RETOMAR MANICÔMIOS EM PLENA CRISE NÃO SURPREENDE


O SUS sofreu uma série de ataques ao longo deste governo, mas desde o lançamento da nova proposta relativa ao uso abusivo de Álcool e outras Drogas está nítido um interesse particular em destruir os avanços produzidos pela reforma psiquiátrica. Consolidada com a Lei 10.2016, a reforma psiquiátrica, diferente do que prega o corporativismo da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), nunca foi uma reforma voltada a prejudicar os profissionais da Medicina. Sua proposta foi trocar o modelo de assistência focado na hospitalização pelo que chamamos de “cuidado em liberdade” e teve como central nessa proposta a criação dos Centro de Atenção Psicossociais (CAPS).
Essa estratégia partia das críticas aos horrores dos manicômios e de uma noção de saúde a partir de sua dimensão coletiva: a saúde mental não se resume às iniciativas individuais de quem experiencia a loucura (psicoterapia, tomar remédio etc), mas deve ser compreendida a partir da integralidade posta nos princípios do SUS. Sendo assim, cuidar de quem passa pelo sofrimento em saúde mental implica na fomentação e criação de redes de apoio que envolvem trabalho, família, amizades, moradia, alimentação etc. Foi de fato um golpe no modelo hospitalocêntrico e no saber-poder médico, pois agora a saúde mental deixava de ser exclusiva desse tipo de lugar e passava a ser compreendida a partir da lógica do território e também como parte de outros dispositivos de saúde. Essa reforma aconteceu porque loucos militaram pelo direito de construírem suas vidas apesar de sua diferença e com isso fundaram um outro modelo assistencial, mesclando o tratamento com a possibilidade de exercer a própria autonomia.
Mas meu texto não vem para aprofundar nisso, fica nos comentários indicações de leitura que acho pertinentes sobre. O que venho reforçar é que não podemos compreender essa estratégia de retomada de manicômios separando-a de uma análise que envolva algum grau de economia política. Sabe-se faz mais de século que os manicômios ganharam força e prestígio justamente pela função social que adquiriram: isolar pessoas em contravenção com os valores de uma sociabilidade capitalística e que por sua condição e condutas significam um risco social, seja por mostrarem as falhas dessa sociabilidade ou seja por se comportarem de maneira diferente desses valores. Os que se recusaram a se adaptar foram internados e isolados da sociedade sob a justificativa de serem readequados nos moldes do sujeito “produtivo” demandado pelos valores liberais, instaurando uma prática de higienização a partir da necessidade de adequação a um modo de viver específico. O alvo dessas estratégias, na prática, foram os segmentos mais pobres da população, que no nosso país implica necessariamente em um recorte racial. Como exemplo da internação como instrumento político podemos somar a essa reflexão a dimensão de gênero, visto que não foram poucas as mulheres que foram internadas por causa de sua revolta contra valores patriarcais que acompanham essa sociabilidade (ex: se recusar a casar com quem o pai agendou) sob o pretexto de histeria.
Dito isso, não podemos descolar a retomada radical da estratégia das internações como propõe o governo do momento de crise que nos encontramos. Quando o capitalismo agudiza sua crise os impactos não são apenas em números e algoritmos da bolsa de valores, são também na nossa vida cotidiana. Desemprego e miséria não só produzem adoecimento psíquico, como também geram revolta. Pessoas acabam na rua, iniciam abuso de substâncias (lícitas e ilícitas), se suicidam por perderem seus empregos, entram em depressão diante das cobranças excessivas e da competitividade extrema, se organizam em movimentos sociais, fazem passeata etc. Destaco em especial a pobreza, que se materializa em corpos esfarrapados pelas ruas todos os dias mostrando o fracasso das políticas adotadas.
Em momentos como esse o Estado sempre infla seu braço da segurança pública e faz uso ostensivo da violência para manter a “ordem” e a noção de que “tudo vai bem”. Assim, quando o Estado diz que vai retomar o modelo hospitalocêntrico em saúde mental ele está aproximando a saúde do discurso da segurança pública no sentido de voltar a colocar as pessoas nessas instituições e afastá-las da sociedade.
Essa é a primeira faceta desse tipo de política: conter os danos da crise higienizando a sociedade, sobretudo pessoas pobres e que vivem nas ruas sob a égide de “internar esses viciados”. A segunda é fazer da crise cifrão. O modelo hospitalocêntrico é caro, internações são caras e quando elas se tornam o foco da política pública se produz um efeito que chamamos de “institucionalização” das pessoas. Quanto mais se fica em um hospital psiquiátrico maiores as chances de se tornar dependente dele, criando um ciclo que cada vez fica mais difícil de romper.
A quem interessa ficar internando pessoas num giro ininterrupto, senão às empresas de saúde e também as Comunidades Terapêuticas? Esse é um terreno que já está montado, pois não é de hoje que a terceirização na saúde tem se aproximado de entidades religiosas e outras que ofertam internação em fazendas. Esses corpos são indesejáveis no sentido ideológico, mas altamente desejáveis no que se refere aos lucros possíveis relacionados a aumentar o número de internação de pessoas.
É preciso afirmar: A retomada das internações é, dentre várias coisas, mais um sinal de que os tempos serão duros.

