Houve um momento, em meados do
segundo semestre de 2016, que nacionalmente trabalhadores e trabalhadoras
resolveram realizar um ato nacional contra o congelamento dos recursos públicos
promovido pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55. Neste dia, em Porto
Alegre, alguns trabalhadores da saúde e residentes realizaram uma marcha, vindo
a promover um trancasso em uma avenida movimentada. Foi um dia agitado, onde
vários movimentos produziram esse tipo de ação e causaram todo tipo de
desdobramento em vidas na cidade. Mas o que consta aqui são registros de quem
estava nesse trancasso feito pelos trabalhadores da saúde, que, resumidamente,
ocorreu assim: Quando residentes e trabalhadores se juntaram embaixo do viaduto
que passava por cima desta avenida, eles resolveram trancar a via. Em pouco
tempo a polícia veio, não conseguiu desfazer o bloqueio e chamou o batalhão de
choque. Esse último apareceu em poucos minutos, lançou bombas e gás de pimenta
e iniciou um conflito com quem estava trancando a rua, com todo tipo de falas e
reações. O fuzuê durou cerca de 40 minutos e depois trabalhadores e residentes
voltaram em marcha para seus locais de saída. EM meio disso tudo, transeuntes e
motoristas impacientes presenciavam tudo.
Pedro Paulo
Havia acabado de sair de uma
entrevista de emprego na qual havia sido rejeitado. Pedro já estava bastante
acostumado com isso e estava até “tranquilo”, pois pelo menos tinha tomado um
cafezinho “de grátis”. Quando o ônibus ficou parado, aí sim ficou um pouco
incomodado. Ele tinha horário e queria almoçar com a esposa! Foi logo buscando
a janela pra ver o que acontecia. Mas nem deu tempo dele ver: quando ele estava
chegando na janela escutou um estouro que fez seu corpo tremer e antes que
pudesse se dar conta, estava respirando uma fumaça cinza que deixou seus olhos
ardentes. Daí escutou gritaria, xingamentos e tudo o mais. Felizmente, para
Pedro, a fumaça pegou de leve e ele logo pode sacar pela janela a situação: era
a polícia enfrentando umas pessoas, que ele logo viu que eram jovens. Um estava
com um lenço vermelho, bem do tipo rebelde sem causa. “Puta que me pariu” –
pensou Pedro incomodado. Ele viu depois uma senhora, já idosa e com uma camisa
dizendo “SUS 100% público”. Viu outros velhos ali e se sentiu estranho, assim
como outros passageiros. Entre múrmurios a avaliação deles em geral foi a de
que o trancasso era justo, tinha gente que trabalhava ali. Ele até aceitou um
panfleto, mas não leu – logo em seguida seu ônibus saiu da parada. Crise aqui,
crise ali.. Pra ele era natural.
Josias
“FILHOS DA PUTA!!” – BUM.. BUM...
–PORCO DE MER..”. Não conseguiu completar a frase: quando olhou sua mão estava
arrebentada por um estilhaço de uma bomba. O sangue jorrou e parece que o tempo
havia parado para Josias: tudo andava em câmera lenta e conseguia sentir cada
um de seus batimentos. Ao seu redor, caos generalizado e pessoas
gritando/correndo. Seus olhos e pulmões já começavam a arder e foi sentindo de
leve uma pessoa pegando em seu ombro. Mas o que verdadeiramente o paralisava
naquele momento não era dor e sim incompreensão: nunca havia passado por
aquilo. Veio do interior especialmente para o encontro de residentes e com a
disposição de marchar por direitos. Para Josias isso nunca fora comum, pois
considerava exagero protestar. Os passos do choque avançando davam o ritmo do
seu próprio coração. Teve que ser retirado da rua por colegas e foi levado à
emergência. Foi em 2016 que mudou de opinião e foi depois que uma bomba
arrembentou sua mão, que ele optou pela revolta.
