Crônicas em tempos de golpe - O AMANHÃ É HOJE

No dia 12/12/2017 recebi duas notícias importantes e que denunciam ainda mais o estado de exceção que se constrói pouco a pouco no país. A primeira delas foi a manutenção da prisão de Rafael Braga e a segunda é o “julgamento” do ex-presidente Lula, marcado já para dia 24 de Janeiro de 2018.

O caso de Rafael Braga é emblemático. Pode tranquilamente ser colocado como uma espécie de caricatura nefasta de um estado de exceção que tem perdurado (ainda que se modulando cada vez mais como biopoder) em nosso país desde os tempos da escravatura: uma justiça altamente seletiva com segmentos bem específicos da população – o povo negro e pobre [A ditadura não cessou nas favelas]. Enquanto ele vai preso por ter um pinho sol na mochila e acusado de forma obscura de tráfico, criminosos de colarinho (e pele) branca “sambam na cara” de todo um povo em TV aberta. Um helicóptero de cocaína, desvios de merenda e escândalo no transporte público aparentemente não são tão graves quanto roubar um pão de um mercado ou pular uma catraca. A manutenção da prisão de Braga e a soltura de todos os outros representantes da política do “grande acordo nacional” é um sinal para o povo pobre e para militantes de todos os segmentos: estamos de olho em vocês. Vocês serão punidos por irem às ruas.

O julgamento de Lula é a cereja do bolo. Julgamento que vai ser novamente um espetáculo, pois mesmo com as “provas” altamente questionáveis e críticas de todos os tipos à dimensão política de seu julgamento [o julgamento de Rafael Braga também é político], a decisão já está dada de antemão: será condenado. Seu julgamento será o mais rápido da Lava Jato (em pleno ano em que vai certamente disputar as eleições) e um dos juízes já se posicionou indiretamente em relação ao seu veredito. A condenação de Lula serve de muitas coisas, mas a que me interessa mais é o evidente ataque à memória do povo trabalhador do país. A primeira presidenta mulher e o primeiro presidente operário, ambos inquestionavelmente eleitos pelas massas menos abastadas do país, serão destituídos de sua importância e relevância histórica para serem taxados como os fundadores da corrupção no país- o que é irônico é que isso será feito justamente por aqueles que são os maiores causadores dos problemas nacionais. Esse duro ataque é outro sinal bem claro para o campo de esquerda: se for necessário, vamos fundo em criminalizar e prender mesmo seus maiores líderes. Faremos valer nossos interesses a qualquer custo, inclusive para a democracia.

Em conversas com amigos tenho dito que estou cada vez mais convencido de que estamos nos encaminhando para um estado de exceção em nome de um ultra liberalismo. Alguns ponderam, outros discordam e alguns concordam. A ambiguidade sobre esse tema fica estampada na cara das pessoas: é uma mescla de “não acredito, ainda dá pra reverter” com “talvez seja verdade”.

Penso eu que o estado de exceção não é um amanhã; o amanhã é o hoje. Estamos no amanhã.

UMA CENA BONITA

Um evento para receber o Papai Noel em um shopping da capital. Multidões de gente e um aglomerado exagerado de crianças.

Depois de horas em filas no trânsito, desço e resolvo comprar um vinho após semana intensa e um dia de produções muito prazerosas, porém cansativas. Mal conseguia me mover, mas felizmente as filas do mercado estavam tranquilas. Decido não passar pelos corredores internos do shopping, pois cada passo era uma imensa tortura para um corpo exaurido de transbordamentos acadêmicos. Opto pela rua.

Vejo luzes vermelhas piscando e logo reconheço: Polícia Militar. Um bolinho de gente na volta impedia que eu pudesse ver algo além das nuances das luzes vermelhas e rodopiantes pelas sombras, o que faz com que eu me aproxime.

Uma cena bonita se mostra: um PM coloca um menino com síndrome de down em cima da moto. O menino parecia feliz e vestia uma camisa do Internacional. Pessoas tiravam fotos enquanto ele erguia, acomodava o garoto na moto e lhe emprestava seu capacete - não havia dúvidas da ternura em seus gestos e seu olhar. Mas que coisa engraçada isso! Nem parece o cara que que deu um tiro de borracha na cara de uma servidora pública quase aposentada e querendo se aposentar.

O QUE FAZER?

Uma caminhada de 15 minutos por Porto Alegre por volta das 7:30h

Numa escadaria algumas pessoas se organizando para o trabalho e vizinhos conversando.
Nas calçadas temos pessoas apressadas, um boteco com taxistas e algumas pessoas em farrapos jogadas no chão, em frente a uma padaria que eventualmente lhes joga migalhas.

Passo por uma praça que literalmente fede a merda humana e com partes do gramado que batem em meus joelhos de tão altas.

Um viaduto sujo, conglomerado de gente pegando ônibus. Outra praça suja, gente catando coisas do lixo, outro sujeito esfarrapado mendigando nas portas das lanchonetes. Um cara mal encarado em sua fruteira, que eu vejo sempre que faço esse trajeto. Um gari pede dinheiro para tomar café para um transeunte, que reage com surpresa e um pouco de nojo. Mais à esquina, um homem já idoso, acompanhado de seu carrinho de supermercado cheio de sacolas, roupas e outros pertences dele lê um jornal: Zero Hora.