OS HOMENS TRISTES


Nos tempos atuais, tenho escutado homens tristes. Eles falam arrastado, ficam em silêncio e suspiram antes de contar sua história. Seus olhares estão fixos em horizontes e quando falam parecem buscar uma explicação filosófica ao invés de simplesmente dizerem: estou triste. Uns são mais quietos e outros mais extrovertidos; uns são verdadeiros palhaços enquanto outros são extremamente sérios. Uns sorriem e querem abraçar ou apertar a mão, já outros são mais reservados. Mas todos, sem exceção, estão tristes.

Geralmente é preciso um extremo para dizerem que se sentem tristes. Alguns só se dão conta da tristeza quando percebem que estão usando drogas demais, outros quando se separam de suas companheiras, outros quando se
veem incapazes de se sustentar através do trabalho (quando conseguem ter um), outros quando possuem trabalho e por ele se veem engolidos e assim vai... Independente da forma tomada, impotência é a palavra de ordem. Sim, ela: a grande algoz de homens e possivelmente uma das forças que mais nos coloca de joelhos. Incapazes diante de substâncias, de si, dos outros, do trabalho, do capital… da vida. Incapazes diante de sentir.

Silenciosos ou irônicos, esperam sempre ser compreendidos. Como compreender quem não comunica? Querem ser cuidados, mas como receber cuidado se não se mostra frágil? Reclamam de serem deixados, mas identifico neles a exigência de cuidado justamente das mulheres que os cercam. Esperam que elas usem uma espécie de poder telepático para adivinharem quando é pra ajudar e quando é só aquela escapada fundamental para a caverna. Elas ainda assim engajam em tentar compreender, usam o seu último recurso até o esgotamento e as vezes até chegam a se endividar energeticamente com altas prestações.

Solitários, choram os homens tristes. Deitam com insônia em suas camas, escoram a face nas mãos quando sentam, sentem raiva quando se olham nos seus espelhos e se angustiam com o vazio em seus peitos. Coragem, homens tristes! Coragem pra dizer: estou triste.

Imagem: "In Flames" - Sergey Fett

Bilhete Chuvoso




Já são alguns dias de chuva em Porto Alegre e perto de uns 7 meses de quarentena. Um desses dias acordei de madrugada e fiquei olhando da janela da minha sala carros e ônibus entrando e saindo da cidade. Vivo no sétimo andar de um prédio na Cristovão Colombo que me dá o privilégio de ter uma vista ao Guaíba e à AVENIDA DA LEGALIDADE e suas elevações. Daqui sempre vejo também os garis de laranja ao longe, um pouco antes da legalidade – na verdade, abaixo dela e sua elevação. Estão lá, todos os dias independente do clima.

Especificamente quando observo de noite vejo pequenas luzes indo e vindo repletas de histórias que gostaria de ouvir: como será que é estar dentro desses automóveis escutando a chuva e vendo a cidade te engolindo? Eu estive nesse lugar: chegava de Florianópolis em Porto Alegre sempre pela madrugada. Via o cimento grosso dos pilares que protegem os trilhos do “trensurb”, que na velocidade do ônibus faziam uma sequência quase hipnótica. Eu chegava sedento pela cidade e sua muvuca, sobretudo suas facilidades.