Soldado Barros
Naquele dia o pelotão já havia
sido avisado que desde cedo teriam diversas ações pela cidade, pois era sabido
que as manifestações seriam descentralizadas e que ruas seriam trancadas. Ainda
na concentração, foi depois desse repasse que eles fizeram o “aquecimento”: o
comandante puxou alguns gritos de guerra e parte do pelotão foi pro centro da
roda feita pelo pelos soldados. Quando foi dado o sinal, os do meio começaram a
agressivamente serem xingados de todo tipo de coisa. Em um segundo sinal, começaram
tapas e no terceiro era porrada mesmo. Os “maricas” que não aguentavam eram
removidos e humilhados: pra aprender que contra vagabundo não pode ser frouxo.
A primeira parada do pelotão de Barros naquele dia foi contra algumas pessoas
que bloquearam a avenida Mauá. Alí foi jogo rápido: desceram, foi direto bomba
e tiro. O pelotão ficou animado, até porque ali estava o estereotipo do
vagabundo: eram jovens e moradores de rua “lutando” por direitos. Mais tarde,
Barros se deparou com os trabalhadores embaixo do viaduto e teve um encontro
inesquecível. Aquilo o marcou: quando dispersaram as pessoas com bombas ele
teve que fazer um cordão junto com os policiais, para evitar que os
manifestantes retornassem para a via. Um de seus colegas começou a ser
questionado por várias pessoas e Barros percebeu que ele estava respondendo pra
elas, algo que demonstra fraqueza e não deveria ser feito. Tentou dar um toque
pro colega, eles se entreolharam e os olhos do colega estavam um pouco
lacrimejados. Estavam na frente deles muitas pessoas dizendo pra eles que eram
honestas, trabalhadoras, que a medida afetava eles, que eles estavam sem
salário etc. Mas uma menina tocou Barros em um íntimo que ele próprio havia
esquecido, pois se aproximou e lhe disse: “Mesmo com vocês fazendo isso comigo...
mesmo fazendo isso.. eu teria o maior prazer de fazer o parto da sua mulher com
todo o cuidado do mundo, porque eu sou enfermeira e acho que esse é um direito
seu e é por isso que estou lutando”. Para Barros aquilo reverberou de um jeito
intenso, pois sua esposa estava grávida. Questionamentos vieram em sua cabeça,
foi como uma porrada muito além das que havia tomado em seus treinamentos. O
tempo passou, a manifestação se dispersou e o comandante deu um tapinha nos
ombros de Barros: “Bom trabalho” – disse ele.
Érika
Assim que viu a bagunça, Érika
desceu com seus dois amigos adolescentes do ônibus e resolveu ficar assistindo
tudo: ela viu as pessoas tomarem bomba e gás de pimenta; viu mulheres e homens
mais velhos chorando; assistiu alguns civis tentando discutir com a polícia;
viu as bombas de gás sendo jogadas por cima do viaduto; viu as pessoas filmando
e observou comentários. Mas o que ela estranhou mais foi ver tanta gente tendo
a coragem de peitar polícia. Um de seus amigos estava até torcendo, baixinho,
pelos manifestantes – confessou que aguardava o momento em que eles “dessem uma
bica” nos brigadianos. Ela sempre teve medo de levantar a voz pra qualquer
policial – isso sempre trouxe problemas pelo menos em seu bairro. Assistiu
intrigada os enfrentamentos e xingamentos. Quando os manifestantes se retiraram
seu amigo propôs de segui-los, mas não como parte da marcha e sim à parte,
ocupando um meio fio há uns 5 metros de distância. Foi quando estavam entre
risos, intrigas e conversas que perceberam que um homem os chamava para dentro
da manifestação. “Venham! “ Disse ele de forma acolhedora. O amigo de Érika não
perdeu tempo: apontou para o Policial que estava acompanhando a marcha de
motocicleta, fechou o punho da mão direita e o bat~eo na palma da mão esquerda,
falando sem que o policial percebesse: “Só se for pra dar um pau nesses caras.”
O manifestante deu um sorriso encabulado e ao mesmo tempo malandro. Já o rapaz,
deu um sorriso de pura malandragem. Érika também.