Caminho mais por uma avenida e me deparo com um condomínio-edifício-garagem, um verdadeiro colosso urbano. Isso me faz curiosamente olhar para o asfalto da avenida e ver que carros circulam livremente enquanto me aperto entre pedestres. No outro lado, perto do hospital, mais pessoas dormindo no chão.

No meio do caminho um sujeito maltrapilho olha pra mim e diz: "Me dá 2 reais?" - sinalizando um número 2 com os dedos. Já afetado pela caminhada acabo também sendo grosseiro, sem querer, e noto que ele fica surpreso. Fui curto e grosso, não queria parar pra conversar.

Quase em casa mais uma fruteira (na verdade a terceira) de um homem alegre e bufão. Conheço ele, ele fala alto e mexe com as pessoas na rua. Passo por uma creche e vejo na frente dela inúmeras mães, provavelmente de origens mais populares pelas roupas que vestem e como falam de seus patrões. Fumam, estão com sobrepeso e semblante cansado.

Antes de chegar em casa, um último encontro: uma mulher fala alto, gesticula e aparentemente discute/briga em alto e bom tom com o nada.

*****

O ontem se faz hoje, pois lembro que passei boa parte da minha tarde discutindo a liberdade de um pesquisador de uma universidade pública poder fazer coisas inúteis e/ou sem relevância e a potência nômade de pessoas que perderam suas casas e foram se camuflar vivendo em aeroportos - em Buenos Aires e na Europa. Não no Brasil.

Crônicas em tempos de Golpe – Por que paramos de olhar para nossas sobras? [Disparado pela manifestação anti-Butler]

Hoje no Brasil, sujeitos que se dizem liberais estão se manifestando contra a palestra da Judith Butler, uma renomada pesquisadora internacional e com produções lidas no mundo inteiro. Estão aparecendo internacionalmente queimando uma boneca da pesquisadora na frente de um SESC – instituição que é mantida pelo grande empresariado brasileiro e que eles apoiaram e apóiam nas “reformas” que têm sido feitas pela burguesia nacional. Realizam esse protesto amparados na argumentação de que ela prega "ideologia de gênero", um termo que está cada vez mais hegemonizando o senso comum e que insinua que há um plano esquerdista de tornar as crianças homossexuais e/ou difundir a pedofilia pela dominação das idéias, plano (segundo eles) em curso no país pelo governo socialista do PT.

Bom, é bem claro que perdemos o fronte e uma mescla de ignorância com conservadorismo venceu a disputa. Mas será? Fico pensando que talvez nunca tenhamos estado por cima de nada. Talvez pela aposta em um programa por demais conciliatório e socialdemocrata, ou pelas importantes conquistas da redemocratização, tenhamos achado que estávamos realmente caminhando em direção a uma ordem e progresso, iludidos por certo sonho positivista de um avanço que vinha devagar, mas vinha! O queixo cai quando nos deparamos com tamanha demonstração de ignorância e uma onda de revisionismo completamente anti-intelectual e anti-reflexão, mas essa dimensão arcaica, que com muito estranhamento se mostra no moderno, é uma questão que Walter Benjamin havia se deparado em sua época, quando observava surpreso a ascensão nazista.

O que ele nos ensina com algumas de suas passagens é que é ao olhar para os restos e as sobras da história contada que entendemos o presente e podemos reconstruir a própria história. A história de 1988 tem sido ensinada de uma forma, bem como a dos últimos 10 anos de governo também. Mas e aquilo que paramos de contar pra fortalecer uma narrativa de coesão e em prol de um “ápice” onde vencemos? Quais sobras nós, como esquerda, fomos deixando na nossa caminhada? Como elas andam se apresentando hoje na nossa militância e coalizão?

Questões...

QUANDO O LIBERALISMO ANDA DE MÃOS DADAS COM O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO - A RETOMADA DA "CURA GAY" NA PSICOLOGIA

Nessa semana fiquei sabendo de mais uma tentativa de que nossa profissão aceitasse profissionais que se dispõem a realizar a terapia de reversão sexual, também conhecida por cura gay. Um grupo pequeno de profissionais organizou uma ação popular e, com a decisão de um juiz, abriu brechas para que profissionais possam reproduzir essa prática que data de tempos nefastos da história humana, onde a diversidade sexual era entendida como uma doença ou um desvio moral.

O que chama atenção nessa decisão é que o juíz não decidiu por colocar abaixo a normativa do Conselho Federal de Psicologia que orienta tanto os profissionais quanto a própria fiscalização do conselho. Pelo contrário, ele manteve a normativa com o seguinte adendo: a orientação segue como orientação, mas o conselho não vai poder impedir profissionais de ofertarem a cura gay, que vai ser ofertada sem propaganda e em ambientes reservados. É nesse paradoxo que consiste um ponto chave da sociedade brasileira e também da nossa profissão. Vejamos.

