DIÁRIOS DE UMA EXPERIÊNCIA EM EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

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Hoje na nossa turma de educação popular em saúde discutimos a temática do turbante. Levantado há pouco tempo atrás, essa discussão trouxe a problemática da apropriação cultural, do racismo e da branquitude. Hoje brancos e negros discutiram turbante e eu nunca ouvi discussão mais bonita, bem feita e respeitosa sobre o tema.

As educandas-educadoras negras fizeram todo resgate histórico e religioso do uso desse tipo de adereço, junto de suas experiências fazendo oficinas para a comunidade para trabalhar (com brancas e negras) a valorização de si, o reencontro com a própria beleza etc.

Em gesto de amor, cuidado e partilha, ensinaram (em cabeças brancas) a fazer turbantes em seus diferentes tipos. Ensinaram como ou porque usar e não hesitaram em responder dúvidas de brancos e brancas, mesmo as mais carregadas de contradição. Conversaram sobre o porquê ser ofensivo e a defesa de que se utilize, mas sabendo o que é. Trouxeram opiniões divergentes: tem quem diga que branco realmente não pode usar em situação alguma, não é nosso caso.

Não tenho dúvidas que hoje construímos um pouquinho de Brasil juntas e juntos. 

SOBRE A "REFORMA TRABALHISTA" - COM QUEM ANDA TEU COMPROMISSO, PSICÓLOGA(O)?

Foi no mês de Julho de 2017 que a classe trabalhadora do Brasil tomou um dos mais duros golpes em toda sua história: aprovaram a “reforma” das leis trabalhistas. Processo muito problemático dado o contexto político em que acontece: um governo comprovadamente corrupto, que assume a presidência após um processo de impeachment altamente controverso e que, sem demora e sem nenhuma discussão ampla com a sociedade, aprova uma série de reformas baseadas em acordos de bastidores entre os que financiaram o golpe e aqueles que ocupam o senado e a câmara. Toda uma história de luta dos trabalhadores escoou pelos ralos do Senado. Em poucos meses, sonhos e projetos de pessoas que ergueram o país pelo suor e sangue de seu trabalho foram rasgados ao som do escárnio daqueles que julgam estar obtendo uma vitória contra o comunismo através da neoliberalização plena da sociedade.

Nós que trabalhamos nas clínicas, políticas públicas e em organizações/instituições sabemos bem o crescente adoecimento das pessoas devido ao trabalho. Se antes as queixas se relacionavam mais a questões corporais (como a LER), hoje o que tem ganhado espaço é a tristeza, suicídio e o pânico. A solidão e o assédio têm ingressado cada vez mais na vida dos trabalhadores e das trabalhadoras, que recorrem ao silêncio por medo da demissão e seus desdobramentos na vida pessoal. O assujeitamento, estratégia disciplinar devidamente explorada por Foucault, adquire forma mais perversa e se torna controle: através do isolamento, se fomenta a auto-cobrança e o individualismo – você é responsável por tudo, em especial o seu próprio sucesso ou fracasso numa empresa. Adoeceu? É fraco. Quer licença? Quer vadiar. Só falta atualmente um “Pede pra sair!”, à la Capitão Nascimento.