Só que o meu ponto aqui é a chuva. Estendi o braço pra fora pra sentir as gotas dela e me dei conta de que eu não sentia a chuva faz tempo. Já choveu na quarentena, relampejou, teve aguaceiro… Só que eu não senti a chuva. Hoje eu senti. Arrisquei colocar o braço pra fora de forma tímida e ainda de roupão pra sentir umas gotas, mas logo tirei. Apoiei-me na janela e fiz uma força proposital, compartilhando com o concreto um pouco de um peso que era mais da ordem existencial do que uma demanda física.

Cheirei o ar, ouvi o barulho das enormes árvores e suas folhas no ventaval e coloquei de novo o braço pra fora. Estiquei o roupão. Queria meu braço todo de fora sentindo as gotas! Quando vi, meus pensamentos começaram a ser conduzidos pelo barulho do vento nas folhas. Voei longe, tão longe que me perdi por um instante. Voltei, apertando o concreto e pensando pra mim mesmo que não há nada de “novo normal”.

Acredito muito nos instantes.

A PSICOLOGIA PRECISA SEMPRE SER POSICIONADA


Já são 6 anos de formado e essa é uma data sempre bacana de viver e reviver coisas, pois foi no 27 de Agosto de 2014 que eu me formei Psicólogo pela UFSC. Na ocasião eu e a colega Ana Raquel Barcellos fizemos um discurso realçando a necessidade de uma Psicologia que esteja em contato íntimo com aquilo que acomete a imensa maioria da população brasileira, que é ainda hoje um país desigual, racista, transfóbico, misógino e que hoje maquina intensamente em seu cotidiano a organicidade de um modo de ser e de viver que é fascista por excelência. Adeptos conscientes ou não dessa maneira de viver hoje se organizam pra questionar a Psicologia, que difere deles ao se posicionar a favor da vida. Mas que vida? É isso que quero trazer e reforçar: a Psicologia é e precisa ser posicionada!

Quando digo “pela vida” não refiro essa vida conformizada, que em nome da normalidade subjuga e faz com que nossas vontades de “ser mais” freirianas se tornem conformadas a uma regra que serve a poucos. Definitivamente não podemos estar ao lado daqueles que buscam todos os dias nos uniformizar, seja forçando uma igualdade em nome de uma bandeira nacional verde-amarela, azul e, ressalto, branca. Seja também nos convocando para “salvar uma economia” que dizem ser nossa, mas que parece todos os dias não nos pertencer. Nosso Ofício mostra a importância de sustentar a possibilidade de nos constituirmos outros assim que parecer pertinente: como seres humanos a adaptação plena é sempre uma morte em vida e o interessante será em meio ao nosso trabalho sustentar uma transitividade possível e que, muitas vezes, não se constrói em solidão –mesmo que entre 4 paredes de um consultório. Toda psicologia individual é uma psicologia social, já nos disse Freud!

Nessa linha, pra sintetizar um pouco de como penso nosso ofício, resgato aqui frase de Guattarri, que é citado por Deleuze em “Crítica e Clínica”:

"Os lapsos, os atos falhos, os sintomas são como pássaros que batem com o bico na janela. Não se trata de interpretá-los. Trata-se antes de detectar sua trajetória para ver se podem servir de indicadores de novos universos de referência suscetíveis de adquirirem uma consistência suficiente para revirar uma situação".

Estamos aqui para viver e suscitar reviravoltas. É no que eu acredito e é nessa possibilidade de vida que eu aposto como profissional da Psicologia! Nossa prática sempre será política e não há razão de esconder ou se sentir ressabiado disso. Feliz dia e quero lhes dizer que eu aposto no que podemos fazer, apesar de insatisfeito com baixos salários e desempregos que permeiam nossa prática. Saludos!

Epifanias de quarentena


Hoje resolvi sentar na rua. Fui fazer compras e decidi que precisava sentar um pouco em outro lugar que não fosse a cadeira do meu quarto. Escolhi uns degraus isolados do Shopping Total e sem nenhuma vergonha abaixei minha máscara, pra sentir o vento na minha cara. Sozinho e distante de todos, cada brisa no meu bigode era uma lembrança que me acometia e me vi perdido entre sorrisos e tristezas.