A discussão em torno da retomada da cura gay avança basicamente em duas frentes: uma frente científica e outra político-ideológica. Na frente científica há uma vastidão de materiais sobre a terapia de reversão e seus fracassos, senão agravantes para a saúde mental de quem a ela se sujeitou ou foi sujeitado – valendo destacar aqui toda crítica produzida pela reforma psiquiátrica brasileira aos tempos em que muitos eram internados apenas por serem “sexualmente pervertidos”. Ou seja: há um acúmulo histórico dentro da área sobre essas práticas em termos de saúde e de direitos humanos, tornado-se uma frente onde o ponto a favor da cura gay só se sustenta em cima da própria ignorância, visto que globalmente até mesmo instituições significativas e mais rígidas como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Associação Americana de Psiquiatria (APA) deixaram de reconhecer a homossexualidade como uma doença em seus manuais (Classificação Internacional de Doenças e Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) ¹.

Impossibilitados de vencerem de forma argumentativa na frente teórica e metodológica, para fazer valer seu preconceito e pressupostos religiosos, os defensores da cura gay adentram então em um debate que é fundamentalmente político: a liberdade do profissional e do paciente de ofertarem ou buscarem uma cura pra sua sexualidade. É aqui que o juiz instaura então nosso paradoxo, pois admite as orientações dadas pelo conselho (ou seja, entende que elas são necessárias), MAS entende que prevalece a liberdade dos profissionais de ofertarem a cura gay, sem a intervenção de nenhum órgão regulador pra isso (no caso, nosso conselho). O que é isso senão a prevalência direta da noção burguesa de liberdade, que se remete a uma liberdade de mercado, regulada pela noção de oferta e demanda?

Percebam que não há nenhuma discussão social e científica por trás dessa defesa intransigente da liberdade de ofertar a cura gay, toda questão é reduzida à condição de mercadoria, o que descola o fazer psi de seus efeitos em uma dimensão social. Há apenas essa noção torta de que é direito meu como cristão e/ou profissional ofertar a cura gay, independente do que isso signifique ou tenha significado pra todo um segmento da população que hoje se identifica dentro das siglas LGBT. Digo cristão, pois vejo que muitos desses profissionais se identificam como desse segmento religioso e acabam misturando preceitos bíblicos com sua própria ética como profissional psicólogo ².

É nessa dobradinha entre ideologia (no sentido marxista) liberal e fundamentalismo religioso que pode se expressar a defesa de uma cura gay. Ela não tem nenhuma outra via de fundamentação, visto que cientificamente já é batida e que simplesmente dizer que “acha que tem que curar porque a bíblia considera negativo” não é nada convincente. Essa operação insidiosa pelo qual preconceito e uma religiosidade bem específica tentam pautar a ação de uma categoria têm sido extensivamente usada por esses setores, que andam mascarando suas pautas religiosas em valores liberais e uma discursividade deturpada de democracia. O apelo ao debate político e ideológico é tão grande, que essa segunda frente de discussão tenta engolir a primeira, onde defensores da cura gay e da liberdade advogam pelo direito de fazerem pesquisas pra provar a eficácia da cura gay e a patologia da homossexualidade, visto que estariam sendo proibidos disso.

Dessa discussão, finalizo com duas questões:

A) Não é apenas na Psicologia que valores preconceituosos e contra os direitos humanos têm sido difundidos. Na sociedade brasileira como um todo a ideologia liberal tem sido usada para justificar “o direito de ser preconceituso”, afinal, se uma pessoa homossexual pode falar contra o preconceito, porque eu não posso falar a favor do preconceito contra ela, visto que ela me ofende com sua expressão sexual? Na idéia de que “podemos tudo”, afinal somos “livres”, estamos em tempos em que até candidatos à presidência correm livres difundindo ódio com aclamação.

B) É inaceitável para psicólogos comprometidos com a profissão que valores religiosos e preconceituosos se escondam através da liberdade dentro de nossa categoria. Nossa profissão não pode ser usada como uma máscara para dar livre vazão e legitimidade à homofobia e todo tipo de preconceitos.

O discurso da liberdade, essa liberdade mercadológica, tem feito com que muitos profissionais que se identificam como liberais apoiem a cura gay e reforcem essa aliança entre liberalismo e conservadorismo em sua forma religiosa. A esses, lhes digo: cuidado com o que estão alimentando, pois essa aliança não é de hoje e culminou em regimes historicamente reconhecidos como genocidas e violentos, inclusive no nosso próprio país.

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¹O DSM-V ainda mantém a Disforia de gênero como um transtorno. No que pese a necessidade de ser revisto, ainda assim trata-se de um “transtorno” que se refere “ao sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa. Embora essa incongruência não cause desconforto em todos os indivíduos, muitos acabam sofrendo se as intervenções físicas desejadas por meio de hormônios e/ou cirurgia não estão disponíveis. [..] foca a disforia como um problema clínico e não como identidade por si própria” (p. 450-451, DSM-V, 2014). A identidade não está em questão. Lembrar, porém, que o segmento "T" segue sendo visto como patologia.

²Quanto a este autor, nada tenho contra o fato de que psicólogos e psicólogas tenham sua espiritualidade. O problemático é quando ela intenta incidir sobre a vida do outro, através do lugar de saber da Psicologia, para reproduzir preconceitos e ódio.