Ao mesmo tempo, o enfraquecimento do sindicalismo corrobora com o individualismo, ao ponto em que muitas pessoas preferem acreditar que o patrão lhes pagará o FGTS pelo salário do que recorrer ao sindicato para fazer o enfrentamento de situações problemáticas em seus trabalhos. A reforma agrava a lógica da selvageria quando enfraquece soluções coletivas e fomenta os acordos informais e individuais. Com o mínimo de crítica e pensamento aguçado, percebe-se que a relação empregador-empregado é uma relação eternamente desigual, de forma que em uma discussão 1 a 1 com o primeiro, não há dúvidas que quem sempre sairá perdendo é o segundo – se não for como indivíduo será então como classe. Que tipos absurdos e brutais de assédio moral e sexual irão brotar nestas “conversinhas” e negociações com os chefes ainda estarão por ser evidenciados, caso não morram calados na garganta daqueles que estão imersos na solidão imposta por ambientes de trabalho hostis. Da mesma forma, a competitividade acirrada entre pares, agora mediada por todo tipo de negociata com o patrão, vai agravar a desconfiança e o isolamento, de forma que as estratégias coletivas de defesa se tornarão doenças/problemas individuais e não mais colaboração para se manter no trabalho junto do outro. Não há o que comemorar com estas reformas, pelo menos para quem depende da venda da força de trabalho para subsistir. No que se refere à Psicologia, qualquer profissional que atualmente anda buscando um emprego sabe o quanto a profissão anda precarizada, algo que vai se agravar ainda mais com a terceirização das atividades-fim.

A “reforma” trabalhista é um chamado ao posicionamento da nossa categoria. É necessário reivindicarmos nosso código de ética, que preza pela construção de uma sociedade mais justa, pela saúde coletiva e por relações que não sejam desiguais. Aprovar a reforma é aprovar um ataque aos setores menos favorecidos da sociedade e fomentar, a longo prazo, problemas ainda maiores para a sociedade. Com quem firmas teu compromisso, psicólogo/psicóloga?

SOBRE AS COTAS RACIAIS NAS UNIVERSIDADES

Recentemente vimos uma nova vitória do povo negro deste país: a aprovação de cotas raciais na Universidade de São Paulo (USP). É ótimo que essa decisão tenha sido tomada e ela me faz lembrar que tenho pensado indiretamente sobre cotas no meu cotidiano.

Tenho frequentado a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em especial o Restaurante Universitário e salas de aula, inclusive como “palestrante”. E não tem um dia que eu não circule pelos espaços daquela universidade e me sinta surpreso com a diversidade de estudantes. Não é raro eu encontrar pessoas negras em coletivo ou sozinhas, trazendo seus corpos, suas vestimentas e trejeitos: marcas de seu povo e de sua cultura. É penoso admitir, mas é fato: isso é recente. Se fossemos olhar a mesma universidade há menos de 10 anos atrás, não estaríamos vendo a diversidade que vemos hoje.

Olhando para minha trajetória, estudei em uma universidade quase que absolutamente branca: a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ver negros na UFSC era caso raro e, na maioria das vezes, eram como trabalhadores terceirizados. Eu ingressei no ápice da implementação das políticas de cotas, mas ainda assim em meus anos iniciais da faculdade dava pra contar nos dedos das duas mãos (talvez até de uma) a quantidade de colegas negros do meu curso (que devia ter cerca de 450 alunos ou mais). Hoje, circulando pela UFRGS, me deparo com uma realidade muito melhor e mais bonita. Na UFSC eu me sentia num ambiente asséptico, aqui na UFRGS me sinto mais brasileiro podendo ver pessoas diversas pelos corredores. E parar pra pensar que só na metade dos anos 2000 esse quadro começou a mudar!

Mas para além do que disse acima, existe outra contribuição essencial que os cotistas têm feito para a universidade, que é tensioná-la. Vejo que estes estudantes têm trazido para a universidade críticas importantíssimas, que vão colocando novos paradigmas em relação à produção de conhecimento e a própria instituição e seu funcionamento. Aquilo que Darcy Ribeiro chamou de “A universidade Necessária”, uma universidade autônoma e que se debruce sobre os problemas do país, dá um passo adiante em sua possível consolidação com a ocupação por negros e indígenas de seus corredores, salas e laboratórios.

Não há o que lamentar ou o que ser contra: quem ganha com a presença dessas pessoas somos todos nós e nosso sistema de educação e produção de conhecimento. A vitória deles é também uma vitória para todos nós.