Lembrei de mim mesmo menor, distante. Um pequenino vir-a-ser que por menor que fosse tinha disposições a brigar, mesmo lamentando os efeitos da violência. Gosto dessa foto em especial: faz eu lembrar dos meus tios e dos meus avós. Ao fundo está um jipe que só quem me viu crescer pode dimensionar a importância, pois por muitas horas me viram pedalando. Na minha direita está a Pelica. Uma cadela Collie, que eventualmente sumiu e sempre me perguntei se foi porque parei de ir ver ela “lá fora”.

Lembro dos meus tios felizes, fazíamos limonadas e eventualmente um cordeiro. Lembro das alegrias e tristezas deles, mas sobretudo de como me tratavam como se eu fosse filho deles. Lembro dos avós, porque estavam lá retribuindo os sorrisos e incentivando o movimento de “ser mais” que habita em mim.

Hoje sentei solitário, mas a Pelica está do meu lado, assim como outros cães parceiros que tive. Também estão tios, avós e familiares importantes. A quarentena tem dessas coisas: o distanciamento físico parece absurdo, mas é verdade que nenhuma distância física vence a presença no coração. Com saudades e com força, um abraço.

Verso Freudo Marxista

Eu e ela escutamos uma música ao acaso
Ela estava animada e tecia comentários
Eu já conhecia essa música
Já falei sobre este som pra outras e outros
Gosto da música e ela me faz sorrir sempre
Só fico indeciso
Repito o que já repeti?
Vou me escutar falando o mesmo?
Opto por viver o silêncio, apenas escuto
Difícil viver na dúvida da repetição ou correr o risco
de reescrever a história.

LGD.

Por que escrevo?



Tenho feito essa pergunta. Em dado momento apelei pra psicologia freudiana ortodoxa e tinha claro para mim que era para sublimar alguma coisa, mas depois critiquei essa visão e comecei a achar que era pra eu viver a atualização e não a superação de algo. Tem esses efeitos, mas não sei se é por aí.

Garcia Marquez disse que pra ele era uma maneira de fazer com que seus amigos o amem mais. Não é meu objetivo, mas acho que reforço amizades escrevendo, pois tem uma dimensão política e afetiva envolvida e um endereçamento que é muito maior do que pra mim mesmo. Aliás, sobre política, Orwell também respondeu dizendo que escrevia para denunciar, desfazer mentiras, viver o que é público – com o adendo de que não conseguia de forma alguma em seus textos perder a habilidade de escrever inutilidades. Agrada-me o que ele diz, faz sentido. Política, amigos e inutilidades. Faço firulas e repetições na escrita, apesar de gostar de ser objetivo no meu cotidiano.

Já Saramago disse certa vez que escrevia para não morrer. Tem algo vital mesmo, mas pra mim não sei se a escrita acontece pra que eu não morra. Nesse aspecto gosto da Clarice: ela sim quer morrer. Escreve pra se destruir, se despedaçar. Gosto dessa ideia, gosto de ver que eu realmente me detono escrevendo e nem sei as vezes o rumo que isso vai dar…

É bom ler eles, mas e a minha resposta? Tenho percebido que escrevo porque no fundo sou muito ligado ao presente, apesar de amar o passado. Quero ficar as vezes lá atrás, mas o presente fica me chamando todos os dias e é a escrita que faz eu me conectar com ele e vive-lo de forma menos dura. Não sinto ser algo hedonista, não se trata do mote “You only Live Once”. É uma espécie de respeito à importância de viver de forma mais demorada os impactos do dia a dia em minha subjetividade. Trata-se de respeitar mais certos encontros. 

É isso: escrevo pra que me mantenha ligado ao presente, mas respeitando meu passado para que exista um futuro diferente.

10 anos de um blog - Editorial de reabertura

A minha primeira postagem neste blog data do dia 14 de fevereiro de 2010, momento em que decidi criar um espaço para me manifestar através da escrita e que teve como disparador bons amigos, Franco Bertoncini e Bruno Haeming, que gostavam dos meus textos e me incentivaram a ter um blog (que em 2010 era uma plataforma ainda em alta). A provocação deles aconteceu após assistirmos o filme “Precious” e termos feito algumas reflexões sobre o mesmo.