CRÔNICAS DE TEMPOS DE GOLPE - PRESOS NA SURPRESA

No início de Setembro de 2017, vivi e vi o Movimento Brasil Livre cancelar uma mostra de obra de arte na minha cidade, acusando a mesma de promover o que se convencionou chamar de “gayzismo”, que na prática são as discussões que promovem a temática LGBT e os sujeitos desse segmento.

Esse fato entra junto de muitos outros em um rol de acontecimentos que vão gradualmente compondo tempos nefastos e retrógrados no nosso país. Só aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, temos um prefeito que é aliado/membro direto desses movimentos de extrema direita e que recentemente acionou a justiça para proibir que façam manifestações contra ele. Nem a presidenta (supostamente uma comunista autoritária) em vias de sofrer impeachment apelou para tal medida. Ao norte do país, as sombras do famigerado Escola sem Partido avançam na direção da formação de um policiamento contra a doutrinação ideológica, especificamente a de esquerda, pois a de direita com seus preceitos mecadológicos pode e deve ser difundida livremente.

Os setores mais progressistas se indignam e dizem: “esses movimentos de direita se vangloriam de serem favoráveis à liberdade, mas na prática têm operado com um crescente autoritarismo mesclado com ódio!”. E eu me pergunto enquanto escuto isso o seguinte: qual é a surpresa? Talvez em algum momento tenhamos perdido o tino do debate sobre luta de classes, que desde muito tempo já denuncia que a liberdade que a burguesia sempre se refere é a de mercado. Não há nenhuma preocupação desses movimentos que se dizem livres ou libertários com a liberdade humana, pois caso houvesse eles não estariam caçoando de professores em greve ou apoiando a repressão contra manifestações estudantis; muito menos vibrando com o fechamento de uma galeria de arte! Vale dizer que era uma galeria de arte promovida por um banco internacional, de forma que poderíamos tranquilamente aplicar a fórmula liberal universal da “mão invisível” e pensarmos da seguinte forma: se eu não gostei, não frequento e nem uso mais esse banco. Evidente que o MBL e seus apoiadores não operaram dessa forma, mas sim pela da repressão. Repressão de uma temática específica e que diz de setores marginalizados da sociedade, o que torna a ação deles ainda mais direcionada.

Acredito que para nós são tempos de perguntas e não de respostas imediatas, muito menos soluções prontas. Encerro então retomando a pergunta: Por que ainda estamos presos na surpresa?

DIÁRIOS DE UMA EXPERIÊNCIA EM EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE

[fragmento]

Hoje na nossa turma de educação popular em saúde discutimos a temática do turbante. Levantado há pouco tempo atrás, essa discussão trouxe a problemática da apropriação cultural, do racismo e da branquitude. Hoje brancos e negros discutiram turbante e eu nunca ouvi discussão mais bonita, bem feita e respeitosa sobre o tema.

As educandas-educadoras negras fizeram todo resgate histórico e religioso do uso desse tipo de adereço, junto de suas experiências fazendo oficinas para a comunidade para trabalhar (com brancas e negras) a valorização de si, o reencontro com a própria beleza etc.

Em gesto de amor, cuidado e partilha, ensinaram (em cabeças brancas) a fazer turbantes em seus diferentes tipos. Ensinaram como ou porque usar e não hesitaram em responder dúvidas de brancos e brancas, mesmo as mais carregadas de contradição. Conversaram sobre o porquê ser ofensivo e a defesa de que se utilize, mas sabendo o que é. Trouxeram opiniões divergentes: tem quem diga que branco realmente não pode usar em situação alguma, não é nosso caso.

Não tenho dúvidas que hoje construímos um pouquinho de Brasil juntas e juntos. 

SOBRE A "REFORMA TRABALHISTA" - COM QUEM ANDA TEU COMPROMISSO, PSICÓLOGA(O)?

Foi no mês de Julho de 2017 que a classe trabalhadora do Brasil tomou um dos mais duros golpes em toda sua história: aprovaram a “reforma” das leis trabalhistas. Processo muito problemático dado o contexto político em que acontece: um governo comprovadamente corrupto, que assume a presidência após um processo de impeachment altamente controverso e que, sem demora e sem nenhuma discussão ampla com a sociedade, aprova uma série de reformas baseadas em acordos de bastidores entre os que financiaram o golpe e aqueles que ocupam o senado e a câmara. Toda uma história de luta dos trabalhadores escoou pelos ralos do Senado. Em poucos meses, sonhos e projetos de pessoas que ergueram o país pelo suor e sangue de seu trabalho foram rasgados ao som do escárnio daqueles que julgam estar obtendo uma vitória contra o comunismo através da neoliberalização plena da sociedade.

Nós que trabalhamos nas clínicas, políticas públicas e em organizações/instituições sabemos bem o crescente adoecimento das pessoas devido ao trabalho. Se antes as queixas se relacionavam mais a questões corporais (como a LER), hoje o que tem ganhado espaço é a tristeza, suicídio e o pânico. A solidão e o assédio têm ingressado cada vez mais na vida dos trabalhadores e das trabalhadoras, que recorrem ao silêncio por medo da demissão e seus desdobramentos na vida pessoal. O assujeitamento, estratégia disciplinar devidamente explorada por Foucault, adquire forma mais perversa e se torna controle: através do isolamento, se fomenta a auto-cobrança e o individualismo – você é responsável por tudo, em especial o seu próprio sucesso ou fracasso numa empresa. Adoeceu? É fraco. Quer licença? Quer vadiar. Só falta atualmente um “Pede pra sair!”, à la Capitão Nascimento.