Notas Porto Alegrenses

Hoje eu acordei muito cedo e fui para a academia. Aí pelas 7 e meia da manhã entrei no elevador e fui surpreendido por trio muito vivaz: um pai e dois filhos. Os dois são filhos pequenos e brancos, com pais que são muito trabalhadores e certamente os amam. Estavam bem agasalhados (fazia frio) e carregando suas mochilas. Simpáticos e ao mesmo tempo envergonhados: um ia pra creche e o outro para a escolinha.

No caminho do apartamento deles até o carro, que estava na garagem, eles receberam elogios e incentivos sobre : suas roupas, materiais, uniformes e por estarem indo a escola. Esses elogios vieram de 4 pessoas: de mim, de uma outra moradora, do porteiro e de uma das funcionárias da limpeza.


Pisei na rua e em menos de uma quadra estavam embaixo de uma marquise de um antigo prédio público (outrora usado por governadores) um pai e um filho. Maltrapilhos e literalmente atirados. O filho ajudava o pai a escrever num papelão alguma mensagem.

"Classes sociais são uma invenção do bolchevismo cultural" é a única coisa que me vem para concluir esse breve escrito, pois talvez só por certo cinismo se expresse parcialmente o que é viver numa metrópole subdesenvolvida.

CRÔNICAS DO GOLPE - PORTO ALEGRE


Há algum tempo, temos aprendido vivencialmente o quanto a história não cabe em uma explicação linear. Podemos “entender” que ela é muito mais complexa do que uma sucessão de eventos ou “grandes dias” encadeados logicamente, mas são apenas em tempos de crise e de alta polarização política que podemos sentir e então compreender que ela tem algo de paradoxal e de caótica, aspectos que ficam suprimidos quando tentamos explica-la através de grandes eventos.

Por isso, tenho me dedicado a escrever crônicas sobre o que tem acontecido no país em tempos de golpe. Gostaria de deixar alguns registros fugidios sobre como se viveu diante de um país em plena crise institucional e de ascensão de forças conservadoras e neoliberais em aliança. Quero fugir um pouco das leituras de vanguarda as quais eu muito já fiz, ao mesmo tempo em que lanço registros políticos que possam ajudar a tornar mais complexas essas análises, que muitas vezes estão mais direcionadas a sustentar determinado movimento ou linha política do que instaurar o questionamento.

O que segue então é um breve escrito sobre nossa 2ª greve geral do ano de 2017, que aconteceu no dia 30 de Junho. A primeira greve teve amplo chamado e adesão, vindo a surpreender mesmo a direita nacional. Foi um dia em que quase tudo parou sem a presença do grande proletariado fazendo circular as mercadorias. Sob esta grande sombra, o dia 30 teve seu início.

Assim que acordei já me deparei com a notícia de que os ônibus de Porto Alegre iriam funcionar normalmente, pois o sindicato não teria aderido à proposta de greve. Ao mesmo tempo, já havia notícia de alguns “trancassos” realizados em algumas vias durante a madrugada e que pessoas foram presas. Resolvi sair das redes virtuais e dos jornais e olhar para a rua, momento em que me surpreendi: diferentemente da primeira greve, onde o movimento era nulo, o que eu via era a movimentação de mais um dia comum. Olhei para meus vizinhos da esquerda (que são dois canteiros de obra) e neles vi pedreiros de pele escura trabalhando a todo o vapor. Em um dos terrenos havia dois jovens arrumando o que parecia um cano, construindo o que em breve se tornará um estacionamento.

Falando em estacionamento, olhei para meu lado direito. Agora sou vizinho de dois estacionamentos e no da direita havia os trabalhadores de sempre e as vagas de carros todas ocupadas. No shopping center logo ao lado deste estacionamento já se instaurava a muvuca e o quadro era de um dia comum: podia ver pessoas entrando e saindo, taxistas parados em seus pontos, carros pegando seu “ticket” nas catracas, jovens trabalhadores do supermercado recolhendo os carrinhos que ficaram espalhados pelo asfalto, seguranças conversando nas portas, um vigia com sua pequena motocicleta, terceirizados dos serviços gerais fazendo uma pausa para um cigarro, cães passeando...

