de greve. Ao mesmo tempo, já havia notícia de alguns “trancassos” realizados em algumas vias durante a madrugada e que pessoas foram presas. Resolvi sair das redes virtuais e dos jornais e olhar para a rua, momento em que me surpreendi: diferentemente da primeira greve, onde o movimento era nulo, o que eu via era a movimentação de mais um dia comum. Olhei para meus vizinhos da esquerda (que são dois canteiros de obra) e neles vi pedreiros de pele escura trabalhando a todo o vapor. Em um dos terrenos havia dois jovens arrumando o que parecia um cano, construindo o que em breve se tornará um estacionamento.
Falando em estacionamento, olhei para meu lado direito. Agora sou vizinho de dois estacionamentos e no da direita havia os trabalhadores de sempre e as vagas de carros todas ocupadas. No shopping center logo ao lado deste estacionamento já se instaurava a muvuca e o quadro era de um dia comum: podia ver pessoas entrando e saindo, taxistas parados em seus pontos, carros pegando seu “ticket” nas catracas, jovens trabalhadores do supermercado recolhendo os carrinhos que ficaram espalhados pelo asfalto, seguranças conversando nas portas, um vigia com sua pequena motocicleta, terceirizados dos serviços gerais fazendo uma pausa para um cigarro, cães passeando...
Olhei para os prédios da frente e vi algumas pessoas calmamente organizando suas casas, uma escola de artes marciais aberta e o porteiro de um prédio comercial que sempre fica na calçada tomando mate e conversando com transeuntes ou colegas de serviço dos outros prédios. Nada mal para um país que recentemente passou por um impeachment um tanto questionável, que anda aprovando leis e reformas polêmicas a toque de caixa e de uma população que recentemente teve acesso a um áudio do seu presidente aceitando propina de um grande figurão da indústria da carne.
Logo que terminei de me arrumar parti em direção ao centro da cidade para compor com uma manifestação. No ônibus tudo igual: a quantidade de pessoas seguia a mesma e as caras apáticas também. Desembarquei no centro e me deparei com a movimentação comum de uma sexta-feira ao meio dia: as banquinhas de alimento estavam cheias de pessoas comendo salgadinhos oleosos e café, os feirantes ofereciam frutas, multidões aguardavam ônibus, pessoas passavam ocupadas, a voluntários da pátria seguia cheia de pessoas de baixa renda trabalhando etc. Apressei o passo e aos poucos fui me aproximando de dois grandes carros de som e de uma multidão onde era notável o número de faixas, bandeiras (vermelhas, de partidos, sindicatos ou de movimentos) e alguns instrumentos musicais.
Parei um pouco para escutar as falas que estavam sendo feitas por dirigentes sindicais e representantes de frentes ou movimentos. Eu concordava com a maioria das falas, mas uma coisa me estranhava muito em tudo aquilo: ao mesmo tempo em que os dirigentes diziam “agora é a hora de ficar juntos!”, também brigavam por espaço de fala nos carros. “Agora é o carro daqui, depois é o carro daí” e outras intervenções deste tipo eram feitas com frequência; como se estivessem preocupados em ser passados para trás ou algo do tipo. Penso que cada um foi ali pra falar das suas pautas e garantir que seu representante fizesse sua “análise” ou colocasse sua linha política. Fiquei me perguntando: se eles são tão aliados assim, qual é a necessidade disso? No mais, as falas eram praticamente idênticas. Olhei então pela multidão e vi poucos rostos pretos e indígenas. Percebi que o grosso dos manifestantes eram estudantes e funcionários públicos. Ao redor deles, a sociedade continuava funcionando como se aquilo fosse apenas algo “corriqueiro” ou “esperado”. Quase ninguém devia parar ali para somar ou se informar: observavam ora incrédulos e ora curiosos para depois tomarem seus rumos.
Iniciamos uma breve marcha pelas ruas, por onde não fomos hostilizados e nem ovacionados. A polícia nos deixou ir até o palácio do governador sem nenhuma bomba ou tiro, ainda que estivessem armados com fuzis que tinham quase meu tamanho. Dizem que a manifestação parou por ali pelo palácio e começou a ver uma comissão que iria entrar e discutir a libertação de um camarada preso.
No retorno para casa passei em um mercado onde jovens empilhavam mercadorias e trabalhavam nos caixas. Na saída do mercado vi um homem esfarrapado com potes de mel. Olhei para ele e ele me olhou: tinha pele escura, roupas esfarrapadas e lhe faltavam uns dentes, mas não sorrisos. Prontamente quis me mostrar sua mercadoria.. não, a mercadoria que era do patrão dele e que ele estava vendendo ali, na calçada mesmo. O preço era muito bom e conversamos um pouco: mesmo com minha negativa de comprar seu mel, foi muito amigável e falou do trabalho e do quanto estava feliz em estar ali vendendo, pois tinha dois filhos (mostrou nomes tatuados em seus antebraços) os quais queria sustentar. Pelas esquinas ele e seus colegas eram deixados, com a missão de vender mel do seu patrão. Nos despedimos.
Dias de greve geral.