Ao mesmo tempo, o enfraquecimento do sindicalismo corrobora com o individualismo, ao ponto em que muitas pessoas preferem acreditar que o patrão lhes pagará o FGTS pelo salário do que recorrer ao sindicato para fazer o enfrentamento de situações problemáticas em seus trabalhos. A reforma agrava a lógica da selvageria quando enfraquece soluções coletivas e fomenta os acordos informais e individuais. Com o mínimo de crítica e pensamento aguçado, percebe-se que a relação empregador-empregado é uma relação eternamente desigual, de forma que em uma discussão 1 a 1 com o primeiro, não há dúvidas que quem sempre sairá perdendo é o segundo – se não for como indivíduo será então como classe. Que tipos absurdos e brutais de assédio moral e sexual irão brotar nestas “conversinhas” e negociações com os chefes ainda estarão por ser evidenciados, caso não morram calados na garganta daqueles que estão imersos na solidão imposta por ambientes de trabalho hostis. Da mesma forma, a competitividade acirrada entre pares, agora mediada por todo tipo de negociata com o patrão, vai agravar a desconfiança e o isolamento, de forma que as estratégias coletivas de defesa se tornarão doenças/problemas individuais e não mais colaboração para se manter no trabalho junto do outro. Não há o que comemorar com estas reformas, pelo menos para quem depende da venda da força de trabalho para subsistir. No que se refere à Psicologia, qualquer profissional que atualmente anda buscando um emprego sabe o quanto a profissão anda precarizada, algo que vai se agravar ainda mais com a terceirização das atividades-fim.

A “reforma” trabalhista é um chamado ao posicionamento da nossa categoria. É necessário reivindicarmos nosso código de ética, que preza pela construção de uma sociedade mais justa, pela saúde coletiva e por relações que não sejam desiguais. Aprovar a reforma é aprovar um ataque aos setores menos favorecidos da sociedade e fomentar, a longo prazo, problemas ainda maiores para a sociedade. Com quem firmas teu compromisso, psicólogo/psicóloga?

SOBRE AS COTAS RACIAIS NAS UNIVERSIDADES

Recentemente vimos uma nova vitória do povo negro deste país: a aprovação de cotas raciais na Universidade de São Paulo (USP). É ótimo que essa decisão tenha sido tomada e ela me faz lembrar que tenho pensado indiretamente sobre cotas no meu cotidiano.

Tenho frequentado a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em especial o Restaurante Universitário e salas de aula, inclusive como “palestrante”. E não tem um dia que eu não circule pelos espaços daquela universidade e me sinta surpreso com a diversidade de estudantes. Não é raro eu encontrar pessoas negras em coletivo ou sozinhas, trazendo seus corpos, suas vestimentas e trejeitos: marcas de seu povo e de sua cultura. É penoso admitir, mas é fato: isso é recente. Se fossemos olhar a mesma universidade há menos de 10 anos atrás, não estaríamos vendo a diversidade que vemos hoje.

Olhando para minha trajetória, estudei em uma universidade quase que absolutamente branca: a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ver negros na UFSC era caso raro e, na maioria das vezes, eram como trabalhadores terceirizados. Eu ingressei no ápice da implementação das políticas de cotas, mas ainda assim em meus anos iniciais da faculdade dava pra contar nos dedos das duas mãos (talvez até de uma) a quantidade de colegas negros do meu curso (que devia ter cerca de 450 alunos ou mais). Hoje, circulando pela UFRGS, me deparo com uma realidade muito melhor e mais bonita. Na UFSC eu me sentia num ambiente asséptico, aqui na UFRGS me sinto mais brasileiro podendo ver pessoas diversas pelos corredores. E parar pra pensar que só na metade dos anos 2000 esse quadro começou a mudar!

Mas para além do que disse acima, existe outra contribuição essencial que os cotistas têm feito para a universidade, que é tensioná-la. Vejo que estes estudantes têm trazido para a universidade críticas importantíssimas, que vão colocando novos paradigmas em relação à produção de conhecimento e a própria instituição e seu funcionamento. Aquilo que Darcy Ribeiro chamou de “A universidade Necessária”, uma universidade autônoma e que se debruce sobre os problemas do país, dá um passo adiante em sua possível consolidação com a ocupação por negros e indígenas de seus corredores, salas e laboratórios.

Não há o que lamentar ou o que ser contra: quem ganha com a presença dessas pessoas somos todos nós e nosso sistema de educação e produção de conhecimento. A vitória deles é também uma vitória para todos nós.

Notas Porto Alegrenses

Hoje eu acordei muito cedo e fui para a academia. Aí pelas 7 e meia da manhã entrei no elevador e fui surpreendido por trio muito vivaz: um pai e dois filhos. Os dois são filhos pequenos e brancos, com pais que são muito trabalhadores e certamente os amam. Estavam bem agasalhados (fazia frio) e carregando suas mochilas. Simpáticos e ao mesmo tempo envergonhados: um ia pra creche e o outro para a escolinha.