Olhei para os prédios da frente e vi algumas pessoas calmamente organizando suas casas, uma escola de artes marciais aberta e o porteiro de um prédio comercial que sempre fica na calçada tomando mate e conversando com transeuntes ou colegas de serviço dos outros prédios. Nada mal para um país que recentemente passou por um impeachment um tanto questionável, que anda aprovando leis e reformas polêmicas a toque de caixa e de uma população que recentemente teve acesso a um áudio do seu presidente aceitando propina de um grande figurão da indústria da carne.

Logo que terminei de me arrumar parti em direção ao centro da cidade para compor com uma manifestação. No ônibus tudo igual: a quantidade de pessoas seguia a mesma e as caras apáticas também. Desembarquei no centro e me deparei com a movimentação comum de uma sexta-feira ao meio dia: as banquinhas de alimento estavam cheias de pessoas comendo salgadinhos oleosos e café, os feirantes ofereciam frutas, multidões aguardavam ônibus, pessoas passavam ocupadas, a voluntários da pátria seguia cheia de pessoas de baixa renda trabalhando etc. Apressei o passo e aos poucos fui me aproximando de dois grandes carros de som e de uma multidão onde era notável o número de faixas, bandeiras (vermelhas, de partidos, sindicatos ou de movimentos) e alguns instrumentos musicais.

Parei um pouco para escutar as falas que estavam sendo feitas por dirigentes sindicais e representantes de frentes ou movimentos. Eu concordava com a maioria das falas, mas uma coisa me estranhava muito em tudo aquilo: ao mesmo tempo em que os dirigentes diziam “agora é a hora de ficar juntos!”, também brigavam por espaço de fala nos carros. “Agora é o carro daqui, depois é o carro daí” e outras intervenções deste tipo eram feitas com frequência; como se estivessem preocupados em ser passados para trás ou algo do tipo. Penso que cada um foi ali pra falar das suas pautas e garantir que seu representante fizesse sua “análise” ou colocasse sua linha política. Fiquei me perguntando: se eles são tão aliados assim, qual é a necessidade disso? No mais, as falas eram praticamente idênticas. Olhei então pela multidão e vi poucos rostos pretos e indígenas. Percebi que o grosso dos manifestantes eram estudantes e funcionários públicos. Ao redor deles, a sociedade continuava funcionando como se aquilo fosse apenas algo “corriqueiro” ou “esperado”. Quase ninguém devia parar ali para somar ou se informar: observavam ora incrédulos e ora curiosos para depois tomarem seus rumos.
Iniciamos uma breve marcha pelas ruas, por onde não fomos hostilizados e nem ovacionados. A polícia nos deixou ir até o palácio do governador sem nenhuma bomba ou tiro, ainda que estivessem armados com fuzis que tinham quase meu tamanho. Dizem que a manifestação parou por ali pelo palácio e começou a ver uma comissão que iria entrar e discutir a libertação de um camarada preso.

No retorno para casa passei em um mercado onde jovens empilhavam mercadorias e trabalhavam nos caixas. Na saída do mercado vi um homem esfarrapado com potes de mel. Olhei para ele e ele me olhou: tinha pele escura, roupas esfarrapadas e lhe faltavam uns dentes, mas não sorrisos. Prontamente quis me mostrar sua mercadoria.. não, a mercadoria que era do patrão dele e que ele estava vendendo ali, na calçada mesmo. O preço era muito bom e conversamos um pouco: mesmo com minha negativa de comprar seu mel, foi muito amigável e falou do trabalho e do quanto estava feliz em estar ali vendendo, pois tinha dois filhos (mostrou nomes tatuados em seus antebraços) os quais queria sustentar. Pelas esquinas ele e seus colegas eram deixados, com a missão de vender mel do seu patrão. Nos despedimos.

Dias de greve geral.