Alimentei meu blog até o dia 27 de Abril de 2017, ano em que então resolvi parar de postar nele. Na ocasião eu não sabia, mas o que estava ocorrendo comigo era a abertura de uma fissura intelectual em meu corpo, que seria o início de uma árdua jornada onde uma das marcas fundamentais seria a de eu questionar de forma abusiva a qualidade do que escrevia. Lembro também que parte do meu receio era o de que o que eu publicava aqui poderia interferir nas minhas possibilidades de conseguir emprego, visto que o que se consolidava no país era o clima polarizado e hegemonizado por certo ódio ao que hoje esses setores colocam em um balaio de gato chamado “progressismo”, do qual eu tranquilamente faço parte e lhes digo: ainda bem!

Essa parada de publicações no blog chega até agora em 2020. Não parei totalmente de escrever textos que caberiam no site, mas foi um período de desencontro com a escrita que foi se desenhando ao longo dos anos e que em 2018 e 2019 adquiriu uma fase aguda, consolidando uma crise de vida, sobretudo a vida intelectual e relacionada ao meu trabalho. Foram tempos em que eu neguei minha escrita, inclusive a que estava relacionada ao mestrado, por motivos os quais só agora em 2020 tenho conseguido elaborar e dar sentidos mais claros. A ideia de reativar o espaço veio em poucos momentos durante esse hiato, mas sempre sumia e os textos foram sendo cada vez menos feitos.

Foi no dia 13 de Maio desse ano de 2020 que eu bati o martelo em reativar o blog em meio a uma repetição inusitada, diria que da ordem de uma sincronicidade jungiana. Já estava em meio às minhas elaborações querendo escrever algo um pouco maior do que o convencional das redes sociais (que demandam textos curtos) e acabei anunciando para amigos que estava afim dessa ideia de reabrir o blog. Assim como lá em 2010, foram novamente as amizades que interviram no jogo de forças posto através da fala de dois amigos: Guilherme Correa e Maurício César. Quando disse que queria voltar a reativar o blog eles me disseram: “vai, escreve!” e quando comentei que ainda tinha medo de retaliações pelo conteúdo das coisas que escrevia um deles me agracia com a seguinte fala: “faz isso, saúde mental pra ti e pro leitor”. Assim, a partir dessas doses de coragem, iniciei esse escrito de reabertura. Em dado momento durante o ato dessa escrita meus olhos involuntariamente se moveram ao relógio do monitor e testemunharam que virava meia noite e o dia 13 se fazia dia 14, consolidando 10 anos e 3 meses de existência do blog. Tenho vivido com frequência esse tipo de coincidência (ou talvez esteja mais atento a elas) e tornou-se então fato cósmico essa empreitada de reencontro com meus textos.

Meu primeiro passo foi resgatar escritos e publicá-los aqui no blog de acordo com as datas em que os publiquei em outras redes sociais. Foi um exercício genealógico revisitar esses textos e constatar dolorosamente tanto o que explicitei acima (uma morte de si pelo boicote gradual dos meus exercícios de escrita) como também as nuances por onde vou construindo novos estilos de escrever, fazendo dos esparsos textos tateios esporádicos que indicavam tentativas de reencontar o que havia se tornado excessivamente fugidio. Fiz isso para que o blog também possa funcionar como um arquivo, por onde seja possível revisitar (ou visitar) uma trajetória de vida e de escritas. Aprendi com meu avô a importância de guardar e registrar certas coisas, sobretudo meus materiais de escrita os quais ele sempre sinalizou que deveria me ocupar de cuidar (algo que ele sempre fez). Ainda quanto aos escritos antigos é certo que alguns deles nos dias de hoje já não representam necessariamente o que penso atualmente, mas um dia já fizeram parte disso e possuem sua importância histórica.