No caminho do apartamento deles até o carro, que estava na garagem, eles receberam elogios e incentivos sobre : suas roupas, materiais, uniformes e por estarem indo a escola. Esses elogios vieram de 4 pessoas: de mim, de uma outra moradora, do porteiro e de uma das funcionárias da limpeza.


Pisei na rua e em menos de uma quadra estavam embaixo de uma marquise de um antigo prédio público (outrora usado por governadores) um pai e um filho. Maltrapilhos e literalmente atirados. O filho ajudava o pai a escrever num papelão alguma mensagem.

"Classes sociais são uma invenção do bolchevismo cultural" é a única coisa que me vem para concluir esse breve escrito, pois talvez só por certo cinismo se expresse parcialmente o que é viver numa metrópole subdesenvolvida.

CRÔNICAS DO GOLPE - PORTO ALEGRE


Há algum tempo, temos aprendido vivencialmente o quanto a história não cabe em uma explicação linear. Podemos “entender” que ela é muito mais complexa do que uma sucessão de eventos ou “grandes dias” encadeados logicamente, mas são apenas em tempos de crise e de alta polarização política que podemos sentir e então compreender que ela tem algo de paradoxal e de caótica, aspectos que ficam suprimidos quando tentamos explica-la através de grandes eventos.

Por isso, tenho me dedicado a escrever crônicas sobre o que tem acontecido no país em tempos de golpe. Gostaria de deixar alguns registros fugidios sobre como se viveu diante de um país em plena crise institucional e de ascensão de forças conservadoras e neoliberais em aliança. Quero fugir um pouco das leituras de vanguarda as quais eu muito já fiz, ao mesmo tempo em que lanço registros políticos que possam ajudar a tornar mais complexas essas análises, que muitas vezes estão mais direcionadas a sustentar determinado movimento ou linha política do que instaurar o questionamento.

O que segue então é um breve escrito sobre nossa 2ª greve geral do ano de 2017, que aconteceu no dia 30 de Junho. A primeira greve teve amplo chamado e adesão, vindo a surpreender mesmo a direita nacional. Foi um dia em que quase tudo parou sem a presença do grande proletariado fazendo circular as mercadorias. Sob esta grande sombra, o dia 30 teve seu início.

Assim que acordei já me deparei com a notícia de que os ônibus de Porto Alegre iriam funcionar normalmente, pois o sindicato não teria aderido à proposta de greve. Ao mesmo tempo, já havia notícia de alguns “trancassos” realizados em algumas vias durante a madrugada e que pessoas foram presas. Resolvi sair das redes virtuais e dos jornais e olhar para a rua, momento em que me surpreendi: diferentemente da primeira greve, onde o movimento era nulo, o que eu via era a movimentação de mais um dia comum. Olhei para meus vizinhos da esquerda (que são dois canteiros de obra) e neles vi pedreiros de pele escura trabalhando a todo o vapor. Em um dos terrenos havia dois jovens arrumando o que parecia um cano, construindo o que em breve se tornará um estacionamento.

Falando em estacionamento, olhei para meu lado direito. Agora sou vizinho de dois estacionamentos e no da direita havia os trabalhadores de sempre e as vagas de carros todas ocupadas. No shopping center logo ao lado deste estacionamento já se instaurava a muvuca e o quadro era de um dia comum: podia ver pessoas entrando e saindo, taxistas parados em seus pontos, carros pegando seu “ticket” nas catracas, jovens trabalhadores do supermercado recolhendo os carrinhos que ficaram espalhados pelo asfalto, seguranças conversando nas portas, um vigia com sua pequena motocicleta, terceirizados dos serviços gerais fazendo uma pausa para um cigarro, cães passeando...

Olhei para os prédios da frente e vi algumas pessoas calmamente organizando suas casas, uma escola de artes marciais aberta e o porteiro de um prédio comercial que sempre fica na calçada tomando mate e conversando com transeuntes ou colegas de serviço dos outros prédios. Nada mal para um país que recentemente passou por um impeachment um tanto questionável, que anda aprovando leis e reformas polêmicas a toque de caixa e de uma população que recentemente teve acesso a um áudio do seu presidente aceitando propina de um grande figurão da indústria da carne.

Logo que terminei de me arrumar parti em direção ao centro da cidade para compor com uma manifestação. No ônibus tudo igual: a quantidade de pessoas seguia a mesma e as caras apáticas também. Desembarquei no centro e me deparei com a movimentação comum de uma sexta-feira ao meio dia: as banquinhas de alimento estavam cheias de pessoas comendo salgadinhos oleosos e café, os feirantes ofereciam frutas, multidões aguardavam ônibus, pessoas passavam ocupadas, a voluntários da pátria seguia cheia de pessoas de baixa renda trabalhando etc. Apressei o passo e aos poucos fui me aproximando de dois grandes carros de som e de uma multidão onde era notável o número de faixas, bandeiras (vermelhas, de partidos, sindicatos ou de movimentos) e alguns instrumentos musicais.

Parei um pouco para escutar as falas que estavam sendo feitas por dirigentes sindicais e representantes de frentes ou movimentos. Eu concordava com a maioria das falas, mas uma coisa me estranhava muito em tudo aquilo: ao mesmo tempo em que os dirigentes diziam “agora é a hora de ficar juntos!”, também brigavam por espaço de fala nos carros. “Agora é o carro daqui, depois é o carro daí” e outras intervenções deste tipo eram feitas com frequência; como se estivessem preocupados em ser passados para trás ou algo do tipo. Penso que cada um foi ali pra falar das suas pautas e garantir que seu representante fizesse sua “análise” ou colocasse sua linha política. Fiquei me perguntando: se eles são tão aliados assim, qual é a necessidade disso? No mais, as falas eram praticamente idênticas. Olhei então pela multidão e vi poucos rostos pretos e indígenas. Percebi que o grosso dos manifestantes eram estudantes e funcionários públicos. Ao redor deles, a sociedade continuava funcionando como se aquilo fosse apenas algo “corriqueiro” ou “esperado”. Quase ninguém devia parar ali para somar ou se informar: observavam ora incrédulos e ora curiosos para depois tomarem seus rumos.
Iniciamos uma breve marcha pelas ruas, por onde não fomos hostilizados e nem ovacionados. A polícia nos deixou ir até o palácio do governador sem nenhuma bomba ou tiro, ainda que estivessem armados com fuzis que tinham quase meu tamanho. Dizem que a manifestação parou por ali pelo palácio e começou a ver uma comissão que iria entrar e discutir a libertação de um camarada preso.

No retorno para casa passei em um mercado onde jovens empilhavam mercadorias e trabalhavam nos caixas. Na saída do mercado vi um homem esfarrapado com potes de mel. Olhei para ele e ele me olhou: tinha pele escura, roupas esfarrapadas e lhe faltavam uns dentes, mas não sorrisos. Prontamente quis me mostrar sua mercadoria.. não, a mercadoria que era do patrão dele e que ele estava vendendo ali, na calçada mesmo. O preço era muito bom e conversamos um pouco: mesmo com minha negativa de comprar seu mel, foi muito amigável e falou do trabalho e do quanto estava feliz em estar ali vendendo, pois tinha dois filhos (mostrou nomes tatuados em seus antebraços) os quais queria sustentar. Pelas esquinas ele e seus colegas eram deixados, com a missão de vender mel do seu patrão. Nos despedimos.

Dias de greve geral.

4 pessoas e uma manifestação

Houve um momento, em meados do segundo semestre de 2016, que nacionalmente trabalhadores e trabalhadoras resolveram realizar um ato nacional contra o congelamento dos recursos públicos promovido pela Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55. Neste dia, em Porto Alegre, alguns trabalhadores da saúde e residentes realizaram uma marcha, vindo a promover um trancasso em uma avenida movimentada. Foi um dia agitado, onde vários movimentos produziram esse tipo de ação e causaram todo tipo de desdobramento em vidas na cidade. Mas o que consta aqui são registros de quem estava nesse trancasso feito pelos trabalhadores da saúde, que, resumidamente, ocorreu assim: Quando residentes e trabalhadores se juntaram embaixo do viaduto que passava por cima desta avenida, eles resolveram trancar a via. Em pouco tempo a polícia veio, não conseguiu desfazer o bloqueio e chamou o batalhão de choque. Esse último apareceu em poucos minutos, lançou bombas e gás de pimenta e iniciou um conflito com quem estava trancando a rua, com todo tipo de falas e reações. O fuzuê durou cerca de 40 minutos e depois trabalhadores e residentes voltaram em marcha para seus locais de saída. EM meio disso tudo, transeuntes e motoristas impacientes presenciavam tudo.

Pedro Paulo
Havia acabado de sair de uma entrevista de emprego na qual havia sido rejeitado. Pedro já estava bastante acostumado com isso e estava até “tranquilo”, pois pelo menos tinha tomado um cafezinho “de grátis”. Quando o ônibus ficou parado, aí sim ficou um pouco incomodado. Ele tinha horário e queria almoçar com a esposa! Foi logo buscando a janela pra ver o que acontecia. Mas nem deu tempo dele ver: quando ele estava chegando na janela escutou um estouro que fez seu corpo tremer e antes que pudesse se dar conta, estava respirando uma fumaça cinza que deixou seus olhos ardentes. Daí escutou gritaria, xingamentos e tudo o mais. Felizmente, para Pedro, a fumaça pegou de leve e ele logo pode sacar pela janela a situação: era a polícia enfrentando umas pessoas, que ele logo viu que eram jovens. Um estava com um lenço vermelho, bem do tipo rebelde sem causa. “Puta que me pariu” – pensou Pedro incomodado. Ele viu depois uma senhora, já idosa e com uma camisa dizendo “SUS 100% público”. Viu outros velhos ali e se sentiu estranho, assim como outros passageiros. Entre múrmurios a avaliação deles em geral foi a de que o trancasso era justo, tinha gente que trabalhava ali. Ele até aceitou um panfleto, mas não leu – logo em seguida seu ônibus saiu da parada. Crise aqui, crise ali.. Pra ele era natural.