O segundo passo foi escrever esse texto-editorial alusivo tanto à comemoração dos 10 anos de escritas em meio à minha própria tessitura de vida quanto também ao fato de eu estar retomando isso que sempre foi central na minha existência desde muito cedo. Interpreto a possibilidade de estar escrevendo aqui novamente como a retomada da minha própria saúde, entendida no sentido proposto pelo filósofo Canguilhem: não se trata de existir ou não uma patologia e sim de que a vida siga sendo um “processo normativo” – inclusive com a presença de algum problema patológico. Com isso ele quer dizer que viver é a possibilidade de fazer da nossa história outra mediante o seu uso, experimentando aquilo que nos compõe com isso que nos ocorre, anunciando outras possibilidades de conduzir e fazer valer nossas vidas em diálogo com os valores que temos como referência.

Dito isso, reativo o blog não para retornar a um suposto estado mais “escritor”. A referência aqui não é a da reversibilidade, como se eu fosse agora “voltar a ser quem eu era”. Trata-se é da tentativa de continuar mantendo a escrita como uma espécie de óleo que facilita essa transitividade da vida, por onde passamos de uns a outros momentos e construímos uma trajetória singular. Trajetória essa que estará sempre em diálogo com o que nos acontece e que estará inevitavelmente ligado a uma dimensão coletiva da vida: incentivos de amigos, encontros inusitados na rua, a situação do governo federal, uma olhadela no relógio, uma pandemia e tudo o mais.

Fica o registro e um abraço.

CUIDADO COM O SILÊNCIO


Nesse dia das mães reflito sobre muitas coisas. Não faltam motivos para homenagear a Clarisse, mas minha mensagem é dirigida aos amigos homens: regulem a violência interna e destaco aqui hoje essa nossa habilidade de sermos silenciosos.
Seja com nossas mães, companheiras, amigas, crushes: maneirem no silêncio. Falemos mais e nos deixemos ser mais espontâneos com as pessoas ao redor. Precisamos expressar mais, tocar mais, se permitir também ser conduzidos por elas em algumas viagens. Nosso silêncio as vezes é violento, destrutivo, negativo. Conheço muitos de vocês e sei que cada um tem um mundo de coisas bacanas pra falar, corações enormes e expansivos, mas que não ganham espaço.

E eu não estou dizendo pra abandonar nosso silêncio. Ele não é todo do mau! Precisamos dele, precisamos nos retirar, pensar, viver as lutas internas que nos cabem. Também precisamos dele pra comunicar coisas que palavras não dão conta, apenas o silêncio. Mas prestem atenção: tomem cuidado pra não “se quedarem” vítimas de uma regulação afetiva que muitas vezes não cabe.
Aprendo isso com minha mãe, mas mesmo elas um dia podem esgotar a paciência e se verem tristes com nossos retiros prolongados. Digo tudo isso pois no dia das mães pode ser que você seja pai ou um dia viva esse lugar.

NOSTALGIA-AÇÃO NA QUARENTENA



Hoje o facebook me lembrou dessa foto, creio que de 2011 ou 2012. Nesse dia estávamos no famigerado bosque do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina: lugar de maconheiros, bruxas, comunistas, “degenerados sexuais”, poetas e poetisas - todos eles cientistas, estudantes ávidos e em busca de um pensamento próprio!
Nessa foto estávamos realizando mais uma comemoração do dia 18 de maio antimanicomial no formato de um lindo sarau. Creio que estava assistindo alguma apresentação e quem fez a fotografia conseguiu capturar um desses momentos raros da minha existência que é estar publicamente relaxado e sendo levado por algo outro: uma espécie de transe da ordem do coletivo que é ativado por outras vias que não uma racionalização plena e ordenada do que se passa.