Josias
“FILHOS DA PUTA!!” – BUM.. BUM... –PORCO DE MER..”. Não conseguiu completar a frase: quando olhou sua mão estava arrebentada por um estilhaço de uma bomba. O sangue jorrou e parece que o tempo havia parado para Josias: tudo andava em câmera lenta e conseguia sentir cada um de seus batimentos. Ao seu redor, caos generalizado e pessoas gritando/correndo. Seus olhos e pulmões já começavam a arder e foi sentindo de leve uma pessoa pegando em seu ombro. Mas o que verdadeiramente o paralisava naquele momento não era dor e sim incompreensão: nunca havia passado por aquilo. Veio do interior especialmente para o encontro de residentes e com a disposição de marchar por direitos. Para Josias isso nunca fora comum, pois considerava exagero protestar. Os passos do choque avançando davam o ritmo do seu próprio coração. Teve que ser retirado da rua por colegas e foi levado à emergência. Foi em 2016 que mudou de opinião e foi depois que uma bomba arrembentou sua mão, que ele optou pela revolta.

Soldado Barros
Naquele dia o pelotão já havia sido avisado que desde cedo teriam diversas ações pela cidade, pois era sabido que as manifestações seriam descentralizadas e que ruas seriam trancadas. Ainda na concentração, foi depois desse repasse que eles fizeram o “aquecimento”: o comandante puxou alguns gritos de guerra e parte do pelotão foi pro centro da roda feita pelo pelos soldados. Quando foi dado o sinal, os do meio começaram a agressivamente serem xingados de todo tipo de coisa. Em um segundo sinal, começaram tapas e no terceiro era porrada mesmo. Os “maricas” que não aguentavam eram removidos e humilhados: pra aprender que contra vagabundo não pode ser frouxo. A primeira parada do pelotão de Barros naquele dia foi contra algumas pessoas que bloquearam a avenida Mauá. Alí foi jogo rápido: desceram, foi direto bomba e tiro. O pelotão ficou animado, até porque ali estava o estereotipo do vagabundo: eram jovens e moradores de rua “lutando” por direitos. Mais tarde, Barros se deparou com os trabalhadores embaixo do viaduto e teve um encontro inesquecível. Aquilo o marcou: quando dispersaram as pessoas com bombas ele teve que fazer um cordão junto com os policiais, para evitar que os manifestantes retornassem para a via. Um de seus colegas começou a ser questionado por várias pessoas e Barros percebeu que ele estava respondendo pra elas, algo que demonstra fraqueza e não deveria ser feito. Tentou dar um toque pro colega, eles se entreolharam e os olhos do colega estavam um pouco lacrimejados. Estavam na frente deles muitas pessoas dizendo pra eles que eram honestas, trabalhadoras, que a medida afetava eles, que eles estavam sem salário etc. Mas uma menina tocou Barros em um íntimo que ele próprio havia esquecido, pois se aproximou e lhe disse: “Mesmo com vocês fazendo isso comigo... mesmo fazendo isso.. eu teria o maior prazer de fazer o parto da sua mulher com todo o cuidado do mundo, porque eu sou enfermeira e acho que esse é um direito seu e é por isso que estou lutando”. Para Barros aquilo reverberou de um jeito intenso, pois sua esposa estava grávida. Questionamentos vieram em sua cabeça, foi como uma porrada muito além das que havia tomado em seus treinamentos. O tempo passou, a manifestação se dispersou e o comandante deu um tapinha nos ombros de Barros: “Bom trabalho” – disse ele.

Érika

Assim que viu a bagunça, Érika desceu com seus dois amigos adolescentes do ônibus e resolveu ficar assistindo tudo: ela viu as pessoas tomarem bomba e gás de pimenta; viu mulheres e homens mais velhos chorando; assistiu alguns civis tentando discutir com a polícia; viu as bombas de gás sendo jogadas por cima do viaduto; viu as pessoas filmando e observou comentários. Mas o que ela estranhou mais foi ver tanta gente tendo a coragem de peitar polícia. Um de seus amigos estava até torcendo, baixinho, pelos manifestantes – confessou que aguardava o momento em que eles “dessem uma bica” nos brigadianos. Ela sempre teve medo de levantar a voz pra qualquer policial – isso sempre trouxe problemas pelo menos em seu bairro. Assistiu intrigada os enfrentamentos e xingamentos. Quando os manifestantes se retiraram seu amigo propôs de segui-los, mas não como parte da marcha e sim à parte, ocupando um meio fio há uns 5 metros de distância. Foi quando estavam entre risos, intrigas e conversas que perceberam que um homem os chamava para dentro da manifestação. “Venham! “ Disse ele de forma acolhedora. O amigo de Érika não perdeu tempo: apontou para o Policial que estava acompanhando a marcha de motocicleta, fechou o punho da mão direita e o bat~eo na palma da mão esquerda, falando sem que o policial percebesse: “Só se for pra dar um pau nesses caras.” O manifestante deu um sorriso encabulado e ao mesmo tempo malandro. Já o rapaz, deu um sorriso de pura malandragem. Érika também.