A nostalgia bate. Época em que estava não só organizando e ajudando a produzir esse tipo de intervenção na universidade, como também estava afinadíssimo com um bom marxismo-leninismo que contava com graúdas pitadas de uma coisa meio hippie-cult muito singular do grupo com o qual eu estava organizado politicamente na época. Concomitante a isso devia estar na minha terceira ou quarta campanha política pelo Centro Acadêmico Livre de Psicologia e pelo Diretório Central dos Estudantes. Estava cercado de pessoas lindas em todos os aspectos possíveis do adjetivo! Uma lindeza potencializada por um tesão compartilhado de estar juntos pra fazer frente ao sistema de forma organizada: quem cair é levantado, alguém toma o lugar o ou a camarada se recupera e a frente segue organizada.
Estar organizado. Faz o que? Uns 5 ou 6 anos que eu não estou mais organizado e eu sinto falta. Que faço ou fiz frente ao sistema é real, meu corpo segue me guiando dessa maneira e fazendo agenciamentos nesse sentido. Mas faz falta a análise de conjuntura, o agrupamento em dias que supostamente eram de descanso e que são utilizados pra fazer análise política. Imprescindível estar organizado, seja na forma “partido” ou qualquer outra. A constância e a disciplina são essenciais na luta pelo poder, visto que ser meramente contra ele basta pouco.

Elogio ao descabimento


Tenho descoberto que eu amo mesmo é o descabimento. Abri o dicionário pra rever o sentido da palavra e o verbo “descaber” diz do que é importuno, do que “não se presta a caber”. Cabe diferenciar esse não caber que eu amo do da retórica de um governo federal que se diz descabido, quando na verdade muito cabe “na economia” – esse aí cabe, bem demais até, no fascismo racista (sim temos que pecar pelo excesso) que o capitalismo demanda.

Quero só limpar o campo para dizer de novo: amo pessoas descabidas. Amo o descabimento. Amo quem se permite errar e erra, quem faz merda mesmo. Porra, quebra a cara bonito, sabe? Mas foi fiel ao que sentia. Pede desculpas depois e muda, mas que tem tesão mesmo é em quebrar a cara. Se espatifar de tanto afeto. Quem tá propenso a investir no que não cabe no contexto, no que é disforme! Denuncia talvez a aposta em um vir a ser a partir do erro tosco de querer fazer caber algo onde não cabe - planos destruídos e refeitos. Deu errado!

Tenho detestado gente controlada, nada contra, mas a civilidade demasiada nos afetos me incomoda. Relacionamentos perfeitos, pessoas perfeitas, bem resolvidas, “calmas”. Que vida é essa?

Eu sou descabido também. As vezes sem querer e muitas vezes de propósito: adoro inserir uma tensão. Adoro ser impertinente. Adoro também ser disciplinado, rigoroso.. mas um pouco de descabimento vai bem, sobretudo no amor.

30 ANOS E 3 TATOOS NO MESMO ESTÚDIO (EDU TATTOO)

Minha primeira tatuagem eu fiz com 16 anos. A ideia veio em meio a conflitos específicos e filosofias de pré adolescente. Na época eu não sabia, mas era um ponto de giro que estava acontecendo na minha vida. A ideia veio de repente em termos de sentido e do que queria que o desenho transmitisse. Maturei ela por uns dias, busquei desenhos e acabei achando um que me agradou. Eu tinha um amigo desses fóruns virtuais da época e pedi pra ele fazer a modificação que eu queria. Falei pra minha mãe Clarisse Sciortino Giorgis que queria fazer e mostrei o desenho. Ela primeiro ficou receosa, pois era um desenho médio/grande, mas acabou topando e no dia até fez uma pra ela também. Fomos no Edu Tattoo, na época na Av. Independência próximo ao Rosário.

A minha segunda tatuagem foi aos 19. Estava numa encruzilhada entre passar de uma vez em uma federal ou possivelmente ter que sair de Florianópolis para Porto Alegre. Vivia conflitos daquele momento também, que sinalizavam outro giro importante na minha vida. Em meio a isso tudo veio a ideia de outra tatuagem. Essa ideia foi e voltou e de novo fiquei pensando no sentido que eu queria que ela tivesse. Busquei um desenho, mas não gostei. Acabei achando outro, com um significado místico que me é muito especial. Fui lá e fiz de novo, também na Edu Tattoo.

Aos 30 fiz mais uma. Maior que essas duas e também numa onda de conflitos significativos da minha vida. A ideia veio "do nada" como sentidos e significados que eu queria e então fiquei matutando. Busquei vários desenhos baseados na música "A vida é Desafio" do Racionais MC's, que é a base desse algo que queria que ela significasse pra mim. Quis trocar o ás de aspada pelo baralho Espanhol. Peguei 3 desenhos diferentes, imaginei uma mescla deles e levei pro Edu Tattoo, que hoje está na Octavio Correa nº 84.

Quando cheguei lá ele colocou a música pra escutar. Falei a ideia. Ele topou, disse que gostava de desenhos desse estilo. No outro dia ele me mandou o desenho modificado por ele, adicionando outros símbolos e trocando o ás de espada do baralho espanhol pelo ás de espada do tarot. Lemos o significado dessas coisas e eu vi que estava ainda mais significativa pra mim a tatuagem como um todo. Quando eu vi estava feito.

Dessa tatuagem cada desenho tem um significado singular, mas que em composição transmitem uma outra coisa que eu gostaria e ainda a ultrapassa. Freud explica (e explica mesmo todo esse lance das tatuagens).

Os sentidos não vou explicar aqui pois não cabe.Quem sabe pessoalmente pra quem quiser, até porque tem vários elementos pra se falar.,, mas numa parcela do sentido dela, daria pra dizer que penso que "a gente vive e morre pelo que fala".

CRÔNICAS EM TEMPOS DE GOLPE - NADA VALES

Abri hoje uma notícia com uma fala do Osmar Terra, psiquiatra e político conhecido por ter uma posição terminantemente contra a legalização das drogas e a redução de danos. Diz ele: “Agora vamos nos orientar pela ciência e defender a abstinência. Não vamos enxugar gelo com redução de danos”.


“Orientar-se pela ciência” e “defender abstinência” são coisas incompatíveis. Trata-se de mais uma discussão que é suprimida por pura ideologia. Ela surfa na onda ignorante em que vivemos atualmente, onde o debate se deslocou da discussão fundamentada para o nível da crença pessoal. Nesse caso, trata-se de uma crença arcaica no punitivismo, mas também um oportunismo por parte daqueles que lucram com internação, fórmula técnica que acompanha sempre a abstinência. O que se quer com isso? Da parte das comunidades terapêuticas evangélicas, dinheiro. Da parte dos políticos, um aval para limpeza urbana dos “drogaditos” - apenas os feios, pretos e pobres.

....

Ainda ontem, uma grande amiga foi demitida por fazer seu trabalho bem feito. Aparentemente, suas posições pró-políticas públicas eram um empecilho para o próprio gestor da política pública. Fazer um bom trabalho, alinhado com a ética da coisa pública, se tornou um problema. Ao longo das semanas, não foram poucos os relatos de desemprego e insatisfação: toda uma geração formada para reforçar a democracia e a seguridade social se encontra em um limbo, quando não em um moedor de força de trabalho. O mantra liberal diria que elas não foram competentes o suficiente, quando, na verdade, não conseguem emprego por serem competentes demais, palavras ditas pelos próprios “recrutadores” nas seleções de emprego.

Enquanto isso, a meritocracia vai para o ralo, pois quem ocupa a chefia da coisa pública são pessoas que são indicadas por esquemas políticos ou familiares. Quem gere a coisa pública não são beneficiários dela e nem quem nela trabalha, mas todo tipo de playboy/patricinha embebidos de toda vadiagem burguesa, que lá foram colocados quase que contra sua própria vontade (pois trabalhar pra essa gente faz mal e é ruim). Mandam e desmandam, como se aquilo fosse uma extensão do próprio berço de ouro do qual, por acaso, saíram.

Nós da classe média contemporânea tiramos na loteria. Parte de nós ajudou a cavar nossa própria cova. O sonho acabou: fomos todos criados com amor e carinho, direcionados para conquistas pessoais no futuro na forma de previsões quase que esotéricas. Ouvimos toda a vida sobre nossa competência e genialidade, apenas para hoje voltarmos a morar com os pais e ganharmos um salário irrisório, sendo humilhados e assediados de todas as formas no meio de trabalho.

Quem sabe assim possamos olhar pro lado. Entender que uma parcela do povo já estava vivendo sob todas essas mazelas, quando não muitas outras. O que vivemos hoje não é novidade pra muita gente nesse país há séculos. Ainda há tempo pra fazer da empatia construção comum e não caridade.

O sonho que sonhamos não era nosso. Precisamos despertar para voltar a sonhar.

[Escrito em 2018]